A Revolução de 1383 - 1385 segundo Marcelo Caetano (2).
O
CONCELHO DE LISBOA NA CRISE DE 1383 – 1385 1 Lisboa,
cabeça da revolução. Os
acontecimentos de Lisboa relacionados com a revolução que levou ao trono a
dinastia de Avis compreendem quatro fases capitais. A
primeira é a dos tumultos de 6 de Dezembro de 1383, por ocasião do assassínio
do conde de Andeiro e que representam o deflagrar da reacção popular contra
D. Leonor Teles, sob a chefia do Mestre de Avis. A
segunda é a das assembleias de 15 e 16 do mesmo mês nas quais a arraia-miúda,
primeiro, e os homens‑bons da cidade, depois, proclamaram regente o
Mestre de Avis, com o título de Regedor e Defensor do Reino. A
terceira é
a
dos preparativos para resistir ao cerco iminente que o rei de Castela vai
fechar ao redor da cidade de Lisboa, preparativos que são acompanhados de
uma série de providências a favor da capital, dadas entre 1 de Abril e 11
de Maio de 1384. A
quarta é a da solene confirmação da regência e ratificação da homenagem
dos três estados, após o levantamento do cerco, em 2 e 6 de Outubro de
1384, quando foi resolvido decidir a crise mediante a convocação das Cortes
de Coimbra. Os
factos da primeira fase só têm interesse na medida em que explicam os
seguintes. A narração de Fernão Lopes é suficientemente elucidativa do
seu decurso e carácter. Para a história do concelho, interessam agora as três
restantes. 2 Escolha
revolucionária do regente em Dezembro de 1383.
- Os acontecimentos de 6 de Dezembro tinham representado a reacção contra a
influência do conde de Andeiro no governo e contra o desbragamento da rainha
antipática ao povo de Lisboa ao qual fizera pagar duramente a resistência
manifestada contra a sua subida ao trono aquando do casamento com D.
Fernando. Mas
quando se viu que D. Leonor Teles saía para Alenquer e apelava para seu
genro e rei de Castela e mal se soube que este se aprestava para vir quanto
antes castigar a cidade revoltada, a gente sisuda começou a pesar os prós e
os contras da situação: se, por um lado, ceder acarretaria inevitável
castigo, por outro, como resistir com os fracos recursos locais às poderosas
forças em via de coligar-se? Fernão
Lopes narra detidamente todas as inquietações e hesitações destes dias
(caps. 17 a 25). As razões de prudência vinham juntar-se os escrúpulos da
legitimidade monárquica e da fé jurada aos pactos. A maior parte da nobreza
pronunciava-se pela rainha e o levantamento de Lisboa era tido como mera «sandice
de dois sapateiros e dois alfaiates». O Mestre de Avis, neste lance, chegou
a pensar em partir para Inglaterra sob a influência dos mais tímidos e
houve que demovê-lo por todas as maneiras. Quem
o demoveria? Meia dúzia dos cavaleiros e legista, que o cercavam 1
e, sobretudo, a gente do povo que sabia quanto lhe custara anteriormente o
movimento capitaneado por Fernão Vasques e que, tendo lutado anos a fio,
durante o reinado de D. Fernando, contra os Castelhanos, estava causticada
pelas violências e depredações por eles cometidas. Quando
o Mestre saía à rua era o povo, os tais sapateiros e alfaiates de que os
cortesãos da rainha escarneciam, que o cercava e lhe tomava as rédeas do
cavalo a suplicar-lhe que o não deixasse e que assumisse a regência do
Reino para o defender. Envolvido
na atmosfera de simpatia popular, animado pelos seus cavaleiros e legistas,
confirmado pelas predições de Frei João da Barroca, o Mestre decidiu-se a
ficar e mandou proceder à convocação de uma assembleia popular em S.
Domingos. Em
15 de Dezembro reuniu-se no mosteiro «muito povo da cidade» a quem D. João
arengou, expondo o seu desinteresse pessoal do Poder, mas prestando-se a
assumir a regência e defesa do Reino desde que lhe prometessem todos
ajuda-lo incondicionalmente a suportar tão graves encargos (I, cap. 26). A
resposta foi pronta: a multidão em coro gritou-lhe que ficasse, prometeu-lhe
consagrar vidas e bens à empresa da guerra – «a qualquer aventura por
honra do reino e sua defensão deles» -e aclamou alegremente a final anuência
do Mestre de Avis a chefiar a revolução. Logo
repararam, porem, que faltavam na reunião «muitos honrados cidadãos»,
burgueses das famílias consideradas e ricas da cidade, proprietários,
mercadores, gente experiente da administração urbana cujo voto convinha
obter em negócio de tamanha monta. A
separação, verificada em todas as agitações municipais ocorridas por essa
Europa fora na segunda metade do século XIV, entre o «povo meudo», «os
meudos» ou o «povo comum» (le commun peuple, les menus gens, il popolo
minuto) e os «cidadãos honrados» ou os «bons do concelho», começa a
marcar-se na crise portuguesa, que não tardará a opor francamente, em
muitos lugares do Reino, os «grandes» aos «pequenos» (I, cap. 43). No
dia 16 reuniu-se, pois, a assembleia municipal na «câmara do concelho». O
Mestre tornou a falar expondo o que se passara na véspera; mas, ao terminar,
acolheu-o um silêncio embaraçado. Os «bons» eram os que tinham a perder.
A revolução era uma aventura em que -não queriam empenhar a sua
responsabilidade. E cochichavam uns com os outros, sem se atreverem a
pronunciar-se abertamente. A
reunião, porém, fora assistir a plebe, como habitualmente sucedia quando
estavam em causa graves interesses da cidade. Respeitosa de começo, o
prolongamento da indecisão dos maiorais entrou de enfrenesiá-la. De entre o
público destacou-se o tanoeiro Afonso Anes Penedo que, pondo a mão numa
espada que tinha à cinta, increpou os burgueses de maus patriotas,
estimulando-os a ratificar a deliberação popular. Mas nem assim os notáveis
se resolveram. E então o tanoeiro não hesitou em proferir ameaças formais.
Lembrou-lhes que, por ele, nada mais tinha a perder do que a cabeça mas, por
isso mesmo, se os maiorais o não quisessem acompanhar haviam também de
responder pelas deles antes de saírem dali... «E todollos que hi estavam do
poboo meudo, aquella mesma rrazom disserom.» Perante
o alvoroço e vendo que lhes não era possível resolver coisa diversa da que
o povo exigia, os homens-bons outorgaram quanto na véspera tinha sido
prometido em S. Domingos. Dessa
resolução da assembleia municipal diz Fernão Lopes que se lavrou auto ali
mesmo assinado (I, cap. 26). Infelizmente, não nos chegou o original, nem cópia,
desse documento, que representou, por um lado, a capitulação do patriciado
urbano perante a vontade do povo miúdo e, por outro, a investidura
revolucionária do Mestre de Avis na regência do Reino. Conta-nos
o cronista como o novo regente logo mandou fazer selos, constituiu conselho e
nomeou desembargadores do Paço, vedores da Fazenda, tesoureiro da moeda e
corregedor da cidade. E
acrescenta: «E foi logo ordenado na cidade que vinte e quatro homens, dous
de cada mester, tivessem o encargo de estar na Camara para que toda a cousa
que se houvesse de ordenar por bom regimento e serviço do Mestre fosse com
seu acordo deles». Esta
entrada dos mesteres no governo urbano merece, porém, atenção especial
como facto de relevo na história da administração municipal. (...) 11 Uma
nova cidade e um novo foral.
- Ficam assim indicadas as mais importantes concessões feitas por D. João I
à cidade de Lisboa em satisfação das reivindicações por ela formuladas.
Se agora compararmos o estatuto jurídico da cidade tal como se nos apresenta
após as Cortes de 1385 com o que ela gozara sob o foral de 1179 veremos que
só dois séculos depois da instituição do concelho pelo primeiro rei é
que Lisboa sacudiu, e revolucionariamente, os encargos que sobre ela pesavam
em benefício da coroa. Durante
esses dois séculos tinham sido insignificantes as alterações introduzidas
na constituição municipal, e as questões suscitadas por ela nas Cortes ou
em disputas com a coroa eram sempre -as mesmas 42. Mas
o comércio fora tomando vulto dentro das muralhas da cidade. A posição
privilegiada do seu porto, a meio da rota dos navios que a partir dos meados
do século XIII ligavam as cidades italianas às do Norte da Europa,
nomeadamente as flamengas, tinha fatalmente de interessar os Lisboetas nas
operações especulativas do comércio marítimo. Simultaneamente, a pequena
indústria caseira dos mesteres ia-se desenvolvendo e sofrendo com desagrado
a estreita tutela que a oligarquia municipal lhe impunha através da almotaçaria. Que
população contaria a cidade nessa altura? Escasseiam totalmente dados que
permitam um cômputo com alguma probabilidade de exactidão. Mas sabemos que
as cidades medievais eram pequenas 43. A data da outorga do seu
primeiro foral, anos depois da conquista cole a qual coincidira a explosão
de parte dos habitantes mouros, obrigados a viver nos arredores, Lisboa não
poderia ter grande número de povoadores: dez, quinze mil? A população
cresceu, decerto, até à peste negra que a sangrou em 1348 e a reduziu a
metade, senão a um terço. Daí por diante não faltaram novas epidemias,
fomes e cercos, enquanto as leis que a rarefacção de mão-de-obra impôs
forçavam a uma estabilização populacional empecedora das migrações que
alimentam o urbanismo. Londres
calcula-se que teria em 1377 entre 30 e 40 000 habitantes 44. Se
considerarmos as circunstâncias de Lisboa e a área ocupada em 1385, se
olharmos a que século e meio depois os cálculos dos autores do Censo de
1527 e de Cristóvão Rodrigues de Oliveira não conduzem a mais de 50 000
habitantes, não será andar muito longe da verdade computar o número dos
moradores na época do levantamento do Mestre de Avis entre 20 e 30 000. Quarenta
anos depois, o rol dos besteiros do conto atribui à cidade 300 besteiros.
Sabe-se como toda a proporção entre o número de besteiros e o total da
população é arbitrária; mas se supusermos 1 besteiro por 100 habitantes,
teremos os 30 000 que nessa altura corresponderão a uns 20 a 25 000 na época
de que nos estamos ocupando. Número
puramente conjectural, o de 25 000 tem, todavia, alguns vesos de não andar
muito longe da realidade. É
esta nova cidade, mais populosa, onde o castelo deixou de ter a importância
primitiva até ser arrasado, como um símbolo, na crise de 1385, onde os
proprietários rurais são minoria e a agricultura interna quase não conta,
mas que, em compensação, vê aumentar o número dos mercadores e armadores
ocupados no comércio interno e internacional, desenvolver a classe, dos
mesteirais, e crescer o número dos legistas e dos funcionários da coroa, é
esta nova cidade que D. João I dota de um estatuto novo onde pouco resta do
antigo foral. 12 Recapitulemos
em breve resumo os traços gerais desse estatuto segundo se depreendem das
diversas mercês feitas entre Abril de 1384 e Abril de 1385: a)
Junto dos juízes, vereadores e procurador funciona um colégio composto por
dois homens-bons de cada mester cujo voto deliberativo é indispensável para
a aprovação de posturas ou ordenações, lançamento de impostos e eleição
das autoridades e funcionários municipais. b)
Só o concelho pode prover ofícios da administração da cidade, sendo nulas
as cartas régias que deles façam mercê; carecem de confirmação da coroa
unicamente a eleição dos juízes e a designação de advogados e
procuradores da cidade. c)
Todos os escrivães dos cargos municipais gozam de fé pública. d)
A jurisdição sobre os homens do mar (que pertencera ao Almirante), sobre os
estrangeiros e sobre os reguengos do termo - Sacavém, Unhos, Frielas,
Camarate, Alverca, Barcarena e outros - pertence, directamente ou em última
instância, aos juízes da cidade. e)
Sobre os moradores da cidade não pesariam mais os encargos que o foral ou o
costume estabeleciam a favor da coroa; o rei deixa de possuir alfândegas e
tendas dentro de Lisboa. f)
Para os impostos lançados pelo concelho com destino aos encargos municipais
ou para serviço do rei, todos os moradores contribuiriam, mesmo que fossem
fidalgos ou por outra razão isentos. g)
Os cidadãos de Lisboa podiam trazer armas em todo o reino e estavam isentos
do dever de albergar em suas casas os fidalgos e oficiais do rei, bens como
de os abastecer e fornecer contra vontade; no caso de guerra, a defesa local
tinha primazia sobre qualquer outro serviço militar. h)
Os cidadãos honrados da cidade só seriam metidos a tormentos nos casos em
que o pudessem ser os fidalgos. i)
Era livre a imigração na cidade de gente vinda de qualquer ponto do reino. j)
A almotaçaria continuava a ser função exclusiva do concelho, que a
exerceria com o acordo dos mesteres. Portanto,
tradicional governo oligárquico do concelho de Lisboa é temperado pelo
acesso dos mesteres aos órgãos municipais: o concelho adquire a preciosa
liberdade de trânsito para os seus mercadores, que passam a poder percorrer
armados o País inteiro, sem serem molestados pela concorrência estrangeira
e sem terem de se deter a cada passo nas alfândegas interiores para pagar
:portagem e deixar inspeccionar as mercadorias; e os cidadãos de Lisboa
adquirem importantes prerrogativas para à sua segurança, para a
inviolabilidade do seu domicílio e pára a posse dos seus bens. 1 Eram os que formavam o Conselho do Mestre e a cuja acção
dá especial relevo (sem referir a do povo) a Cronica do Condestabre,
cap. xx.
Fonte:
Os Grandes Debates da Historiografia
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