Montesquieu
RAYMOND ARON E A FILOSOFIA POLÍTICA DE MONTESQUIEU
Teoria
política O problema do aparelho conceptual de
Montesquieu, desse aparelho que lhe permite substituir uma ordem pensada a uma
diversidade incoerente, equivale mais ou menos à questão, clássica entre os
seus intérpretes, do plano de O Espírito das Leis. A obra
oferecer-nos-á uma ordem inteligível ou uma colecção de observações mais
ou menos subtis sobre estes ou aqueles aspectos da realidade histórica? O Espírito das Leis divide-se em
várias partes, cuja aparente heterogeneidade foi muitas vezes notada. Do
ponto de vista onde me coloco, há, parece-me, essencialmente, três grandes
partes. Em primeiro lugar, os treze primeiros
livros que desenvolvem a teoria bem conhecida dos três tipos de governo, ou
seja, aquilo a que chamaríamos uma sociologia política, um esforço tendente
a reduzir a diversidade das formas de governo a alguns tipos, sendo cada um
deles definido, ao mesmo tempo, pela sua natureza e pelo seu princípio. A
segunda porte vai do livro XIV ao livro XIX. É consagrada às causas
materiais ou físicas, quer dizer, essencialmente à influência do clima e do
solo sobre os homens, os seus costumes e as suas instituições. A terceira
parte, que vai do livro XX ao livro XXVI, estuda sucessivamente a influência
das causas sociais, comércio, moeda, número de homens, religião, sobre os
costumes, os hábitos e as leis. Estas três partes são pois,
aparentemente, por um lado uma sociologia da política; em seguida, um estudo
sociológico das causas, umas físicas, outras morais, que actuam sobre a
organização das sociedades. Restam, fora destas três parte
principais, os últimos livros de O Espírito das Leis, que,
consagrados ao estudo das legislações romana e feudal, representam ilustrações
históricas, e o livro XXIX, que é difícil enquadrar em qualquer uma das
grandes divisões; destina-se a responder à pergunta: como devem ser
compostas as leis? Este último livro pode ser interpretado como uma elaboração
pragmática das consequências que se deduzem do estudo científico. Há por fim um livro, difícil de
classificar neste plano de conjunto, o livro XIX, que trata do espírito geral
de uma nação. Não se prende pois a uma causa particular nem ao aspecto político
das instituições, mas ao que constitui, talvez, o princípio de unificação
do todo social. De qualquer maneira, este livro é um dos mais importantes.
Representa a transição ou a ligação entre a primeira parte de O Espírito
das Leis, a sociologia política, e as duas outras partes, que estudam as
causas físicas ou morais. Este relembrar do plano de O Espírito
das Leis permite colocar os problemas essenciais da interpretação de
Montesquieu. Todos os historiadores se sentiram impressionados pelas diferenças
entre a primeira parte e as duas partes seguintes. Sempre que os historiadores
constatam a heterogeneidade aparente das partes de um mesmo livro, são
tentados a recorrer a uma interpretação histórica, procurando em que data
terá escrito o autor as diversas partes. No caso de Montesquieu, esta interpretação
histórica pode ser desenvolvida sem dificuldades excessivas. Os primeiros
livros de O Espírito das Leis, senão o primeiro, pelo menos do livro
II ao livro VIII, quer dizer, os livros que analisam os três tipos de
governo, são, sé assim posso dizer, de inspiração aristotélica. Montesquieu escreveu-os antes da sua
viagem a Inglaterra, numa época em que se encontrava sob a influência
dominante da filosofia política clássica. Ora, na tradição clássica, a Política
de Aristóteles era o livro essencial. Que Montesquieu tenha escrito os
primeiros livros com a Política de Aristóteles ao alcance da mão é indubitável.
Podemos, quase em todas as páginas, descobrir referências a Aristóteles sob
a forma de alusões ou de críticas. Os livros seguintes, em particular o
famoso livro XI, sobre a constituição de Inglaterra e a separação dos
poderes, foram provavelmente escritos em data posterior, depois da estadia em
Inglaterra, sob a influência das observações realizadas por ocasião dessa
viagem. Quanto aos livros de sociologia consagrados ao estudo das causas físicas
ou morais, foram escritos provavelmente mais tarde do que os primeiros livros. A partir daqui, seria fácil mas pouco
satisfatório mostrarmos O Espírito das Leis como a sobreposição de
duas maneiras de pensar, de duas maneiras de estudar a realidade. Montesquieu seria, por um lado, um discípulo
dos filósofos clássicos. Enquanto tal, desenvolveu uma teoria dos tipos de
governo que, mesmo que difira,
nalguns pontos, da teoria clássica de Aristóteles, se encontra ainda de
acordo com o clima e a tradição desses filósofos. Ao mesmo tempo,
Montesquieu seria um sociólogo que investiga a influência que o clima, a
natureza do solo, o número de homens e a religião podem exercer sobre os
diferentes aspectos da vida colectiva. Sendo o autor duplo, teórico da política
por um lado, sociólogo por outro, O Espírito das Leis seria uma obra
incoerente, e não um livro ordenado por uma intenção dominante e um sistema
conceptual, ainda que contendo trechos de datas e talvez de inspirações
diversas. Antes de nos resignarmos a uma
interpretação que supõe o historiador mais inteligente do que o autor e
capaz de ver imediatamente a contradição que teria escapado ao génio,
devemos procurar a ordem interna que Montesquieu, com razão ou sem ela, via
no seu próprio pensamento. O problema que aqui se levanta é o da
compatibilidade entre a teoria dos tipos de governo e a teoria das causas. Montesquieu distingue três tipos de
governo, a república, a monarquia e o despotismo. Cada um destes tipos é
definido por referência a dois conceitos, que o autor de O Espírito das Leis
chama a natureza e o princípio do governo. A natureza do governo é o que o faz ser
o que é. O princípio do governo é o sentimento que deve animar os homens no
interior de um tipo de governo, para que este funcione harmoniosamente. Assim,
a virtude é o princípio da república, o que não significa que na república
os homens sejam virtuosos, mas que deveriam sê-lo, e que as repúblicas só
serão prósperas na medida em que os cidadãos forem virtuosos. 1 A natureza de cada governo é
determinada pelo número dos detentores da soberania. Montesquieu escreve: «Suponho
três definições, ou melhor, três factos: um, que o governo republicano é
aquele em que o corpo do povo ou apenas uma parte do povo detém a força
suprema; o monárquico, aquele em que um só governa, mas por meio de leis
fixas e estáveis; ao passo que no despotismo, um só sem lei e sem regra,
tudo arrasta segundo a sua vontade e os seus caprichos.» (O Espírito das
Leis, liv. ti, cap. 1; O. C., t. II, p. 239.) A distinção entre o
corpo do povo ou só uma parte do povo, aplicada à república, tem por fim
lembrar as duas espécies de governo republicano: a democracia e a
aristocracia. Mas estas definições mostram de modo
imediato que a natureza de um governo não depende apenas do número dos que
detêm a força soberana, mas também da maneira como esta é exercida.
Monarquia e despotismo são ambos regimes que comportam um só detentor da
soberania, mas no caso do governo monárquico o detentor único governa
segundo leis fixas e estabelecidas, enquanto no despotismo governa sem leis e
sem regras. Temos assim dois critérios, ou, em gíria moderna, duas variáveis
que precisam a natureza de cada governo: por um lado, quem detém a força
soberana, por outro lado, segundo que modalidades se exerce essa força
soberana? Convém acrescentar o terceiro critério,
o do princípio do governo. Um tipo de governo não é suficientemente
definido pela característica quase jurídica da detenção da força
soberana. Cada tipo de governo é também caracterizado pelo sentimento, à
falta do qual não pode durar nem prosperar. Ora, segundo Montesquieu, há três
sentimentos políticos fundamentais, cada um deles assegurando a estabilidade
de um tipo de governo. A república depende da virtude, a monarquia da honra e
o despotismo do medo. A virtude da república não é uma
virtude moral, mas uma virtude propriamente política. É o respeito pelas
leis e a dedicação do indivíduo à colectividade. A honra, como diz Montesquieu, é «filosoficamente
falando uma honra falsa». É o respeito por cada um daquilo que deve à sua categoria. 2 Quanto ao medo, não precisa de definição.
É um sentimento elementar e por assim dizer infra-político. Mas é um
sentimento do qual trataram todos os teóricos da política, porque muitos de
entre eles, desde Hobbes, consideraram que era o sentimento mais humano, o
mais radical, o sentimento a partir do qual se explica o próprio Estado. Mas
Montesquieu não é, à maneira de Hobbes, um pessimista. Aos seus olhos, um
regime assente no medo é por essência corrompido, e quase no limiar do nada
político. Os súbditos que só por medo obedecem já quase não são homens. Esta classificação dos regimes é
original relativamente à tradição clássica. Montesquieu considera antes do mais
democracia e aristocracia, que, na classificação de Aristóteles, são dois
tipos distintos, como duas modalidades de um mesmo regime chamado republicano,
e distingue esse regime da monarquia. Segundo Montesquieu, Aristóteles
desconheceu a verdadeira natureza da monarquia. O que se explica facilmente
porque a monarquia, tal como a concebe Montesquieu, só foi automaticamente
realizada nas monarquias europeias. 3 Esta originalidade explica-se por uma
razão profunda. A distinção dos tipos de governo, em Montesquieu, é ao
mesmo tempo, uma distinção entre organizações e estruturas sociais. Aristóteles
fizera uma teoria dos regimes, à qual dera, na aparência, um valor geral,
mas pressupunha como base social a cidade grega. Monarquia, aristocracia,
democracia constituíam as três modalidades de organização política das
cidades gregas. Era legítimo distinguir os tipos de governo segundo o número
de detentores dó poder soberano. Mas tal espécie de análise implicava que
os três regimes fossem, para empregarmos uma expressão moderna, a
superestrutura política de uma certa forma de sociedade. A filosofia política clássica
interrogara-se pouco sobre as relações entre os tipos de superestrutura política
e as bases sociais. Não formulara claramente a questão de saber em que
medida se pode estabelecer uma classificação dos regimes políticos,
abstraindo da organização das sociedades. A contribuição decisiva de
Montesquieu vai ser precisamente retomar o problema na sua generalidade e
combinar a análise dos regimes com a das organizações sociais, de tal modo
que cada governo se mostre ao mesmo tempo como uma certa sociedade. A ligação entre regime político e
sociedade é estabelecida em primeiro lugar e de modo explícito pela tomada
em linha de conta da dimensão da sociedade. Segundo Montesquieu, cada um dos
três tipos de governo corresponde a uma certa dimensão da sociedade
considerada. As fórmulas são abundantes: «É da natureza de uma república que
possua apenas um pequeno território; sem isso não terá maneira de
subsistir.» (Liv. VIII, cap. 16; O. C., t. II, p. 362.) «Um Estado monárquico deve ser de
grandeza medíocre. Se fosse pequeno, formaria uma república. Se fosse muito
extenso, os principais do Estado, grandes por si mesmos, não estando sob os
olhos do príncipe, tendo corte fora da corte deste, garantidos por outro lado
contra as execuções prontas pelas leis e pelos costumes, poderiam deixar de
obedecer. «(Liv. VIII, cap. 17; O. C., t. II, p. 363.) «Um grande império supõe uma
autoridade despótica por parte daquele que governa.» (Liv. VIII, cap. 19; O.
C., t. II, p. 365.) Se quiséssemos traduzir estas fórmulas
em proposições de uma lógica rigorosa, provavelmente não deveríamos
empregar uma linguagem de causalidade, quer dizer, afirmar que, a partir do
momento em que o território de um Estado ultrapassa uma certa dimensão, o
despotismo é inevitável, mas dizer antes que há uma concordância natural
entre o volume da sociedade e o tipo de governo. O que não deixa, por outro
lado, de colocar ao observador um problema difícil: se, a partir de uma certa
dimensão, um Estado não pode ser senão despótico, o sociólogo não será
forçado a admitir a necessidade de um regime que considera humanamente e
moralmente mau? A menos que evite essa consequência desagradável afirmando
que os Estados não devem ultrapassar uma certa dimensão. Seja como for, por intermédio desta
teoria das dimensões, Montesquieu liga a classificação dos regimes ao que
hoje se chama a morfologia social, ou o volume das sociedades, para retomarmos
a expressão de Durkheim. Montesquieu liga igualmente a classificação
dos regimes à análise das sociedades baseando-se na noção de princípio de
governo, quer dizer, de sentimento indispensável ao funcionamento de um certo
regime. A teoria do princípio leva manifestamente a uma teoria da organização
social. Se a virtude na república é o amor das
leis, a dedicação à colectividade, o patriotismo, para empregarmos uma
expressão moderna, desemboca em última análise num certo sentido da
igualdade. Uma república é um regime no qual os homens vivem para e pela
colectividade, no qual se sentem cidadãos, o que implica que sejam e se
sintam iguais uns aos outros. Em contrapartida, o princípio da
monarquia é a honra. Montesquieu teoriza-a num tom que, por momentos, se
diria polémico e irónico. «Nas monarquias a política faz com que
sejam feitas grandes coisas corri o menos de virtude possível. Como nas mais
belas máquinas a arte emprega tão poucos movimentos, forças e rodas quanto
possível, o Estado subsiste independentemente do amor pela pátria, do desejo
da verdadeira glória, da renúncia a si mesmo, do sacrifício dos interesses
mais caros e de todas essas virtudes heróicas que encontramos nos antigos, e
das quais somente ouvimos falar.» (Liv. III, cap. 5; O. C., p. 255.) «O governo monárquico supõe, como o
dissemos, proeminências, categorias e até mesmo uma nobreza de origem. A
natureza da honra é pedir preferências e distinções. Encontra pois, dada a
coisa em si mesma, o seu lugar neste governo. A ambição é perniciosa numa
república. Tem bons efeitos na monarquia; é ela que dá a vida a este
governo, e com a vantagem de não ser nele perigosa, pois pode ser
continuamente reprimida.» (Liv. III, cap. 7; O. C., t. II, p. 257.) Esta análise não é inteiramente nova.
Desde que os homens começaram a reflectir sobre a política, oscilaram sempre
entre duas teses extremas: ou um Estado só é próspero quando os homens
querem directamente o bem da colectividade; ou, uma vez que é impossível que
os homens queiram directamente o bem da colectividade, um bom regime é aquele
em que os vícios dos homens conspiram para o bem de todos. A teoria da honra
de Montesquieu é uma modalidade, sem ilusões, desta segunda tese. O bem da
colectividade é garantido, senão pelos vícios dos cidadãos, pelo menos por
qualidades menores, ou até por atitudes que, moralmente, seriam repreensíveis. Pessoalmente, penso que, nos capítulos
de Montesquieu sobre a honra, há duas atitudes ou duas intenções
dominantes: há uma relativa desvalorização da honra relativamente à
verdadeira virtude política, a dos antigos e a das repúblicas; mas há também
uma valorização da honra enquanto princípio de relações sociais e protecção
do Estado contra o mal supremo, o despotismo. Com efeito, se os dois governos,
republicano e monárquico, diferem essencialmente, porque um se fundamenta na
igualdade e o outro na desigualdade, porque um se fundamenta na virtude política
dos cidadãos e o outro num sucedâneo de virtude, que é a honra, os dois
regimes têm contudo um traço comum: são moderados, neles ninguém comanda
de maneira arbitrária e à margem das leis. Em contrapartida, quando chegamos
ao terceiro governo, a saber, o governo despótico, saímos do âmbito dos
governos moderados. Montesquieu combina com a classificação dos três
governos uma classificação dualista dos governos moderados e dos governos não-moderados.
A república e a monarquia, são moderados, o despotismo não o é. A isto é necessário acrescentar uma
terceira espécie de classificação, a que chamarei, sacrificando à moda,
dialéctica. A república assenta numa organização igualitária das relações
entre os membros da colectividade. A monarquia assenta essencialmente na
diferenciação e na desigualdade. Quanto ao despotismo, assinala o regresso
à igualdade. Mas, ao passo que a igualdade republicana é a igualdade na
virtude e na participação de todos no poder soberano, a igualdade despótica
é a igualdade no medo, na impotência e na não-participação no poder
soberano. Montesquieu aponta no despotismo por
assim dizer o mal político absoluto. É verdade que o despotismo talvez seja
inevitável quando os Estados se, tornam demasiado grandes, mas
simultaneamente o despotismo é o regime em que um só governa sem regras e
sem leis e em que, por consequência, reina o medo. Sentimo-nos tentados a
dizer que cada um tem medo de todos os outros a partir do momento em que é
estabelecido o despotismo. Em última análise, no pensamento político
de Montesquieu, a oposição decisiva é entre o despotismo, em que cada um
tem medo de todos os outros, e os regimes de liberdade, nos quais nenhum cidadão
tem medo dos outros. Esta segurança que a cada um dá a sua liberdade,
Montesquieu exprimiu-a directamente e claramente nos capítulos consagrados à
constituição inglesa, no livro XI. No despotismo, subsiste apenas um limite
ao poder absoluto daquele que reina, a religião; e mesmo essa protecção é
precária. Esta síntese não deixa de provocar
discussões e críticas. Podemos antes do mais perguntar se o
despotismo é um tipo político concreto, no mesmo sentido em que o são a república
ou a monarquia. Montesquieu precisa que o modelo da república nos é dado
pelas repúblicas antigas e, em particular, pela república romana, antes das
grandes conquistas. Modelos da monarquia são as monarquias europeias, inglesa
e francesa, do seu tempo. Quanto aos modelos do despotismo, são, de uma vez
por todas, os impérios a que ele chama asiáticos, por meio de uma amálgama
entre o império persa e o império chinês, o império das índias e o império
japonês. Sem dúvida, os conhecimentos que Montesquieu possuía sobre a Ásia
eram fragmentários, mas dispunha, apesar disso, de uma documentação que lhe
teria permitido tornar mais matizada a sua concepção do despotismo asiático. Montesquieu está na origem de uma
interpretação da história da Ásia que ainda não desapareceu por completo
e que é característica do pensamento europeu: os regimes asiáticos seriam
essencialmente despotismos, suprimindo toda a estrutura política, toda a
instituição e toda a moderação. O despotismo asiático visto por
Montesquieu é o deserto da servidão. O soberano absoluto é único,
todo-poderoso, delega eventualmente os seus poderes num grande vizir; mas
sejam quais forem as modalidades das relações entre o déspota e o seu séquito,
não há classes sociais em equilíbrio, não há ordens nem categorias; nem o
equivalente da virtude antiga nem o equivalente da honra europeia; o medo
reina sobre milhões de homens, através dessas extensões desmesuradas, nas
quais o Estado não se pode manter amenos que um só tudo possa. Esta teoria do despotismo asiático não
será assim também e sobretudo a imagem ideal do mal político cuja evocação
não se opera .sem uma intenção polémica perante as monarquias europeias? Não
esqueçamos a frase famosa: «Todas as monarquias se vão perder no
despotismo, como os rios no mar.» A ideia do despotismo asiático é a obsessão
perante o desfecho possível das monarquias quando estas perdem o respeito
pelas categorias, pela nobreza, pelos corpos intermédios, à falta dos quais
o poder absoluto e arbitrário de um só perde toda a moderação. A teoria dos governos de Montesquieu, na
medida em que estabelece uma correspondência entre as dimensões do território
e a forma do governo, arrisca-se também a conduzir a uma espécie de
fatalismo. Em O Espírito das Leis, há uma
oscilação entre dois extremos. Seria fácil sublinhar numerosos textos,
segundo os quais haveria uma espécie de hierarquia: sendo a república o
melhor regime, viria depois a monarquia e por fim o despotismo. Mas, por outro
lado, se cada regime é irresistivelmente exigido por uma certa dimensão do
corpo social, estamos em presença, não de uma hierarquia de valores, mas de
um determinismo inexorável. Existe finalmente uma última crítica
ou incerteza que incide sobre o essencial e diz respeito à relação entre os
regimes políticos e os tipos sociais. Esta relação pode, com efeito, ser
pensada de diversas maneiras. O sociólogo ou o filósofo pode considerar que
um regime político é suficientemente definido por um só critério, por
exemplo o número dos que detêm a soberania, e fundamentar assim uma
classificação dos regimes políticos com uma significação suprahistórica.
Tal era a concepção que se achava implícita na filosofia política clássica,
na medida em que esta fazia uma teoria dos regimes, abstraindo da organização
da sociedade e pressupondo por assim dizer a validade intemporal dos tipos políticos. Mas é também possível, como mais ou
menos claramente faz Montesquieu, combinar estreitamente regime político e
tipo social. Nesse caso, chegamos àquilo a que Max Weber teria chamado três
tipos ideais: o da cidade antiga, Estado de pequenas dimensões, governado
segundo a república, democracia ou aristocracia; o tipo ideal da monarquia
europeia, cuja essência é a diferenciação das ordens, monarquia legal e
moderada; e por fim o tipo ideal do despotismo asiático, Estado de dimensões
extremas, poder absoluto de um só, sendo a religião o único limite a
erguer-se perante a arbitrariedade do soberano; a igualdade é restaurada, mas
no meio da impotência de todos. Montesquieu escolhe preferencialmente
esta segunda concepção da relação entre regime político e tipo social.
Mas no mesmo momento, perguntamo-nos então em que medida os regimes políticos
são separáveis das entidades históricas no interior das quais se
realizaram. Seja como for, resta que a ideia
essencial. é esta ligação estabelecida entre o modo de governo, o tipo de
regime por um lado, o estilo das relações interpessoais, por outro. De
facto, o que é decisivo aos olhos de Montesquieu é menos que o poder
soberano pertença a vários ou a um só, mas que a autoridade seja exercida
segundo as leis e a medida, ou, pelo contrário, arbitrariamente e pela violência.
A vida social será diferente segundo o modo de exercício do governo. Esta
ideia conserva todo o seu alcance numa sociologia dos regimes políticos. Além disso, seja qual for a interpretação
das relações entre a classificação dos regimes políticos e a classificação
dos tipos sociais, não podemos recusar a Montesquieu o mérito de ter posto
claramente o problema. Duvido que o tenha resolvido de maneira definitiva, mas
terá alguém conseguido fazê-lo? A distinção entre governo moderado e
governo não-moderado é provavelmente central no pensamento de Montesquieu.
Permite integrar as considerações sobre a Inglaterra que se encontram no
livro XI na teoria dos tipos de governo dos primeiros livros. O texto essencial, a este propósito, é
o capítulo 6 do livro XI, no qual Montesquieu estuda a constituição da
Inglaterra. Este capítulo teve um tal eco que numerosos constitucionalistas
ingleses têm interpretado as instituições do seu país segundo o que delas
disse Montesquieu. O prestígio do génio foi tal que os ingleses julgaram
compreender-se a si próprios lendo O Espírito das Leis 4
*. Montesquieu descobriu em Inglaterra por
um lado um Estado que tem por objecto próprio a liberdade política, por
outro lado o facto e a ideia da representação política. «Embora todos os Estados tenham em
geral um mesmo objecto que é o de se manterem, cada Estado tem contudo um
outro que lhe é particular, escreve Montesquieu. A expansão era o objecto de
Roma; a guerra o da Lacedemónia; a religião o das leis judaicas; o comércio
o de Marselha... Há também uma nação no mundo que tem por objecto directo
da sua constituição a liberdade política.» (O Espírito das Leis,
liv. XI, cap. 5; O. C., t. li, p. 396.) Quanto à representação, a
sua ideia não figurava em primeiro plano na teoria da república. As repúblicas
em que Montesquieu pensa são as repúblicas antigas nas quais existia uma
assembleia do povo, e não uma assembleia eleita pelo povo e composta por
representantes do povo. Foi só em Inglaterra que ele pôde observar,
plenamente realizada, a instituição representativa. Este governo, tendo por objecto a
liberdade e onde o povo é representado pelas assembleias, tem por principal
característica aquilo a que se chamou a separação dos poderes, doutrina que
continua a ser actual e sobre a qual
indefinidamente se tem especulado. Montesquieu verifica que em Inglaterra
um monarca detém o poder executivo. Uma vez que este exige rapidez de decisão
e de acção, é bom que um só o detenha. O poder legislativo é incarnado
por duas assembleias: a Câmara dos Lordes, que representa a nobreza, e a Câmara
dos Comuns, que representa o povo. Estes dois poderes, executivo e
legislativo, são detidos por pessoas ou corpos distintos. Montesquieu
descreve a cooperação dos dois órgãos bem como analisa a sua separação.
Mostra, com efeito, o que cada um desses poderes pode e deve fazer em relação
ao outro. Há ainda um terceiro poder, o poder de
julgar. Mas Montesquieu precisa que «a força de julgar, tão terrível entre
os homens, não estando ligada nem a um certo estado, nem a uma certa profissão,
torna-se por assim dizer, invisível e nula». (E. L., liv. XI, cap. 6;
O. C., t. II, p. 398.) O que parece indicar que o poder judicial sendo
essencialmente o intérprete das leis deve ter tão pouca iniciativa e
personalidade quanto possível. Não é o poder de pessoas, é o poder das
leis, «teme-se a magistratura e não os magistrados» (ibid.). O poder legislativo coopera com o poder
executivo; deve examinar em que medida as leis foram correctamente aplicadas
por este último. Quanto à força «executora», não poderá entrar no
debate dos assuntos, mas deve estar em relação de cooperação com o poder
legislativo, por aquilo a que Montesquieu chama a sua faculdade de impedir.
Montesquieu acfescenta ainda que o orçamento deve ser votado todos os anos.
« Se a potência legislativa estatui, não de ano em ano, mas para sempre,
sobre os dinheiros públicos, corre o risco de perder a sua liberdade, porque
a potência executiva deixará de depender dela.» (Ibid., p. 405.) O
voto anual do orçamento é como que urna condição de liberdade. Estabelecidos estes dados gerais, os intérpretes
têm acentuado uns o facto de a potência executiva e a potência legislativa
serem distintas, outros o facto de dever existir entre elas uma cooperação
permanente. O texto de Montesquieu tem sido
aproximado dos textos de Locke sobre o mesmo tema; certos aspectos bizarros da
exposição de Montesquieu explicam-se se nos referirmos ao texto de Locke. 5
Em particular, no início do capítulo 6, há duas definições da potência
executiva. Esta é definida uma primeira vez como a que decide «das coisas
que dependem do direito das gentes» (ibid., p. 396), o que parece
limitá-la à política externa. Um pouco mais longe, é definida como a que
«executa as resoluções públicas» (ibid., p. 397), o que lhe dá
uma extensão muito maior. Montesquieu segue num dos casos o texto de Locke.
Mas, entre Locke e Montesquieu, há uma diferença de intenção fundamental.
O objectivo de Locke é limitar o pode real, mostrar que se o monarca
ultrapassar certos limites ou faltar a certas obrigações, o povo, verdadeira
origem da soberania, tem o direito de reagir. Em contrapartida, a ideia
essencial de Montesquieu não é a separação dos poderes no sentido jurídico
do termo, mas o que poderíamos chamar o equilíbrio das forçar sociais,
condição da liberdade política. Montesquieu, em toda a sua análise da
constituição inglesa, supõe uma nobreza e duas câmaras, das quais uma
representa o povo e a outra a aristocracia. Insiste em que os nobres só sejam
julgados pelos seus pares. Com efeito, «os grandes estão sempre expostos à
inveja; e se fossem julgados pelo povo, poderiam ficar em perigo, e não
gozariam do privilégio que o mais pequeno dos cidadãos tem num Estado livre,
o de ser julgado pelos seus pares. É pois necessário que os nobres sejam
convocados não perante os tribunais ordinários da nação, mas perante essa
parte do corpo legislativo que é composta por nobres» (ibid., p.
404). Noutros termos, Montesquieu, na sua análise da constituição inglesa,
visa redescobrir a diferenciação social, a distinção entre as classes e as
categorias de acordo com a essência da monarquia, tal como a definiu, e
indispensável à moderação do poder. Um Estado é livre, diria eu de bom
grado, comentando Montesquieu, quando nele o poder trava o poder. O que há de
mais impressionante, para justificar esta interpretação, é que, no livro XI,
depois de ter terminado o exame da constituição de Inglaterra, Montesquieu
volta a Roma e analisa o conjunto da história romana em termos de relações
entre a plebe e o patriciado. O que o interessa é a rivalidade entre as
classes. Esta competição social é a condição do regime moderado porque as
diversas classes são capazes de se equilibrar. No que se refere à própria constituição,
é bem verdade que Montesquieu indica em pormenor como cada um dos poderes tem
este ou aquele direito e como devem os diferentes poderes cooperar. Mas esta
formalização constitucional não é mais do que a expressão de um Estado
livre, ou, diria eu de bom grado, de uma sociedade livre, na qual nenhum poder
pode alargar-se sem limites uma vez que é travado por outros poderes. Um texto das Considerações sobre as
Causas da Grandeza e da Decadência dos Romanos resume perfeitamente este
tema central de Montesquieu: «Por regra geral, sempre que virmos
toda a gente tranquila, num Estado que se atribui o nome de República,
poderemos ter a certeza de que nele não há liberdade. Aquilo a que se chama
união, num corpo político, é uma coisa muito equívoca. A verdadeira união
é uma união de harmonia, que faz com que todas as partes, por opostas que
nos pareçam, concorram para o bem geral da sociedade como as dissonâncias da
música concorrem para o acordo total. Pode haver união num Estado onde pareça
haver apenas confusão, quer dizer, uma harmonia da qual resulta a felicidade,
que é a única paz verdadeira. Passa-se aqui o mesmo que com as partes do
universo, eternamente ligadas pela acção de umas e a reacção das outras.»
(Cap. 9; O. C., t. II, p. 119.) A concepção do consenso social é a de
um equilíbrio das forças ou da paz estabelecida por acção e reacção
entre os grupos sociais. 6 Se esta análise for exacta, a teoria da
constituição inglesa encontra-se no centro da sociologia política de
Montesquieu, não por ser um modelo para todos os países, mas por permitir
identificar o mecanismo constitucional de uma monarquia, os fundamentos de um
Estado moderado e livre, graças ao equilíbrio entre as classes sociais, graças
ao equilíbrio entre os poderes políticos. Mas esta constituição, modelo de
liberdade, é aristocrática e, de tal facto, têm sido propostas interpretações
diversas. Uma primeira interpretação, que foi
durante muito tempo a dos juristas e que provavelmente era ainda a dos
constituintes franceses de 1958, é uma teoria da separação, juridicamente
concebida, dos poderes, no interior do regime republicano. O presidente da República
e o primeiro-ministro por um lado, o Parlamento por outro têm direitos bem
definidos, sendo o equilíbrio obtido no estilo ou na tradição de
Montesquieu, precisamente por meio de uma ordenação precisa das relações
entre os diversos órgãos. 7 Uma segunda interpretação insiste no
equilíbrio das forças sociais, como eu próprio faço, e acentua também o
carácter aristocrático da concepção de Montesquieu. Esta ideia do equilíbrio
das forças sociais supõe a nobreza, serve de justificação aos corpos
intermédios do século XVIII, no momento em que estes estavam prestes a
desaparecer. Nesta perspectiva, Montesquieu é um representante da
aristocracia que reage contra o poder monárquico em nome da sua classe, que
é uma classe condenada. Vítima da astúcia da história, levanta-se contra o
rei, querendo agir em favor da nobreza, mas a sua polémica apenas para a
causa do povo será eficaz. 8 Penso pessoalmente que há uma terceira
interpretação, que retoma a segunda, mas a supera, no sentido do aufheben
de Hegel, quer dizer, que vai mais longe do que a interpretação anterior,
embora conservando a sua parte de verdade. É verdade que Montesquieu não concebia
o equilíbrio das forças sociais, condição da liberdade, senão segundo o
modelo de uma sociedade aristocrática. Pensava que os bons governos eram
moderados, e que os governos só podiam ser moderados quando o poder travasse
o poder, ou ainda quando nenhum cidadão tivesse que temer outro. Os nobres não
podiam sentir-se em segurança a não ser que os seus direitos fossem
garantidos pela própria organização política. A concepção social do
equilíbrio que O Espírito das Leis expõe está ligada a uma
sociedade aristocrática e no conflito do seu tempo sobre a constituição da
monarquia francesa, Montesquieu pertence ao partido da aristocracia, e não ao
do rei nem ao do povo. Mas resta saber se a ideia que
Montesquieu tinha das condições da liberdade e da moderação, não continua
a ser verdadeira para além do modelo aristocrático que ele tinha no espírito.
O que Montesquieu teria provavelmente dito é que podemos efectivamente
conceber uma evolução social através da qual a diferenciação das ordens e
das categorias tenda a apagar-se. Mas poderemos conceber uma sociedade sem
ordens nem categorias, um Estado sem pluralidade dos poderes, que seja ao
mesmo tempo moderado e no qual os cidadãos sejam livres? Que Montesguieu, querendo trabalhar em
favor da nobreza e contra o rei, tenha trabalhado para o movimento popular e
democrático, é uma ideia defensável. Mas, se nos referirmos à história,
os acontecimentos, em larga medida, justificaram a sua doutrina. Demonstraram
que um regime democrático, em que a força soberana pertence a todos, não é
só por isso um governo moderado e livre. Montesquieu, ao que me parece, tem
perfeitamente razão ao manter a distinção radical entre o poder do povo e a
liberdade dos cidadãos. É possível que, sendo o povo soberano, a segurança
dos cidadãos e a moderação no exercício do poder desapareçam. Para além da formulação aristocrática
da sua doutrina do equilíbrio das forças sociais e da cooperação dos
poderes políticos 9, Montesquieu estabeleceu o princípio
segundo o qual a condição do respeito das leis e da segurança dos cidadãos
é que nenhum poder seja ilimitado. Tal é o tema essencial da sua sociologia
política. Notas: * Escusado
será dizer que não entrarei aqui num estudo pormenorizado nem sobre o que
era a constituição inglesa no século XVIII, nem sobre o que Montesquieu
julgou que ela era, nem por fim sobre aquilo em que ela se transformou no século
XX. Quero apenas mostrar como as ideias essenciais de Montesquieu sobre a
Inglaterra se integram na sua concepção geral da política. 1. «Há esta diferença entre a
natureza do governo e o seu princípio: a sua natureza é o que faz ser o que
é, e o seu princípio o que o faz agir. Uma é a sua estrutura particular e o
outro as paixões humanas que o fazem mover-se. As leis não devem ser menos
relativas ao princípio de cada governo do que à sua natureza.» (E. L.,
liv. III, cap. 1; O. C., t. ti, pp. 250 e 251.) 2. «É claro que numa monarquia,
onde aquele que faz executar as leis se julga acima das leis, se tem
necessidade de menos virtude do que num governo popular, onde quem faz
executar as leis sente que lhes está submetido e que terá que suportar o seu
peso... Quando esta virtude cessa, a arbitrariedade entra nos corações
dispostos a recebê-la, e a avareza em todos os corações.» (Liv. III, cap.
3; O. C., t. II, pp. 251 e 252.) «A natureza da honra é exigir preferências
e distinções.» (Liv. III, cap. 7; O. C., t. ti, p. 257.) 3. A distinção fundamental
entre república e monarquia encontra-se de facto já em Maquiavel: «Todos os
governos, todas as senhorias que tiveram e têm poder sobre os homens foram e
são ou Repúblicas ou Principados.» (O Príncipe, cap. 1; Le
Prince, trad. fr. in O. C., Pléiade, p. 290.) 4. Sobre esta questão ver o
livro de F. T. H. Fletcher, Montesquieu and english politics, Londres,
1939, ao qual se pode acrescentar a obra de P M. Spurlin, Montesquieu in
America 1760-1801, Louisiana State University, 1940. 5. Os textos de Locke sobre os
quais Montesquieu trabalha são os dos Two Treatises of Government, in
the former the false principles and foundation of Sir Robert Filmer and his
followers are detected and overthrown; the later is an Essay concerning the
true Origin, Extent and End of Civil Government, editados pela primeira vez em
Londres em 1690. O segundo destes dois tratados, o Ensaio sobre a
Verdadeira Origem, a Extensão e o Fim do Poder Civil, foi traduzido para
o francês por David Mazel e publicado em Amesterdão por A. Wolfgang a partir
de 1691 sob o título Do Governo Civil, onde se trata da Origem, dos
Fundamentos, da Natureza do Poder e dos Fins das Sociedades Políticas.
Nesta tradução de Mazel, conheceu numerosas edições ao longo do século
XVIII. Uma nova tradução para uma edição moderna foi realizada por J. L.
Fyot com o título Ensaio sobre o Poder Civil (Essai sur le pouvoir
civil) e publicada pela Bibliothèque de Ia Science politique, Paris, P. U. F.,
1953, prefácio de B. Mirkine-Guetzevitch e Marcel Prélot. A teoria dos poderes e das relações
entre os poderes de Locke encontra-se exposta nos capítulos XI a XIV do Ensaio
sobre o Poder Civil. No capítulo XII, Locke distingue três tipos de
poder: o poder legislativo, o poder executivo e o poder federativo do Estado.
«O poder legislativo é o que tem o direito de determinar a maneira como se
empregará a força do Estado para proteger a comunidade e os seus membros.»
O poder executivo é «um poder sempre em exercício para velar pela execução
das leis que foram feitas e continuam em vigor». Inclui portanto, ao mesmo
tempo, a administração e a justiça. Além disso, «existe em cada estado um
outro poder a que podemos chamar natural porque corresponde a uma faculdade
que cada homem naturalmente tinha antes de entrar na sociedade... Considerada
globalmente a comunidade forma um corpo que se encontra no estado de natureza
relativamente a todos os outros Estados ou a todas as pessoas que dela não
fazem parte. Este poder compreende o direito de paz e de guerra, o de formar
ligas e alianças e conduzir toda a espécie de negociações com as pessoas e
as comunidades estranhas ao Estado. Podemos chamar-lhe, se assim o quisermos,
federativo... Os dois poderes, executivo e federativo são, sem dúvida, em si
mesmos realmente distintos: um respeita à aplicação das leis no interior da
sociedade, a todos os que dela fazem parte; o outro está encarregado da
segurança e dos interesses exteriores da comunidade perante aqueles que lhe
podem ser úteis ou prejudicá-la; contudo, ambos se encontram quase sempre
reunidos... De resto não se poderia confiar o poder executivo e o poder
federativo a pessoas susceptíveis de agirem separadamente porque a força pública
ficaria então colocada sob comandos diferentes, o que não poderia deixar de
engendrar, cedo ou tarde, desordens e catástrofes» (ed. Fyot, pp. 158 e
159). 6. Esta concepção não é
totalmente nova. A interpretação da constituição romana pela ideia da
divisão e do equilíbrio dos poderes e das forças sociais encontra-se já na
teoria do regime misto de Polibio e Cícero. E estes autores, mais ou menos
explicitamente, viam nesta divisão e neste equilíbrio uma condição da
liberdade. Mas é em Maquiavel que podemos ler fórmulas que anunciam as de
Montesquieu. «Digo aos que condenam as querelas do Senado e dó povo que
condenam o que foi o princípio da liberdade e que são muito mais
afectados pelos gritos e pelo ruído que elas provocavam na praça pública do
que pelos bons efeitos que produziam. Em toda a República, há dois partidos:
o dos grandes e o do povo; e todas as leis favoráveis à liberdade só nascem
da sua oposição.» (Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio,
liv. 1, cap. 4; O. C., Plêiade, p. 390.) 7. O tema da separação dos
poderes é um dos temas principais da doutrina constitucional oficial do
general de Gaulle. «Todos os princípios e todas as experiências exigem que
os poderes públicos: legislativo, executivo, judiciário, estejam nitidamente
separados e fortemente equilibrados.» (Discurso de Bayeux do dia 16 de Junho
de 1946.) «Que exista um governo feito para governar, ao qual dêem tempo e
possibilidade de o fazer, que não trate. de coisas diferentes da sua tarefa,
e que assim mereça a adesão do país. Que exista um parlamento destinado a
representar a vontade pública da nação, a votar as leis, a controlar o
executivo, sem pretender sair do seu papel. Que governo e parlamento colaborem
mas permaneçam separados quanto às responsabilidades e que nenhum membro de
um possa ser ao mesmo tempo membro do outro. Tal é a estrutura equilibrada de
que se deve revestir o poder... Que a autoridade judicial seja garantida na
sua independência e continue a ser a guardiã da liberdade de cada um. A
competência, a dignidade, a imparcialidade do Estado serão assim melhor
garantidas.» (Discurso da praça da República do dia 4 de Setembro de 1958.)
Notemos todavia que, no caso da Constituição de 1958, o executivo pode
travar o legislativo mais facilmente do que o legislativo o executivo. Para a interpretação pelos juristas da
teoria da separação dos poderes de Montesquieu, ver nomeadamente: L. Duguit,
Traité de Droit constitucionnel, vol. t; R. Carré de Malberg, Contribution
à Ia théorie générale de l'État, Paris, Sirey, t. I, 1920, t. II,
1922, nomeadamente t. II, pp. 1-142; Ch. Eisenmann, «L'Esprit des lois»
et Ia séparation des pouvoirs, in Mélanges Carré de Malberg.
Paris, 1933, pp. 190 sq. «La pensée constitutionnelle de Montesquieu»,
in Recueil Sirey du Bicentenaire de «L'Esprit des lois», Paris, 1952,
pp. 133-160. 8. Esta interpretação é
nomeadamente a de Louis Althusser no seu livro Montesquieu, la politique et
l'histoire, Paris, P. U. F., 1959, 120 pp. 9. De resto, na análise da república
segundo Montesquieu, a despeito da ideia essencial de que a natureza da república
é a igualdade dos cidadãos, voltamos a encontrar a diferenciação entre a
massa do povo e as elites.
© Publicações Dom Quixote Fonte: Raymond Aron,
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