Évora
(Alterações de).
Os
factos passados em Évora nos anos de 1637 e 1638, as chamadas Alterações
são importantes na historia portuguesa porque não foram
transitórios e irradiaram desta cidade a outros pontos do país o
espírito revolucionário que conduziu à restauração da
independência de Portugal.
A
uma visita que o duque de Bragança D. João II, depois rei D. João
IV, fez em 1635 a Évora, com o fim ostensivo de visitar o marquês
de Ferreira, D. Francisco de Mello, pelo seu segundo casamento, se
atribui pelo grande aparato um fim político: o de fomentar a
resistência e avivar as esperanças da nação impaciente por
sacudir o jugo estranho. Na História
Genealógica da Casa Real Portuguesa vem a descrição minuciosa
desta visita, declarando o autor que a obteve de um livro de
memórias da casa do marquês de Ferreira, mas dela nada transparece
com intuitos políticos. Porém, num manuscrito do padre António
Franco, códice da Biblioteca de Évora (N.° 104-140), encontrou o
Sr. Gabriel Pereira, conforme escreveu nos seus Estudos
Eborenses: “As vésperas da Restauração, uma alusão
evidentemente política.” É o seguinte episódio: “O duque
hospedara-se na Cartuxa, do padroado da sua casa, e os monges a
todas as comidas só apresentaram peixe, conforme a sua regra.
‘Paciência’ disse o duque, ‘eu me vingarei no Colégio.’
Mas a visita ao Colégio dos jesuítas foi na sexta-feira: mais
peixe. – ‘Enfim eu vim jejuar a Évora!’ Um dos padres
respondeu logo: - ‘Senhor os jejuns são vésperas de grandes
festas’. O duque entendeu e gostou da alusão. Ainda outra, e bem
significativa, foi a frase do orador, padre Gaspar Correia, na festa
da sé, que concluiu o sermão dizendo que esperava ver o duque com
uma coroa..., fez pausa e acrescentou: - ‘de glória!’ Na
multidão que enchia o templo houve tal movimento e aplauso que só
faltou aclamarem-no rei.”
Do
manuscrito citado consta ainda que a el-rei de Castela alguém
delatou com inveja o que se passara, as honras excessivas prestadas
ao duque pela cidade, cabido e Universidade... que isto era armá-lo
a rei. Filipe III dissimulou o caso, e mandou escrever ao marquês
de Ferreira e ao conde de Basto, D. Diogo de Castro, e à cidade,
louvando muito o que se tinha feito em honra do duque seu primo.
Pôde, portanto, afirmar-se que em Évora já em 1635 a nobreza e
parte do clero urdiam tramas políticas. A conspiração progrediu e
a péssima política de Castela dia a dia agravava a situação; mas
o pronunciamento popular de Évora teve um cunho especial e foi
muito além do que desejavam as classes superiores. A Espanha
começava a esfacelar-se e com ela as conquistas de Portugal. Os
desastres no Brasil e as relações difíceis com a França,
Inglaterra e Holanda, tornavam excessivos os impostos e repetidas as
levas de homens para as armadas. Por diversos alvarás se criaram
impostos novos. Em 1635 o pedido geral era de 400 mil cruzados,
afora outros impostos. A parte que correspondia; a Évora orçava
por 2.000 ducados. Para a cobrança foram expedidas ordens aos
corregedores para a fazerem sem dependência das câmaras.
Em
Évora tais ordens encontraram o zelo funesto de André Morais
Sarmento, magistrado servil e violento. O génio imprudente deste
homem
provocou o rompimento. Desejando recomendar-se à corte,
convocou a câmara, e propôs-lhe a substituição dos novos
tributos pela quarta parte do subsidio de 500.000 cruzados do ano de
l637, exaltando a clemência e suavidade da Coroa em deixar à
vontade dos contribuintes o lançamento e repartição. Os
vereadores sobressaltados declinaram a resposta, desculpando-se com
a indisposição geral. Insistiu o corregedor e, achando-os firme,
buscou outro meio, chamando a sua casa, no dia 21 de Agosto de 1637,
os cabeças populares para, os intimidar, e extorquir deles
obediência pelo terror. Acudiram à intimação o juiz do povo
Sesinando Rodrigues, borracheiro, e o escrivão João Barradas,
barbeiro de espadas.
Mas estes não acudiram sós; grupos de populares, desconfiados e
curiosos, os seguiram até à porta, e ficaram na praça esperando o
resultado. 0 corregedor principiou mansamente, fazendo promessas;
vendo porém a firmeza e resolução dos dois magistrados populares
recorreu às ameaças. João Barradas alegou que não podia decidir
sem o negócio ser comunicado aos companheiros. O corregedor,
receando a publicação e cheio de ira, soltou injúrias contra os
moradores de Évora e jurou ao juiz do povo e escrivão que não
sairiam vivos de suas mãos. Disse-se depois que não falara de
leve, porque tinha prevenidos em casa o algoz e seus ajudantes para
os enforcar. Se isto não passou de invenção não deixa contudo de
ser provável que o corregedor usasse de forte intimação, de
insultos violentos e ameaças. Os numerosos grupos de populares que
estacionavam na praça, esperando ansiosamente o resultado da
conferência, viram Sesinando Rodrigues aparecer de súbito, em
grande agitação, à janela que olhava para a praça, bradando e
pedindo socorro ao povo e dizendo que morriam pelo livrar dos
trabalhos em que o queriam meter os ministros do rei.
Ouvindo
isto o povo furioso arremeteu contra a casa, fez voar as portas, e,
entrando pelas escadas e quartos, trazia momentos depois em triunfo
os dois magistrados populares. A este tempo saltavam as primeiras
labaredas da casa incendiada. O corregedor fugiu pelos telhados e
acolheu‑se no convento de S. Francisco. O povo atirava das
janelas os moveis, roupas, livros e papeis. Tudo ardeu numa
fogueira. Dividiu-se depois em bandos, e estes, vagueando pelas
ruas, rasgaram os registos públicos, despedaçaram as balanças da
casa fiscal do real de água e dos açougues, soltaram os presos,
invadiram cartórios e tribunais. As justiças fugiram ou
esconderam-se, e a cidade ficou sem leis e sem polícia, entregue ao
motim. Este rompimento tão súbito e violento assustou as pessoas
principais. Na igreja de Santo Antão reuniram-se o arcebispo D.
João Coutinho, o conde de Basto, o marquês de Ferreira, o conde de
Vimioso, D. Francisco de Lencastre, Jorge de Mello, e outros, e
deliberaram acerca do modo mais prudente de sossegar tão perigosa
agitação.
Pouco
depois saiu o arcebispo de cruz alçada, rodeado do muitas pessoas
principais, e empregando palavras brandas intentaram acalmar a maior
fúria, prometendo interceder pela cidade, rogando aos mais
violentos que entregassem à câmara a defesa dos seus privilégios.
Mas os amotinados desprezaram as promessas e o conselho, lançando
em rosto aos nobres a fraqueza com que sempre tinham visto calcar o
povo e a pátria aos pés dos exactores. A resposta fez recolher
intimidada a nobreza à igreja de Santo Antão; e os amotinados
continuaram nas suas alterações. De noite a multidão investiu as
moradas dos magistrados mais aborrecidos; insultou alguns vereadores
suspeitos, apedrejou as janelas do paço arquiepiscopal, e estando
no pátio de S. Miguel foi insultar a autoridade e as cãs do velho
ministro conde de Basto. Entretanto a nobreza de Évora temia que a
Corte suspeitasse dela e desejava que a pacificação da cidade
fosse obra sua para argumentar depois com ela em favor do próprio
engrandecimento. De Santo Antão, tempo depois, a junta
correspondia-se com Madrid e com os cabeças do povo. Os sediciosos,
querendo desviar de si as acusações futuras, inventaram uma nova
forma de governo sem responsabilidade. Valeram-se da pessoa de um
doido, conhecido pelas jogralidades, pela extraordinária
corpulência, e ironicamente chamado o Manuelinho, e em nome
dele firmaram todas as convocações, todos os éditos, e todas as
ordens. Os autores das resoluções violentas, escondidos atrás do
vulto sem imputação do Manuelinho de Évora, ousaram então
assoberbar a cidade. Todas as manhãs se liam afixados nas praças e
esquinas bandos, provisões e decretos, provimentos de empregos,
ordens de desterro, e, coisa notável, nenhum magistrado, nenhum
fidalgo se atrevia a resistir. O edital de 22 de Agosto, dia
seguinte ao do levantamento, já era assinado por Manuelinho.
Este
documento foi primitivamente divulgado por Cunha Rivara, no vol. do Panorama,
de 1840, pág. 202, artigo que se refere aos que, sobre os tumultos
de Évora, publicara Alexandre Herculano no mesmo periódico em
1839, a págs. 385 e 394. Nestes tumultos, o povo não marchava à
toa, havendo um poder oculto, uma direcção que se disfarçava. Da
corte expediram-se sucessivamente diversos emissários que não
conseguiram pacificar a cidade. Ficou então a Junta dos senhores de
Évora encarregada da mediação, correspondendo-se directamente com
Madrid. Por este tempo romperam agitações em vários pontos do
país: Santarém, Tancos, Abrantes e Vila Viçosa. Para aplanar
todas as dificuldades ofereceram o arcebispo e o cabido, bem como a
câmara de Évora, o pagarem das suas próprias rendas o excesso que
se impunha à cidade; com o que o povo não pagaria mais do que o
ordinário, o rei ficaria servido, e a cidade contribuindo com tudo
o que se lhe havia imposto. Não satisfazendo a proposta ao conde
duque de Olivares, conseguiu este que a Évora fossem mandados o
conde de Linhares, acompanhado por D. Álvaro de Mello de Bragança
e o inquisidor António da Silveira Menezes, ambos naturais de
Évora, e na cidade muito conhecidos e estimados. Veio também o
celebre D. Francisco Manuel de Mello, que sobre o assunto deixou uma
relação, a primeira das suas Epanáforas
de Vária História, sobre a qual todos os nossos historiadores
têm fundado as suas descrições dos tumultos de Évora. Mas a esta
cidade só chegaram o conde de Linhares e D. Francisco Manuel. À
proposta de irem os dois magistrados populares pedir perdão ao rei
a Castela, respondeu o povo querendo expulsar o conde, que então se
retirou para Lisboa, mandando D. Francisco Manuel a Madrid. Sucedeu
isto na noite de 1 de Janeiro de 1638, ficando o novo tumulto
conhecido pelas Janeiras. Filipe III, irritado, mandou à duquesa de
Mântua que enviasse a Évora um corregedor da Corte com alçada
especial. Veio, efectivamente, o corregedor Diogo Fernandes Salema,
com seus oficiais, empregados, meirinhos, e homens armados bastantes
para sua segurança. Em Évora sabia-se que um exército na
fronteira estava pronto a marchar. O séquito sinistro da alçada
entrou na cidade sem ouvir um brado. Dominava o terror; bastantes
famílias, muitos dos entusiastas da revolta, os próprios
magistrados populares, abandonaram a cidade. A alçada não pôde
fazer mais do que justiçar em estátua os dois cabeças de motim, o
que fez por sentença de 16 de Março de 1638.
Passada
a aclamação de D. João IV os foragidos João Barradas e Sesinando
Rodrigues estavam em Évora e eram irmãos da Misericórdia, vindo o
último a ser enterrado em 16 de Setembro de 1661, conforme a nota
final do Sr. Gabriel Pereira nos seus Estudos, acima citados.