Fidalgo
da Casa Real, comendador da Ordem de Nossa Senhora da Conceição do
Vila Viçosa, opulento lavrador e proprietário na Golegã. O seu
nome completo era Carlos Augusto Mascarenhas Relvas de Campos,
sendo, porém, conhecido mais vulgarmente só pelo nome abreviado de
Carlos Relvas.
Era
uma das figuras mais simpáticas de Portugal, no seu tempo, admirado
pela sua elegância, perícia e arte, como cavaleiro e toureiro
amador, pelo seu delicado talento artístico de fotógrafo, um
distintíssimo sportsman.
Seu
pai era um dos mais abastados lavradores de todo o Ribatejo;
chamava-se José Farinha Relvas de Campos, e faleceu a 27 de fevereiro de 1865. Fundou importantes estabelecimentos agrícolas e
uma bela casa de habitação na Golegã. Nesta casa achavam sempre
franca a excelente hospedagem todas as pessoas que transitavam por
aquelas estradas, e por várias vezes ali se hospedou a família
real. Nos seus estabelecimentos agrícolas introduziu e fez uso, com
o maior proveito público, de muitos processos e instrumentos agrícolas,
nessa época adoptados e aperfeiçoados entre as nações mais
cultas da Europa. Ao seu zelo e à sua iniciativa deveu a Golegã
muitos e importantes melhoramentos, uns promovidos por ele como
simples particular, outros a que deu impulso como presidente da câmara,
cargo que exerceu quase constantemente; e como procurador da junta
geral do distrito, para que foi eleito seis ou sete vezes. Em 1842 o
quiseram eleger deputado, mas não aceitou a candidatura; também os
governos o agraciaram por vezes com uma comenda, títulos de
conselheiro; de barão e de visconde, mas rejeitou sempre estas mercês.
Carlos
Relvas foi um digno continuador da obra de seu pai. Nasceu na Golegã,
onde também faleceu, vítima dum grande desastre, a 23 de janeiro
de 1894. Casou com D. Margarida Amália Mendes de Vasconcelos, filha
dos condes de Podentes: de Jerónimo Dias de Azevedo Vasques de
Almeida e Vasconcelos e D. Maria Liberata da Costa Mendes de
Azevedo, representantes das mais ilustres famílias da Beira Alta.
Herdeiro duma opulentíssima fortuna, entregava-se aos cuidados da
sua imensa lavoura, que podia servir de modelo, pela perfeição em
todos os trabalhos do campo, e à administração das suas
propriedades. Era respeitado e estimado pelo seu carácter franco e
bondoso; muito
caritativo a esmoler, tornou-se na Golegã o verdadeiro pai dos
pobres, que lhe consagravam a maior veneração.
Carlos
Relvas, apesar dos seus muitos trabalhos com a administração da
sua casa, lembrou-se um dia de aproveitar as horas que lhe ficavam
livres, e fez-se artista, dedicando-se à fotografia como amador.
Correu os principais ateliers fotográficos da Europa, comprou os
mais custosos e perfeitos aparelhos, a construiu junto da sua
vivenda da Golegã um atelier na parte mais elevada e pitoresca dum
formoso jardim, entre palmeiras, eucaliptos e flores. Era uma
verdadeira maravilha artística, não só no conjunto da construção,
como na ornamentação interior e mobiliário, que dizem, ser de
principesca sumptuosidade. Foi ali que Carlos Relvas passou grande
parte da vida, trabalhando, estudando e lendo. Os seus trabalhos
fotográficos tornaram-se bem conhecidos e muito apreciados, e em
pouco tempo Carlos Relvas ficou considerado o primeiro fotografo
amador do país. Nesses trabalhos destaca-se a reprodução dos
objectos que figuraram na exposição da arte ornamental realizada
em Lisboa no ano de 1882, que constituem verdadeiros primores artísticos.
As suas fotografias distinguiam-se pelo gosto artístico da pose ou
do ponto de vista, pela escolha da luz e pela nitidez. Muitas dessas
fotografias e dos seus instantâneos figuraram em várias exposições
nacionais e estrangeiras, conquistando em todas elas um dos mais
distintos lugares. Carlos Relvas era membro da Sociedade Francesa de
Fotografia, e obteve medalhas nas exposições dessa sociedade, de
1870, 1874 e 1876. Também alcançou vários prémios nas seguintes
exposições: Em Viena de Áustria, 1873, Medalha do Progresso;
Madrid, 1873, medalha de prata; Sociedade Fotográfica, de Viena de
Áustria, 1875, medalha de prata; Filadélfia, 1876, medalha;
primeiro prémio na Exposição de Amesterdão, 1876, Cruz de
Bronze dourado; Exposição hortícola do Palácio de Cristal do
Porto, 1877, medalha de ouro; Exposição da União Central das
Artes decorativas, no palácio da Industria, de Paris, medalha de
ouro, o que foi uma das suas vitórias.
Como
sportsman tornou-se notável em todos os exercícios físicos,
precisos para aliar a destreza à agilidade, a serenidade à,
coragem. Hábil atirador de pistola e de carabina, destro jogador de
pau, de florete e de sabre, foi também notável na equitação.
Possuidor de cavalos magníficos, sabia ensiná-los a primor, e
realizava com eles proezas extraordinárias, sendo um perfeito gentleman-rider.
Um dos seus maiores triunfos foi no Porto, numas corridas em que
alcançou grande vitória, montando no seu cavalo Chasseur
d'Afrique. Como toureiro amador também Carlos Relvas se tornou
muito afamado. Por muitos anos toureou a cavalo e a pé; era destro,
tanto como cavaleiro, como bandarilheiro, aliando à sua destreza de
cavaleiro e grande firmeza uma serenidade de ânimo pouco vulgar. Na
praça da Foz do Douro, um cavalo, montado por Carlos Relvas, foi
ferido por um ferro, o resaibeou, dando uma volta à praça que era
pequena e angulosa, nos mais nervosos corcovos, tentando algumas
pessoas ver se conseguiam fazê-lo parar, o que foi baldado empenho.
Extenuado pela luta, o cavalo parou afinal, sem que conseguisse
perturbar o ânimo corajoso do denodado cavaleiro. Carlos Relvas
recebeu então uma entusiástica ovação. O distinto toureiro
amador tomava sempre parte em festas de caridade, para as quais não
recusava nunca o seu concurso. A última tourada, em que tomou
parte, foi a que no verão de 1893 promoveu a comissão da imprensa
a favor das vítimas do ciclone dos Açores. Entusiasta por este
divertimento, mandou construir na Golegã uma praça de touros, que
se inaugurou com uma corrida em benefício do hospital daquela vila.
Com o seu carácter caritativo, querendo sempre contribuir para o
bem da humanidade, inventou um barco salva-vidas.
Em
1880 assistiu a um naufrágio na barra do Douro, o que muito o
impressionou, e logo aplicou a sua actividade e inteligência em
descobrir a maneira mais rápida e mais segura de acudir aos náufragos,
quando o mar é indómito e o perigo implacável. Durante três anos
não descansou, e nos fins de Outubro de 1883 dirigiu ao ministro da
marinha um requerimento, apresentando o barco salva-vidas da sua
invenção, com os competentes tripulantes, que de pronto haviam
adquirido nele uma grande confiança procurando os pontos mais
embravecidos do mar. Desejava que a realização do seu pensamento
fosse confirmada por meio duma experiência oficial, e requeria que
o ministro a ordenasse, pedindo-lhe igualmente que lhe permitisse
partilhar da sorte do pessoal da mesma experiência, acompanhando-o.
Junto ao pedido mandava oito fotografias do barco. O ministro deferiu
logo o requerimento, e nomeou uma comissão composta do engenheiro
naval Luís da Cunha e Mancelos, capitão de mar e guerra João
Capristano de Sousa Neves, e o piloto-mor da barra do Porto, para
assistir à experiência do novo barco salva-vidas. No dia 7 de novembro do citado ano de 1893 realizou-se a experiência na Foz do
Douro. O mar estava de molde para essa experiência; agitava-se
furiosamente, e erguia-se em grossas vagas junto da barra, pondo em
perigo, ás vezes, os pequenos barcos que a elas se atreviam. O novo
barco salva-vidas, que sob a direcção de Carlos Relvas, fora
construído por José Paulino Inácio, de Vila Nova de Gaia,
dirigiu-se para a entrada da barra onde o mar era mais forte,
tripulado por Carlos Relvas, por Joaquim Ferreira Viseu, piloto da
barra do Porto e oito remadores. Ao mesmo tempo partiu também, para
servir de comparação ao moderno barco, o antigo salva-vidas,
tripulado por doze remadores, o respectivo patrão, Mendes Leite,
ajudante do chefe do departamento marítimo, e o engenheiro naval
Mancelos. Os tripulantes de ambos os barcos iam munidos de bóias de
salvação cingidas em roda do tronco. Numa catraia da barra
acompanhavam os dois barcos Mariano de Carvalho, o chefe do
departamento marítimo e o piloto-mor. Eram três horas da tarde quando
começaram as experiências. Os dois barcos salva-vidas
adiantaram-se para o mar, indo ao encontro das ondas mais
embravecidas, com tanta persistência, que chegaram por momentos a
aterrar a multidão, que assistia a este espectáculo. Os barcos
sumiam-se de vez em quando nas grandes cavidades das ondas. O
salva-vidas antigo galgava essas ondas como uma casca do noz, o
salva-vidas de Relvas furava-as, batendo-se com elas, a saindo
sempre triunfante do combate, apesar de
ter quebrado num dos encontros a cana do leme. Duraram uma hora
estas experiências, que mostravam as vantagens incontestáveis do
salva-vidas Relvas sobre o salva-vidas antigo, e de volta à
cantareira, Carlos Relvas sujeitou ainda o seu barco a uma nova
experiência, que mais eloquentemente ainda provou a excelência da
sua invenção. Fez voltar o barco, que tornou imediatamente à sua
posição natural, o que demonstrava que, mesmo no caso das ondas o
voltarem, os tripulantes não corriam perigo algum, agarrando se aos
arcos de ferro, visto que ele voltava logo à sua primitiva posição.
Carlos Relvas conseguira o seu fim. Depois de prestar grandes serviços
à arte, prestava serviços à humanidade, depois de ser um grande
artista, era um grande benemérito.