As fontes para a História Militar portuguesa
nos séculos XVIII e XIX são muito vastas. Nesta comunicação não
apresentarei uma listagem exaustiva dessas fontes, mas sim o conjunto de
fontes existentes para uma caracterização social do corpo militar
português, na época compreendida entre finais do século XVIII e 1820,
época determinante para a história portuguesa.
É minha convicção que um estudo de tipo
sociológico e quantitativo do corpo dos oficiais, nos permitirá
ultrapassar definitivamente as conjecturas mais ou menos sustentadas sobre a
composição social dos oficiais ao longo deste período de crise do Antigo
Regime político. Estudos que deram bons resultados em países como a
Espanha, a França e a Inglaterra.1
Mas, antes de tudo, gostava de tentar mostrar
por que é que este estudo ainda não foi realizado em Portugal; ou melhor,
por que é que não houve necessidade de confirmar empiricamente o que se
tem sustentado, neste último século de historiografia, sobre o Exército.
A verdade é que, as bases em que tem
assentado as poucas sínteses de história militar publicadas até hoje
são, na sua maior parte, devedoras das obras realizadas a partir de finais
do século XIX, fundamentalmente por militares, e que, por isso, são
consideradas como definitivas. Ora, não parece que, assim, se possam
considerar obras como as de Latino Coelho, para referir o exemplo mais
paradigmático. Na verdade, a História política e militar de Portugal
desde os fins do século XVIII até 1814, 2 não pode ser mais
usada como se de uma fonte se tratasse, pelos investigadores que se
interessam pela história militar do período, e muito menos como base para
um estudo da História Militar portuguesa, já que Latino Coelho, no 1.º
capítulo do 3.º volume, escreveu um resumo da história do exército até
ao final do século XVIII. É imperioso fazer uma crítica prévia a tal
obra, antes de a utilizar, pois só a partir daí podemos compreender o
alcance da obra.
LATINO COELHO
Vejamos, então, quem é Latino Coelho em
1874, quando sai o 1.º volume da sua obra mais importante. Oficial de
Engenharia, com o posto de Major, professor da Escola Politécnica de que
será director, tinha sido deputado em 1855 e 1859, era sócio efectivo da
Academia de Ciências, de que era secretário desde 1856, vogal do Conselho
Geral de Instrução Pública, membro da Comissão encarregue da reforma da
Academia de Belas-Artes, director do "Diário de Lisboa", redactor
principal do "Jornal do Comércio", ministro da Marinha em
1868-69, no governo Reformista de Sá da Bandeira e Par do Reino. Mas mais
importante do que este rol de actividades variadas, e que, note-se, estão
pouco relacionadas com a profissão das armas, é sabermos que se tinha
declarado Iberista em 1848 e que, desde os anos 50 do século, era
Republicano, pertencendo à sua ala democrata, vindo mesmo a ser eleito
deputado nas suas listas. 3
Ora, o Republicanismo no século XIX tem uma
ideologia que determina em tudo a actividade dos seus membros - o
positivismo, e que também determina a própria produção historiográfica
de Latino Coelho, já que para ele a história não deve ser mais do que «o
verdadeiro conhecimento das leis fundamentais no progresso das sociedades»
e deve ter como objectivo o «descobrimento da admirável legislação que
rege o universo material». 4 Esta ideologia vai levar os
republicanos, do século XIX entenda-se, (já que o programa nunca irá ser
aplicado mesmo com a implantação da República), a defenderem o aumento da
participação política da população em geral: a defenderem a Democracia
em oposição ao Liberalismo.
A defesa da democratização da sociedade vai
levar os republicanos a proporem para a instituição militar, que é o que
aqui interessa notar, a criação de um exército de quadros em oposição
ao que consideram «o Exército permanente», invenção do Absolutismo
monárquico, como disse Henriques Nogueira, um dos primeiros doutrinários
republicanos, exército este considerado também como um «instrumento nulo
ou impotente para o bem, activo e poderosíssimo para o mal». O que se quer
criar é um exército composto de cidadãos-soldados, e assim acabar com um
exército que, ainda segundo Henriques Nogueira, era composto de «indivíduos
estúpidos e pervertidos». No fundo, o que se defende é um exército do
tipo suíço que, como afirmou Joaquim de Carvalho, «fascinava estes homens».
5
Esta política defendida em 1851, vai ser
novamente publicitada, agora por Oliveira Martins no seu Portugal e o
Socialismo, de 1873, ao defender na "Súmula legislativa da futura
revolução portuguesa", no ponto referente ao Exército, que
"perdido o carácter de força agressiva, o exército reduz-se à norma
de segurança interna e de defesa nacional. Conscrição universal,
abolição da substituição, organização de reservas, são os trapos
normais da constituição da força pública; assim como vai ser repetida
pelo Centro Republicano Federal de Lisboa, que no ponto 20 do seu programa
apresentado em 1873 afirma: "Queremos a abolição do exército
permanente que é uma fonte de esgoto de todas as forças vivas da nação,
um foco permanente de desmoralização e um perigo para a liberdade". 6
Latino Coelho, no 1.º capítulo do 3.º
volume da sua História, faz eco destas proclamações republicanas, ao
afirmar, referindo-se ao exército do Renascimento, que "a guerra em
vez de ser um instinto natural e uma lastimosa necessidade, degenera pouco a
pouco num ofício, deixa de ser heróica devoção para converter-se numa
indústria proveitosa". Esta afirmação não pode deixar de ser
relacionada com a má imagem que têm os reis de Quinhentos, para todos os
historiadores portugueses do século XIX. Mas, o que é mais interessante é
a relação que Latino Coelho faz entre o exército renascentista, o
exército permanente, e o do século XIX, fazendo-se mais uma vez eco das
críticas republicanas e democratas ao exército da sua época ao afirmar
que, como na Renascença «o império da plutocracia, [isto é dos
privilégios da nobreza] ainda hoje [se conserva] no sistema das remissões».
Mas também afirma, o que é significativo, que no sistema militar criado em
1570 existia «a instituição democrática das eleições para todos os
postos da milícia, segundo se praticou ... nos primeiros exércitos da
republica franceza», sendo que a organização militar de D. Sebastião é
um «bosquejo do sistema guerreiro da Suissa». 7 Não é muito
importante para o assunto aqui tratado, mas vale a pena notar que esta
afirmação do autor tem como base uma estranha ignorância do significado
da palavra eleição. Como era de se esperar, os oficiais das Companhias de
Ordenanças eram eleitos - escolhidos - pelas câmaras municipais, e
não pelos soldados.
Na verdade, o que Latino Coelho nos mostra,
por analogia, é a aceitação completa daquilo que se convencionou chamar a
"Nação em Armas", pelo movimento republicano e democrata
português. Na verdade, o que o republicanismo sempre defendeu é a
organização do exército como representante da "Nação em
Armas", como instituição militar formada por cidadãos-soldados,
fórmula que será usada na 1.ª lei de recrutamento da República, de 2 de
Março de 1911. O conceito apareceu, como se sabe, com o decreto de 23 de
Agosto de 1793, em que a Convenção francesa decretou a levée en masse. O
princípio do serviço militar obrigatório e individual durou pouco tempo
em França, já que, em 1799, o princípio do serviço militar universal foi
posto em causa com a regulamentação do serviço voluntário e da
autorização da substituição.
A "NAÇÃO EM ARMAS"
Foi em 1813, com a criação de uma milícia
popular na Prússia para combater os exércitos napoleónicos, que se fez
apelo de novo à "Nação em Armas". Na verdade, com a
emancipação dos servos prussianos, começou na Alemanha o processo de
transformação de súbditos em cidadãos. Em 1813, o Rei da Prússia foi
obrigado a introduzir o recrutamento universal sem excepções. Mas, esta
experiência também durou pouco tempo. Com o fim da guerra, em 1815, o
exército prussiano voltou à sua antiga organização, com pequenos
efectivos recrutados por longo tempo e numa faixa restrita da população.
Mas, o conceito de "Nação em
Armas" manteve-se em 3 extractos diferenciados
-
1.º associado à Revolução.
-
2.º representando um verdadeiro exército
de cidadãos.
-
Por último (3.º), representando a
capacidade de um Estado recrutar sem excepções e sem renunciar à
existência de um Exército profissional.
Devido à associação à Revolução, a
ideia voltou à superfície em meados do século XIX. Como exército de
cidadãos, reapareceu com os movimentos democráticos, republicanos ou
socialistas. Como possibilidade de recrutar sem excepções, reapareceu na
Prússia, em 1859, com as grandes reformas do Exército Prussiano realizadas
sob a direcção do futuro Imperador Guilherme I. Foi este último legado
que imperou com as vitórias prussianas de 1866 e 1870, que mostraram as
virtudes de um serviço militar curto e provido de reservas numerosas. Mas,
não nos devemos esquecer que, por meio da escola militar alemã da segunda
metade do século XIX, estes legado ligava-se com as reformas políticas, de
sentido democrático, realizadas na Prússia, entre 1807 e 1813, e por meio
das obras de Clausewitz se ligava a uma interpretação positiva do legado
revolucionário francês, na sua vertente militar. 8 Isto é, era
possível aos democratas aceitar a experiência militar prussiana, mesmo que
no fundo esta forma de organização não fosse agente da democracia, mas do
militarismo. 9 Desde cedo que em Portugal se aceitou esta nova
realidade e se defendeu a reorganização do Exército em novos moldes,
mesmo antes da Guerra Franco-Prussiana de 1870, não tanto como uma proposta
radical, mas tão só reformista, com claras semelhanças com as propostas-
democratas e republicanas.
Na verdade, numa mensagem de Junho de 1870 ao
Duque de Saldanha, chefe do Governo após o golpe conhecido pela Saldanhada,
a Comissão Central 1.º de Dezembro de 1640, que deu, origem à Sociedade
Histórica da Independência de Portugal, aprovou um texto escrito por uma
comissão de que era membro Aires de Sá Nogueira, irmão do Marquês de Sá
da Bandeira, e seu colaborador directo, que defendia que "na opinião
autorizada do sr. Rustow, distintíssimo oficial prussiano, que acaba de
escrever um livro admirável acerca das instituições militares, o
exército, qual o propõe a Comissão 1.º de Dezembro, que os especialistas
denominam de quadro, é o único digno de uma nação civilizada, é o ideal
de máxima perfeição". A ideia, segundo o próprio Sá Nogueira
divulgou, era criar um exército de 200.000 homens, incluindo as reservas
evidentemente. 0 que se queria, como a mensagem resumia, era "a
reformação completa do exército, tornando-o uma instituição
verdadeiramente nacional, instrumento forte e inquebrantável de
independência, defesa e liberdade" (1.º ponto). No 3.º ponto,
defendia-se um "serviço obrigatório para todos os cidadãos válidos,
tornando-se o núcleo do exército uma escola e um viveiro, sempre em
actividade, das reservas", e por isso, digo eu, escola da nação. 10
Este tipo de Exército, só veio a ser
tentado em Portugal com a reorganização de 1884, mas que nunca foi posta
em prática.
O que interessa sublinhar é que esta visão
do Exército, como devendo ser uma «Nação em Armas» e escola da Nação,
melhor seria dizer escola do nacionalismo, vai levar a uma crítica
permanente ao Exército pelos intelectuais portugueses da chamada 3.ª
geração romântica. O que se critica não é o Exército em si mesmo, mas
sim o conceito de exército permanente, ao serviço do Estado repressivo, e
sobretudo, no caso português, decadente. Os intelectuais portugueses que
formavam, o que o Prof. António José Saraiva chamou, a Tertúlia
Ocidental, não são por isso necessariamente pacifistas; não, o
próprio Antero de Quental em 1865, pensou em se alistar nos voluntários
garibaldinos, afirmando que «eu nem imaginariamente calculo amassa
formidável de ensinos em um ou dois anos da miserável mas forte vida duns
soldados rasos». 11 Aqui, se nota outra vez o leit-motiv das
críticas ao exército do Liberalismo vigente - o exército como escola de
virtudes. Mas não um exército qualquer, um exército revolucionário ao
serviço da emancipação e unificação dos povos e da revolução. Esta
visão veio influenciar, por intermédio de António Sérgio, a obra de
Eduardo Lourenço, publicada em 1974, mas escrita na sua maior parte em
1958, Os militares e o poder. 12
A impregnação da teoria da «Nação em
Armas» nos estudos históricos sobre o Exército teve, e ainda tem, duas
consequências. A 1.ª, é que se perdeu a visão de um exército de Antigo
Regime socialmente complexo, pois toda a oficialidade passa, de acordo com
esta teoria, a ser considerada como aristocrata ou cliente directa da
Aristocracia, e após as chamadas revoluções burguesas, como representante
da burguesia dominante. 13
Latino Coelho, na obra que tenho vindo a
citar, Carlos Selvagem no seu Portugal Militar, 14 o Padre
Ernesto Sales, em 1937, na sua obra O Conde de Lippe, 15
Fernando Pereira Marques actualmente, este último directamente influenciado
por Eduardo Lourenço, são eco desta visão simplista da composição
social do Exército. A verdade é que esta visão é completamente redutora
da realidade. O Exército, sendo necessariamente espelho da realidade social
de um país, não é necessariamente dirigido unicamente por membros da
elite dirigente tradicional, pois há sempre, por mais pequena que ela seja,
mobilidade social. Mas, o que é importante salientar é que o patrocínio
da aristocracia, digamos mais precisamente da fidalguia, não é um meio
privilegiado de entrada dos homens destinados aos postos mais subalternos da
oficialidade, e no caso português nem tão pouco é o principal.
Segundo parece, a maior parte da oficialidade
vem desse estrato muito pouco conhecido em Portugal e que a documentação
chama de «gente nobre da governança das terras» e para o qual Baquero
Moreno já mostrou a importância que tem o seu estudo. Na verdade, o
recrutamento dos oficiais é, neste período e com certeza nos períodos
anteriores, regional e, por isso, em princípio, mais dependente das
relações de clientelismo local do que das relações de clientelismo com a
nobreza titulada. Na verdade, corpos com recrutamento quase exclusivamente
aristocrático, no sentido restrito do termo, isto ainda em 1806, são os 7
regimentos da guarnição de Lisboa: os regimentos de cavalaria de
Alcântara, Meclemburgo e do Cais, e os de infantaria de Lippe, Freire,
Peniche e Vieira Teles, os futuros regimentos de cavalaria n.os 1, 4 e 7, e
os de infantaria 1, 4, 13 e 16.
O CORPO DE OFICIAIS
Para além de reduzir o campo de observação
social, a ideologia da "Nação em Armas" impede-nos de ver a
diferenciação que se dá no interior da própria instituição militar.
Isto é, não leva a pôr o problema das diferentes perspectivas de carreira
que cada oficial tem quando começa a sua carreira 'militar, as decisões
individuais que levam cada um dos oficiais a optar por uma ou outra
solução, quando se lhe proporcionam condições que lhe permitam promover
a sua carreira; finalmente, não nos permite ver as diferenças ideológicas
que num determinado momento dividem a instituição. Na verdade, o exército
nesta época não é uma instituição imóvel, separada da sociedade em
geral e virada para si mesma. Quero com isto dizer que o corpo de oficiais,
neste período, não aceita necessariamente os pressupostos que determinam a
sua carreira. Em resumo, a visão do Exército, como devendo ser, e ter
sido, uma "Nação em Armas" não nos permite vislumbrar o
problema social que existe nos exércitos, não só do Antigo Regime como
nos do século XIX, e que determina muitas das acções dos seus oficiais. 16
Por isto que resumidamente disse, parece-me
necessário ultrapassar os anteriores estudos sobre o exército português
do Antigo Regime que tinham, como penso ter provado, uma visão ideológica
e, por isso mesmo, necessariamente redutora da realidade exército, e passar
a fazer investigações que ultrapassem o âmbito da história
político-militar, realizando estudos sobre a composição social do corpo
de oficiais do Exército, assim como da sua própria organização interna.
Só assim se poderá compreender uma parte importante da história política
da época, e sobretudo da futura, da história do Liberalismo português e
do peso que o Exército teve nessa época.
Para este estudo social, poderemos utilizar a
teoria das elites criada por Pareto e Mosca 17, em oposição à
teoria das classes de Marx, com o objectivo de descortinar a circulação
das elites no interior do exército. Tentar, no fundo, descobrir se é
verdade ou não que o exército se tenha tornado, no decorrer do século XIX,
no meio preferido de promoção social, sempre referido mas nunca provado.
Descobrir por isso qual o tipo de recrutamento social do corpo de oficiais,
assim como do recrutamento geográfico.
Como disse, as fontes são abundantes e
facilmente acessíveis.
FONTES PARA O ESTUDO DO
CORPO DE OFICIAIS
Listagens nominativas de oficiais
encontram-se nos Almanaqes de Lisboa, publicados pela Academia de
Ciências a partir de 1786, e a partir de 1811 nos Almanaques Militares,
sendo que existem algumas listas manuscritas no Arquivo Histórico Militar
para períodos anteriores. Para o seguimento das carreiras existem
publicadas, e com muito bons índices onomásticos, os diferentes volumes da
obra do Coronel Madureira dos Santos, Católogo dos decretos do Conselho
da Guerra,18 e os Almanaques Militares a partir da
segunda metade do século XIX, e também completamente indexados pelo
último apelido do oficial os Livros Mestres Regimentais e os Processos
Individuais dos Oficiais, corpos d.o Arquivo Histórico Militar. Estes
índices não são tão fáceis de consultar como à partida pode parecer,
porque muitas vezes o último apelido não é mais que o apelido mais
utilizado pelo oficial. Os processos individuais têm um índice pelo
primeiro volume oficial, que permite ultrapassar esta dificuldade. Existe um
outro corpo valioso, não indexado, que é formado pelos Livros de
Vencimentos Regimentais e que nos permite vislumbrar a carreira dos oficiais
por um outro prisma.
Nos livros Mestres Regimentais, a primeira
patente do oficial tem a descrição sinalética do oficial assim como, mais
ou menos completos, os seus dados biográficos. Estes livros poderão
permitir um estudo da incidência geográfica do recrutamento para todo o
exército, e ser uma base para a sua caracterização social.
Um dos problemas de mais difícil
investigação, é o da definição do estatuto social do oficial. Quando
não nos é claramente dado pelos Livros Mestres e pelos processos
individuais, que é o que acontece muito frequentemente, sobretudo no
período anterior a 1809, terá que se procurar no Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, não só nas Consultas do Conselho de Guerra, como nos
Decretamentos Militares do Ministério do Reino, 1.º passo a dar, como em
outros corpos do Arquivo Nacional: as Habilitações às Ordens Militares,
os Vínculos, os Testamentos, e finalmente, para uma investigação mais
demorada, nos Registos Paroquiais.
Mesmo com estas dificuldades, este vasto rol
de fontes disponíveis permite uma determinação do estatuto e carreira dos
oficiais, nem que seja em termos muito gerais, solução encontrada por
Fernandez Basterreche, na sua; obra sobre o Exército espanhol do século
XIX, assim como dos problemas encontrados pelos oficiais no decurso da
sua vida. Na verdade, nos diferentes livros de vencimentos, encontram-se
entre muitas outras informações, todos os abatimentos feitos ao pré, por
motivos de dívidas contraídas.
Para além deste primeiro passo,
absolutamente necessário, uma investigação sobre os oficiais não poderá
deixar de levantar aqueles que passaram pelas instituições de ensino
militar ou para-militar. Refiro-me ao Colégio dos Nobres, às Academias de
Fortificação e de Marinha, ao Colégio Militar, assim como às Aulas
Regimentais. Dados sobre este assunto, encontram-se na 5.ª secção do A.
H. M. A documentação do Colégio dos Nobres encontra-se na Torre do Tombo.
19
Um outro estudo a realizar é o das obras de
carácter militar publicadas neste período. Uma análise aprofundada do seu
conteúdo, mostrará não só as preocupações dominantes no seio do corpo
de oficiais, mas também as condições e perspectivas da carreira militar,
e sobretudo da sua ligação ao ambiente internacional da época. Uma parte
substancial destas obras encontra-se disponível na Biblioteca do Estado
Maior do Exército, na Secção dos Paulistas. 20
Com estes estudos poderemos, estou convicto,
descobrir quem é promovido e reformado, em 1802, após a Guerra das
Laranjas, em 1805 e 1806, quando se prepara a reorganização do exército,
é em 1808-1809, imediatamente após a revolta anti-francesa, e sobretudo o
porquê de tanta modificação, que criou indubitavelmente uma grande
mobilidade no interior do exército. Poderemos possivelmente compreender que
uma primeira grande modificação no recrutamento social dos oficiais se
terá dado a partir de 1797, quando a preparação para a guerra com a
Espanha e a França levou a um aumento muito significativo do esforço
militar, tanto ao nível financeiro, como, e sobretudo, ao nível dos
efectivos; que os acontecimentos de 1807/1808 permitiram aumentar, ainda
mais significativamente, a mobilidade social no interior do corpo de
oficiais. Isto é, poderemos possivelmente descobrir que 1820 não é mais
do que o resultado da enorme modificação social operada no interior do
exército em 1808, quando os oficiais retidos em postos intermédios vêem a
sua carreira aberta a novos voos, devido ao desaparecimento do comando
aristocrático do Exército, primeiro quando viaja com o rei para o Brasil,
pouco depois quando se dirige para França, comandando a Legião. 21
Poderemos, então, e em bases sólidas,
descortinar por que é que a revolução de 1820 é um pronunciamento
militar e não um golpe de estado. Podermos, então, perceber porque é que
em 1820 todo o exército, incluindo os Magessi, e os Silveiras, como
escreveu Mouzinho da Silveira, aderiram convictamente a este pronunciamento.
22 Poderemos, finalmente, compreender por que é que das diferentes
instituições do estado português da altura, só o Exército actuou como
um todo, propondo-se dirigir as reformas que uma parte substancial da élite
dirigente considerava necessárias.
NOTAS
* Este
texto foi apresentando como comunicação ao II. Colóquio da Comissão
Portuguesa de História Militar: Panorama e Perspectivas actuais da
História Militar em Portugal, realizado nos dias 5 a 7 de Novembro de
1991, tendo saído nas Actas, Lisboa, CPHM, 1993, págs. 225-235. Não
tendo havido revisão das provas, a comunicação saiu com bastantes
gralhas, e até com o nome do autor errado! Esta é, por isso, a versão
corrigida.
1. Vejam-se, entre outros, para a
Espanha Fernandez Bastarreche, El Exercito Espanol en el siglo XIX,
Madrid, Siglo XXI, 1978; para a Grã-Bretanha, P. E. Razell, "Social
Origins of Officers in the Indian and British Home Army 1758-1962, British
Journal of Sociology, 14, 1963, págs. 248-260; para França, Jean-Paul
Bertrand, "Napoleon's Oficers", Past & Present, 112,
1986, págs. 91-111.
2. Obra em 3 volumes, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1874, 1885 e 1891.
3. V. Inocêncio Francisco da Silva e
Brito Aranha, Dicionário Bibliográfico Português, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1860 a 1885, tomo 5.º, págs. 37-41 e 13.º, págs. 97-98, e
Joaquim de Carvalho, "Formação da ideologia republicana (1820-1880).,
in Luís de Montalvor (dir.), História do Regímen Republicano em
Portugal, Lisboa, 1930, vol. I, pág. 250.
4. Latino Coelho, ob. cit.,
tomo I, pág. XXVI.
5. J. de Carvalho, ob. cit.,
págs. 224-25.
6. cit. idem, ibidem.
7. ob. cit., tomo
III, pág.
12.
8. A obra de referência sobre
Clausewitz é de Raymond Aron, Penser Ia guerre, Clausewitz, 2 vols.,
Paris, Gallimard, 1976; sobre este assunto v. um bom resumo das opiniões do
autor em "Clausewitz, stratége et patriote", in Raymond Aron, Sur
Clausewitz, Bruxelas, Editions Complexe, 1987, págs. 13-41.
9. Cf. Hew
Strachan, "The Nation
in Arms", in Geoffrey Best (ed.), The Permanent Revolution. The
French Revolution and its Legacy, 1789-1989, Londres, Fontana, 1989
(reimpressão da 1.ª edição, 1988), págs. 49-73, v. sobretudo as págs.
62-70.
10. V. E. A. Ramos da Costa
(comp.), História
da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1861 a 1940,
Lisboa, 1940, págs. 32-37; Rustow escreveu, Die Feldherrunkunts des
neunzethen Jahrunderts, 2 vols., Berlim, 1864. A tradução francesa, L'Art
Militaire au XIX siècle. Stratégie, histoire militaire apareceu em 1869.
A citação de Aires de Sá Nogueira é retirada do capítulo XII do Livro
IV: "Progresso da Arte militar desde 1832 até hoje".
11. Antero de Quental, Sonetos,
org. António Sérgio, 4.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1972, págs. 112-113.
12. Eduardo Lourenço, Os Militares
e o Poder, Lisboa, Arcádia, 1975.
13. Esta visão de um exército de
Antigo Regime dominado totalmente pela aristocracia é um dos pontos
centrais da obra de Fernando Pereira Marques, Exército e Sociedade em
Portugal, Lisboa, Alfa, 1991 (1.ª ed., 1981), seguindo com uma pequena
diferença Latino Coelho. Este defende que todos os oficiais eram fidalgos
ou nobres, o que para ele era a mesma coisa; Pereira Marques defende que o
exército era dirigido por aristocratas, mas a maior parte dos postos
intermédios era constituído por criados, ou pela sua clientela directa; v.
ob. cit., págs. 32-38. A base para esta afirmação é a obra
anónima que apareceu com autoria do Duque de Châtelet, Voyage en
Portugal, Paris, 1801, 2.º vol., pág. 32 (a 1.ª edição é de 1789).
Mas o autor deste último livro não faz mais do que desenvolver o que
Dumouriez afirmara na sua obra État présent du Royaume de Portugal em
l'année 1766, Lausanne, 1775, pág. 107: "Les officiers de ces
troupes étoient les valets ou les écuyers dos colonels".
14. Carlos Selvagem, Portugal
Militar. Compêndio de História Militar e Naval de Portugal, ed.
suplementar, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913.
15. Ernesto Augusto Pereira Sales, O
Conde de Lippe em Portugal, V. N. de Famalicão, Publicações da
Comissão de História Militar, 1937.
16. Émile
Léonard, num célebre
artigo, "La question sociale dans l'Armée française, Annales,
3.º ano, n.º 2, Abril-Junho, 1948, págs. 135-149, levantou muito
claramente este problema. Para uma visão mais actual v. André Corvisier, Armées
et Sociétès en Europe de 1494 à 1789, Paris, P.U.F., 1976.
17. v. T. E.
Bottomore, Elites and
Society, Penguin Books, 1964 (2.ª ed., Londres, Routledge,1993) para
uma apreciação crítica da teoria das elites, sobretudo o capítulo III:
"Politics and the circulation of elites", págs. 48-67. Para uma
visão mais actualizada do problema v. B. Badie e P. Birnbaum, Sociologie
de l'Etat, Paris, Grasset, 1975.
18. Catálogo dos Decretos do
Extinto Conselho de Guerra, na parte não publicada pelo general Cláudio de
Chaby, 7 vols, Separatas do Boletim do Arquivo Histórico Militar.
19. A importância dos «espaços da
sociabilidade científica», como a Sociedade Real Marítima, Militar e
Geographica ..., composta maioritariamente por militares formados por
estas instituições de ensino, para a formação da ideologia liberal foi
salientada por Maria de Fátima Nunes, O Liberalismo Português:
Ideários e Ciências. O universo de Marino Miguel Franzini (1800-1860),
Lisboa, INIC, 1988.
20. Para o levantamento destas obras
existe a obra do General Francisco A. Martins de Carvalho, Dicionário
Bibliográfico Militar Português, 2.ª ed., 2 vols., Lisboa, Academia
das Ciências, 1976-79, até à Letra M (1.ª ed., 1891). O manuscrito
preparatório desta segunda edição encontra-se no Arquivo Histórico
Militar. [Posteriormente à publicação deste artigo foi publicado o livro
de Rui Bebiano, A Pena de Marte: Escrita da Guerra em Portugal e na
Europa (sécs. XVI-XVIII), Coimbra, Minerva ("Minerva Histórica,
20" ), 2000]
21. É preciso salientar que já nesta
época o generalato não é exclusivamente aristocrático (v. decreto de D.
Maria I de 13 de Maio de 1789, tornando os Generais automaticamente fidalgos
da Casa. Real), mas que naturalmente os fidalgos tinham mais facilidades em
chegar a estes postos. Uma das criticas que o Morgado de Mateus fez ao
exército em 1801, quando se preparava a reorganização do Exército após a
"Guerra das Laranjas", centrou-se nos coronéis que considerava na
sua maior parte incapazes. A crítica não é compreensível se não se
perceber que estes na sua maior parte não eram aristocratas. O que aqui quero
salientar é que o "desaparecimento" dos generais aristocratas vai
aumentar necessariamente o número de generais vindos de um "estrato
intermédio".
22. cf. Mouzinho da Silveira,
"Memória acerca do restabelecimento da Carta Constitucional e do Trono
de D. Maria" in Ler História, 2, 1983, pág. 149. A nota que
explicita estes nomes induz em erro. Mouzinho refere-se a duas personagens e
não a uma única quando refere «os Silveiras Magessi»: Silveira refere-se
ao 2.º Conde de Amarante, 1.º Marquês de Chaves, o segundo nome
refere-se, esse sim, ao Brigadeiro Magessi. Os dois tinham sido chefes das
Revoltas anti-contitucionais de 1823 e 1826.
© Manuel Amaral, 2000-2010
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