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O
Exército Português
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Manuel Amaral
Introdução A
história da Guerra Peninsular tem seguido sempre um processo narrativo
que, começando com a Revolta do Dois de Maio em Madrid, descreve
sucessivamente a revolta das Astúrias, da Galiza, da Catalunha e o
cerco de Saragoça, passa depois para a descrição da vitória francesa
de Medina del Rioseco, a entrada de José Bonaparte em Madrid, passando
posteriormente para as operações do marechal Moncey em Valência e de
Dupont na Andaluzia. A narrativa pode começar, ou não, com a Primeira
Invasão de Portugal, mas aborda sempre, naturalmente, a desagregação
da Casa Real espanhola e as consequências que essa luta intestina
trouxe para a prossecução da política de Napoleão Bonaparte para a
península Ibérica. Depois de relatar os acontecimentos em Espanha a
narrativa passa normalmente para Portugal, onde a sublevação
portuguesa é muito rapidamente descrita, abordando-se essencialmente o
desembarque britânico na foz do rio Mondego, e as duas confrontações
entre os exércitos britânico e francês na Roliça e no Vimeiro e a
sua consequência: a Convenção entre o Exército Francês e o Exército
Britânico. Esta
organização da narrativa nada tem de errado, evidentemente, mas ao
isolar os acontecimentos portugueses dos espanhóis tem obviado a que se
perceba a interacção que os factos, de um e do outro lado da
fronteira, tiveram entre si, e que permitiram o rápido esboroar da
primeira campanha francesa na península. Esta é tão-somente uma primeira tentativa de ver a revolta dos dois países ibéricos num contexto global, apostando numa perspectiva sincrónica. Penso que fica mais claro, assim, o que aconteceu em Portugal, e sobretudo penso que fica bastante mais claro o contributo do Exército Português na revolta, sendo que, por motivos mais ideológicos do que historiográficos, se tem dado muita importância à participação da igreja portuguesa na revolta, confundindo-se datas e objectivos, 1809 com 1808, a sublevação com a recomposição do Estado, e à falta de uma direcção política da classe média lusa – a que se dava “antigamente” o nome de burguesia1.
A
Sublevação Nacional no Norte e Centro de Portugal
Na
segunda-feira dia 6 de Junho de 18082,
no Porto, o general espanhol Domingos Ballesta, comandante das forças
de ocupação espanholas da província de Entre-Douro-e-Minho desde a
morte do general Taranco que as tinha dirigido na invasão de Portugal
em Dezembro de 1807, prendeu o general francês Quesnel, enviado por
Junot para governar as províncias do norte3. O
general espanhol cumpria ordens da Junta Governativa da Galiza, criada
após a revolta de 30 de Maio na Corunha e no Ferrol, uma das muitas
Juntas de Governo, formadas um pouco por toda a Espanha após o
levantamento madrileno do Dois de Maio, e regressava para preparar a
luta contra o Exército Francês de ocupação de Espanha. O
general Ballesta reuniu à sua volta as antigas autoridades da cidade,
assim como o governador interino das Armas do Partido do Porto, o
brigadeiro Luís de Oliveira da Costa. Informou-os da retirada das forças
espanholas e aconselhou-os a restabelecer o governo legítimo. A
proposta era mais fácil de expressar do que realizar. O
general de Divisão Loison, comandante da 2.ª Divisão do Exército de
Junot, o governador de Portugal em nome de Napoleão Bonaparte, acabava
de chegar a Almeida com quatro mil homens, estacionando entre Almeida e
Cidade Rodrigo, tentando manter as comunicações entre o “Exército
de Portugal” – o antigo 1.º Corpo de Observação da Gironda – e
o Corpo de Observação dos Pirenéus, comandado pelo marechal Bessières,
agrupado à volta de Burgos. Por isso, o governador interino decidiu
manter o status quo. Mas não ficou inactivo. Chamou de Viana do Castelo um
destacamento do Regimento de Artilharia n.º 4, comando pelo capitão
Mariz e começou a reorganizar os Regimentos de Milícias do Porto, da
Maia, de Penafiel e de Aveiro4.
As Milícias tinham sido licenciadas pelo general Taranco, enquanto
governador da província, em nome da rainha da Etrúria, ordem que tinha
sido realizada de acordo com o general Junot, e confirmada por ele após
1 de Fevereiro de 1808, quando assumiu o governo de Portugal. Era
portanto uma medida ilegal, face ao decidido pelo governo francês. O
brigadeiro Oliveira e Costa estava a tomar decisões que preparavam o
Porto para a defesa, mas a prisão do major Raimundo Pinheiro,
governador do Castelo da Foz, por ter arvorado a bandeira portuguesa e
entrado em contacto com um navio de guerra britânico, faziam desconfiar
da sua lealdade, que parece ser tão-somente ponderação face ao
inimigo. Entretanto,
devido à divulgação da saída das tropas espanholas do Porto e do
suposto restabelecimento do governo em nome do príncipe regente, outras
povoações do Norte de Portugal declararam a restauração do governo
nas suas respectivas localidades. Em Chaves, Miranda, Moncorvo, em Melgaço,
no dia 9, Monção, Braga e um pouco por toda a parte. Os militares
tomaram sempre a direcção política dos levantamentos populares, e
decidiram desde o primeiro momento a organização dos regimentos de
linha, de infantaria e cavalaria, do Exército, e dos regimentos de Milícias,
assim como a rápida subordinação a uma Junta de Governo. Quando,
no dia 18 de Junho se soube que iam chegar tropas francesas ao Porto, a
população e os soldados do destacamento de artilharia revoltaram-se
contra as medidas tomadas pelo governador das Armas. Durante todo o dia
e toda a noite a excitação foi grande. O governador interino foi
“destituído” e a função entregue ao coronel José Cardoso de
Meneses, comandante do Regimento de Infantaria n.º 6, mas que, acusado
de tentar entrar em contacto com Junot, foi por sua vez “destituído”
e perseguido. No dia seguinte algumas personalidades reuniram-se no paço
episcopal e escolheram uma Junta de Governo presidida pelo bispo, já
que o governador de Armas nomeado em meados de 1807, o general Bernardim
Freire de Andrade, não estava em funções e na cidade. Assim,
escolheu-se o bispo, que era o que determinava o Alvará sobre a
substituição dos Governadores de inícios de 1777. O
governo interino das Armas foi entregue a um novo oficial, o coronel
graduado de cavalaria Francisco Guedes de Carvalho Meneses da Costa,
antigo governador de Moçambique. Nesse mesmo dia, novo destacamento do
Regimento de Artilharia n.º 4 chegou ao Porto e a Junta Provisional do
Supremo Governo decidiu reorganizar o Exército, de acordo com a sua
antiga estrutura. Em
Bragança, no dia 11 de Junho, o general Sepúlveda tinha tomado conta
do poder criado por pressão da população, escrito para Lisboa
afirmando que os tumultos estavam controlados, sido eleito presidente da
junta de governo, criada em 21 de Junho, e mandado recriar os antigos
cinco regimentos de linha e os cinco de Milícias da Província. Quando
os corpos começaram a ter uma organização mínima, mandou algumas forças
para os locais onde seria possível atravessar o rio Douro. Vila
Real sublevou-se em 16 de Junho, sob a direcção do comandante do
Regimento de Cavalaria n.º 6, o tenente-coronel Francisco da Silveira.
Enquanto antigo comandante do Corpo de Caçadores Voluntários de Trás-os-Montes,
criado em 1801 durante a guerra com a Espanha e a França, mandou
reorganizá-lo e entregou a formação das oito companhias aos seus
antigos comandantes. A companhia de Vila Real dirigiu-se para a serra do
Marão, ao saber da chegada de uma coluna francesa vinda da Beira. O
comandante-chefe francês soube dos acontecimentos no Porto três dias
depois, em 9 de Junho. No dia seguinte, de acordo com um plano acordado
desde 28 de Maio5,
prendeu e desarmou todas as tropas espanholas ainda em Portugal e
colocou-as nos navios de guerra portugueses, fundeados no meio do Tejo,
que não tinham podido deslocar-se para o Brasil em Novembro de 1807. Em
12 de Junho Junot enviou ordens a Loison para se dirigir para o Porto a
tomar o comando das províncias do Norte. Tendo recebido as ordens no
dia 16, o recém-nomeado conde do Império saiu de Almeida no dia
seguinte, 17 de Junho. A coluna militar chegou a Lamego no dia 20. No
dia 21 atravessou o rio na barca da Régua e dirigiu-se para Amarante.
As forças militares que o tenente-coronel Silveira organizou com a
ajuda dos seus antigos subordinados, todos oficiais dos regimentos de Trás-os-Montes,
esperaram a força de Loison na Serra do Marão. A vinda dos franceses
era conhecida desde dia 19.6
Como Harriot Slessor, viúva do general John Slessor,7
escreveu “no nosso lado do rio, que Loison tinha atravessado, não
havia nada parecido com um exército para lhe resistir, mas havia um
pequeno grupo de quarenta homens que se tinham reunido com um pequeno
capitão, seu comandante, da altura do Pequeno Pulgar.”8
Atacaram primeiro a vanguarda, atraindo a coluna francesa para as
alturas, e depois, demasiado cedo, a retaguarda. A tentativa de
envolvimento da coluna de Loison não surtiu efeito, mas fez com que o
general fosse obrigado a recuar, atravessasse novamente o rio Douro e se
recolhesse a Almeida, onde chegou no dia 1 de Julho. Era uma vitória
muito importante, essencial para o futuro das revoltas dos povos ibéricos,
pelas reacções que provocou, mais do que pelos seus aspectos
militares. Nessa
altura a revolta, em desenvolvimento permanente, tinha chegado a
Coimbra, no dia 21 de Junho, tendo-se estabelecido uma junta de governo
no dia seguinte, presidida pelo vice-reitor da Universidade, Manuel Pais
de Aragão Trigoso. O governo militar foi entregue ao general Bernardim
Freire de Andrade. O general não aceitou a incumbência e dirigiu-se
para o Porto para assumir o Governo das Armas acompanhado pelo secretário
da Regência, o brigadeiro D. Miguel Pereira Forjaz. O comando militar
foi, então, entregue ao brigadeiro Nuno Freire de Andrade, chefe do
Regimento de Infantaria n.º 11 (de Penamacor) e irmão mais novo do
governador do Porto. Organizou-se uma expedição à Figueira da Foz,
dirigida por dois militares, estudantes da Faculdade de Matemática,
Bernardo António Zagalo, sargento de Artilharia 1, e António Inácio
Caiola, sargento de Infantaria 13 (de Peniche). Em 27 de Junho, o forte,
com uma guarnição de cem homens, rendeu-se. Guarnecido por uma força
britânica da frota do almirante Cotton tornou-se um ponto fundamental
para as comunicações entre as forças revoltosas e a frota britânica.
A sublevação de Coimbra impediu as comunicações entre Loison e
Lisboa criando um grande nervosismo no comando francês sobre os
resultados da expedição ao Porto. Loison, não podendo regressar a
Lisboa pela via mais curta, desceu pela Beira Baixa em direcção a
Lisboa. Só em 11 de Julho se soube que estava a chegar a Abrantes9.
Em 15 estava em Alcobaça, em 18 em Vila Franca de Xira, chegando as
suas forças a Lisboa entre 20 e 22 de Julho. As
forças que perseguiram Loison pela Beira dentro, e algumas das que se
organizaram em Trás-os-Montes dirigiram-se para Almeida e organizaram o
bloqueio da fortaleza. As forças sitiantes foram formadas, numa
primeira fase, pelos Regimentos de Infantaria n.º 12 (de Chaves) e n.º
24 (de Bragança), o 1.º Regimento de Milícias da Guarda, e as Milícias
de Trancoso e Pinhel, assim como por companhias que se iam formando dos
antigos regimentos da guarnição da Praça – os Regimentos de
Infantaria n.º 11 (de Penamacor) e n.º 23 (de Almeida) –, com
soldados que tinham abandonado as forças do exército português
enviadas para França. A totalidade das forças sitiantes foi integrado
no Corpo de Observação que se organizou em Viseu sob o comando do
general Manuel Bacelar10,
sendo o bloqueio continuado pelo 2.º Regimento de Milícias da Guarda11,
mas a guarnição francesa de Almeida deixou de contar militarmente, não
incomodando nem as forças portuguesas a concentrarem-se em Viseu, nem
as espanholas a concentrarem-se em Cidade Rodrigo e Salamanca. A
expulsão das forças de ocupação francesas do Norte e Centro de
Portugal em Junho de 1808 teve uma consequência importante para a
continuação da guerra. Libertou o Exército da Galiza, comandando pelo
general Joaquín Blake, de qualquer preocupação com o seu flanco
direito. O Exército da Galiza que se tinha formado em redor de Lugo,
estava a deslocar-se, desde 23 de Junho, para leste para defender a
Galiza de qualquer ataque francês. Blake não desejava mais do que
defender as portelas ao redor de Astorga, já no Reino de Leão, mas a
Junta da Corunha impôs ao general o apoio ao Exército de Castela
dirigido pelo general Cuesta. Sem forças hostis na sua direita Blake não
pôde negar a ajuda e, em 5 de Julho, desceu das terras altas em direcção
a Benavente, na planície leonesa. O pequeno exército de Cuesta,
derrotado pelo general francês Lasalle em Cabezon, no dia 12 de Junho,
perto de Burgos, tinha-se retirado para Benavente e, pouco depois, avançado
em direcção a Valladolid, ponto importante na linha de comunicação
do Exército Francês de Espanha. Os dois exércitos espanhóis
encontraram-se em Villalpando, em 10 de Julho. Tendo avançado contra as
forças francesas, foram derrotadas e desbaratadas pelo marechal Bessières
em Medina de Rioseco, em 14 de Julho. A batalha permitiu que José
Bonaparte chegasse a Madrid no dia 20 seguinte, mas teve uma consequência
inesperada12.
Napoleão, naturalmente preocupado com as linhas de comunicação do seu
exército em Espanha, tinha reforçado Bessières, afirmando que reforçando-se
o corpo do marechal, reforçava-se toda a Espanha13.
As tropas que fortaleciam Bessières foram retiradas de Madrid, não
tendo servido para apoiar as expedições a Valência ou à Andaluzia,
nem tão-pouco o sítio de Saragoça. Mostrou também que as forças de
Bessières não eram suficientes para impedir a revolta de Salamanca e
de Cidade Rodrigo, e muito menos para poderem realizar qualquer acção
em apoio do isolado exército de Junot. As consequências foram
desastrosas. A
Revolta no Algarve Enquanto
estes acontecimentos se desenrolavam no Norte e Centro tanto de Portugal
como da Espanha, no Sul a luta contra os ocupantes franceses
desenrolava-se também desde inícios de Junho. Em
finais de Maio, ao mesmo tempo que Loison tinha sido enviado para
Almeida, uma outra força francesa tinha sido enviada para Alcoutim sob
o comando do general de brigada Avril, um especialista na repressão de
populações hostis, tendo feito a sua carreira quase exclusivamente na
luta contra os Chouans
franceses. Esta força de cerca de 4.000 homens tinha como objectivo
actuar em apoio do general Dupont, enviado de Madrid para Cádis, à
frente de uma divisão do 2.º Corpo de Observação da Gironda, com o
intuito de defender a frota francesa estacionada naquele porto desde a
Batalha de Trafalgar, em 1805. Em Alcoutim havia uma barca que permitia
a travessia do rio para Sanlúcar do Guadiana. A localidade andaluza,
ficava a cerca de cento e trinta quilómetros a oeste de Sevilha, e ali
o corpo de Avril ameaçava directamente a capital da Andaluzia, sendo
impossível a qualquer força militar espanhola combater os franceses
sem se dividir perigosamente. A
marcha de Dupont começou em 24 de Maio de 1808. A sua força tinha um
efectivo de 12.000 homens, o que era claramente insuficiente para atacar
as forças espanholas estacionadas no Sul de Espanha e ocupar a Província,
no caso de uma vitória. Mas o comando francês achava que Dupont ia ser
confrontado unicamente por populações insurrectas e que teria,
provavelmente, o apoio do Exército Espanhol. Sevilha
revoltou-se no dia 26 de Maio, tendo-se organizado uma junta de governo
que entregou o comando das forças militares ao general Castaños,
comandante do Exército Espanhol em frente de Gibraltar, cujo
quartel-general era em Algeciras. Castaños deslocou as suas tropas para
norte, para perto de Sevilha, e começou a organizar todas as forças ao
seu dispor no campo de Carmona, a sul do Guadalquivir e trinta quilómetros
a leste de Sevilha. Pouco tempo depois o Exército da Andaluzia passou
para o campo de Utrera, trinta e cinco quilómetros a sudoeste de
Carmona e trinta a sul de Sevilha, local onde se defenderia melhor Cádis
de qualquer incursão francesa14.
Desde o início da revolta que o comandante espanhol se mantinha em
contacto com o governador da colónia britânica, o general Hew
Dalrymple. Em
10 de Junho, devido aos acontecimentos do Porto, e preparando-se para
que o mesmo acontecesse no sul, as forças de Avril e de Maurin foram
recolocadas por ordem do general Junot. Ao general Avril foi ordenado
que ocupasse Estremoz e Évora, e mandasse um batalhão do Regimento de
Infantaria n.º 86 para Elvas15.
Ao coronel Maransin, comandante da Legião do Sul, que supria as funções
do general Maurin, doente em Faro, que substituísse as forças de Avril
em Mértola e Alcoutim e que defende-se o Algarve com o batalhão do
Regimento de Infantaria Ligeira n.º 2616.
Era uma decisão controversa já que ao substituir as tropas de Avril,
veteranas, pelas de Maurin, pouco fiáveis, abandonava qualquer ideia de
apoio à expedição de Dupont, e ao manter um único batalhão no
litoral algarvio, permitia a revolta da população contra a ocupação. De
facto, no Algarve, a sublevação começou oficialmente no dia 16 de
Junho, dia do Corpo de Deus, em Olhão, sob a direcção do coronel José
Lopes de Sousa, governador da praça de Vila Real de Santo António,
promovido a este posto, em 1802, pela sua actuação na defesa daquela
localidade na Guerra de 1801. Segundo o próprio, foi ao ler o Edital
com a proclamação de Junot sobre a prisão do general Quesnel no
Porto, “o qual convocava toda a Nação Portuguesa a tomar Armas
contra Hespanha e Inglaterra, o que vinha a ser por uma consequência
contra o seu mesmo Principe Regente”, e ao rasgá-lo que a população
daquele lugar se decidiu a combater as forças francesas de ocupação17.
Mas a revolta desenvolvia-se desde pelo menos o dia 12 de Junho, véspera
do dia de Santo António, possivelmente devido ao conhecimento que se
teve em Tavira da revolta do Porto, informação trazida por dois barcos
que pescavam naquelas águas18.
O coronel mandou um emissário aos navios britânicos que estavam em
frente da ilha Cristina, a sul de Ayamonte, mas não recebeu qualquer
apoio. Este emissário de Olhão encontrou-se a bordo do navio britânico
com o capitão do Regimento de Milícias de Tavira Sebastião Martins
Mestre19
que se tinha dirigido aos britânicos a pedir apoio após ter ocupado a
fortaleza de São João, da barra de Tavira. Só em Ayamonte receberam
apoio concreto em armas. Assim, as duas revoltas de Olhão e Tavira
unificaram-se tornando-se o capitão de Milícias braço direito do
coronel. O
Algarve estava guarnecido por tropas francesas desde Fevereiro de 1808,
data em que as forças espanholas do general Solano, que tinham invadido
e ocupado em Dezembro de 1807 o Alentejo e o Algarve, os territórios do
engendrado Principado dos Algarves, dado a Manuel Godoy,
primeiro-ministro espanhol, pelo Tratado de Fointainebleau, abandonaram
o território português, chamados a Espanha para tentarem defender a
Monarquia Espanhola das forças francesas em progressão pelo interior
daquele país. O general de cavalaria Maurin, outro especialista na
repressão das populações do Oeste francês, foi enviado para o
Algarve comandando os dois batalhões da Legião do Sul e o 3.º batalhão
do 26.º Regimento de Infantaria Ligeira franceses20,
corpos formados sobretudo por italianos recrutados em territórios
recentemente anexados pela França
napoleónica21,
e por isso pouco fiáveis. No
dia 16 os três corpos estavam ainda no território do Reino do Algarve
mas só o batalhão do 26.º ligeiro estava capaz de intervir
imediatamente, porque aquartelado em Vila Real de Santo António a
preparar as defesas da vila de um suposto ataque espanhol. Mas ainda
havia algumas tropas francesas em Faro. O objectivo militar imediato
para o coronel Lopes de Sousa era impedir a junção das duas forças
francesas. Conseguiu relativamente o seu objectivo no dia 18 de Junho,
quando uma força francesa, transportada por mar em três caíques, foi
atacada e vencida na barra de Faro. Mas, nessa mesma tarde, uma pequena
força francesa que se dirigia de Vila Real para Faro, pela estrada,
atacada por forças portuguesas na ponte de Quelfes, um lugar a quatro
quilómetros a norte de Olhão, conseguiu chegar a Faro. Daí, renovou
os ataques às forças revoltosas de Olhão, mas sem sucesso. A
actuação dos revoltosos de Olhão, no dia 18, promoveu a revolta de
Faro do dia 19 de Junho de 1808, dirigida por oficiais do Regimento de
Artilharia n.º 4 (de Lagos). No dia 21 seguinte elegeu-se uma junta de
governo, cuja presidência se deu a Francisco da Cunha de Mendonça, monteiro-mor
do Reino, conde de Castro Marim desde 1802, devido ao seu papel na
defesa do Algarve na Guerra de 1801 e governador das Armas do Algarve
desde 1797. A junta entrou em contacto com o governador de Gibraltar e
com a junta de Sevilha a pedir apoio e obteve-o. As
tropas francesas começaram a abandonar o Algarve a partir do dia 21 de
Junho concentrando-se em Mértola. A coluna francesa chegou a Beja no
dia 26 já bem longe do Algarve e sobretudo bem longe da Andaluzia.
Nesta província a luta contra as forças militares francesas continuava
como em todo o território espanhol. As forças militares espanholas
estacionadas ao redor de Córdova, comandadas pelo coronel Pedro de Echávarri,
atacaram a força de Dupont, em 7 de Junho, tentando defender a cidade
mas foram desbaratadas, sendo incapazes de impedir a conquista, saque e
massacre da população pelas forças expedicionárias francesas. Dupont
manteve as suas forças em Córdova até dia 16, esperando reforços
necessários para continuar o seu avanço em direcção a Sevilha e Cádis.
O facto é que, no dia 10 de Junho, a frota francesa surta em Cádis,
comandada pelo almirante Rosily-Mesros, tinha-se rendido às forças
revoltosas espanholas. O fundamento da expedição a Cádis desaparecia,
mas Dupont estava isolado e não recebia nenhum tipo de correspondência
a indicar-lhe o que fazer. Decidiu então recuar sessenta quilómetros
para leste, para controlar as portelas da serra Morena, estabelecendo-se
em Andújar a partir de 19 de Junho. Em
27 de Junho, Dupont recebeu o apoio da Divisão Vedel, enviada pelo novo
lugar-tenente de Napoleão Bonaparte em Espanha, o general Savary, antes
de ser conhecida a junção dos exércitos da Galiza e de Castela, no norte
da península. Deixou uma brigada em Bailén e, achando-se
suficientemente forte, decidiu atacar as forças espanholas que se
aproximavam da sua base de operações, avançando em direcção a Jaén. Castaños
entretanto tinha organizado o exército sob seu comando, apresentou-o à
junta de Sevilha numa parada realizada no dia 26, e avançou no dia
seguinte, 27 de Junho, em direcção a Córdova, onde tencionava
concentrar todas as suas forças contra Dupont. Quando se reuniu às forças
de Reding, organizadas no leste da Andaluzia, e se estabeleceu ao redor
de Córdova, o general apresentou, em 11 de Julho, o seu plano de operações
a um conselho de generais. Tendo sido aprovado, as operações começaram
tendo acabado muito rapidamente com o cerco das forças do 2.º Corpo de
Observação da Gironda e a sua rendição em Bailén no dia 22 de
Julho. As
forças operacionais britânicas em Gibraltar, comandadas pelo general
Spencer, forças que tinham sido enviadas em finais de 1807, para
apoiarem a divisão naval do almirante Sidney Smith num eventual ataque
ao porto de Lisboa22,
e que se tinham dirigido posteriormente para Gibraltar, estavam
embarcadas desde 14 de Maio de 180823,
a pedido do almirante Purvis, comandante da divisão naval em frente de
Cádis. Em 9 de Junho, Castaños propôs ao general Spencer que
desembarcasse as suas tropas e as dirigisse para Xerez, a norte de Cádis
para o apoiar em caso de revés. O general britânico recusou, e
informou que se ia dirigir para Ayamonte para tentar impedir a travessia
das forças francesas, que se estavam a deslocar pela costa algarvia,
para Espanha, aceitando realizar o primeiro pedido das autoridades
espanholas24.
A informação era relativamente correcta, como é perceptível, mas a
intenção do general não teve nenhum efeito. Como o major William Cox
escreveu ao tenente-general Dalrymple as forças francesas tinham-se
dirigido para o interior25.
Se as forças de Spencer desembarcaram é um facto desconhecido pelo próprio
comandante local mas, se aconteceu, e é pouco provável que tenha
acontecido, não teve nenhuma influência no decorrer dos
acontecimentos, tanto em Espanha como em Portugal. Os
oficiais britânicos continuavam sem perceber o que se passava em
Portugal, muito menos as movimentações das forças francesas, não
tendo as forças navais nem as forças terrestres britânicas qualquer
influência no decorrer da revolta algarvia e muito menos da andaluza. O
que se passou foi que a revolta das províncias do Norte de Portugal
tinha obrigado o comando francês em Portugal a modificar o dispositivo
das suas forças, fazendo-o abandonar a ideia de apoiar as forças
francesas em Espanha. A revolta do Algarve permitiu, contudo, que o exército
de Castaños não tivesse que se preocupar com a sua retaguarda, quando
avançou contra Dupont, em 27 de Junho, já que as forças francesas
estacionadas no Algarve tinham abandonado o reino em 21 de Junho. A
ligação entre as diferentes acções militares em todo o espaço ibérico
foi uma constante desde o princípio da Guerra. O
Exército Português no confronto entre grandes potências: Évora e
Roliça O
mês de Julho de 1808 começou com as forças francesas expulsas do
Minho, Trás-os-Montes, Beira e Algarve. As revoltas de várias
localidades no Alentejo e na Estremadura não tiveram o mesmo sucesso, já
que estavam demasiado perto do centro de operações do exército de
ocupação para se puderem organizar convenientemente antes da chegada
das colunas punitivas francesas. E a quase totalidade dos oficiais
generais e superiores franceses tinha uma grande experiência na luta
contra populações civis, assim como na utilização de medidas
terroristas, previamente aprendidas na França ocidental, contra Chouans,
Vendéens e outras populações monárquicas e católicas revoltadas
contra os diferentes poderes políticos saídos da Revolução Francesa. Se
as revoltas de Vila Viçosa, em 19 de Junho, dirigida pelo major de Milícias
António Lobo Infante de Lacerda, de Beja, no dia 25, não surtiram
efeito, assim como as de Leiria, em 30 de Junho, e Tomar em 2 ou 3 de
Julho, todas reprimidas selvaticamente, estes levantamentos não
deixaram de contribuir para o recuo progressivo das tropas francesas e a
sua concentração ao redor de Lisboa e Setúbal. O general Kellermann
começou a abandonar o Alentejo em 1 de Julho, em direcção a Setúbal,
mas a concentração definitiva deu-se só em 17 de Julho quando as forças
do general Margaron, que tinham reprimido as sublevações de Leiria e
Tomar se encontraram com as de Loison, vindas de Almeida, em Vila Franca
de Xira. As
únicas forças britânicas presentes na península Ibérica até meados
de Julho foram as do general Spencer que andava de um lado para o outro
à procura de uma oportunidade de poder ser útil. Em 26 de Junho
apareceram na embocadura do Tejo. O comando francês achou que eram mais
de 10.000 homens, em vez dos menos de 5.000 que de facto eram.
Pensou-se, pouco depois, que aquelas forças britânicas tivessem
desembarcado, em princípios de Julho, perto de Alcobaça. Nada de muito
consistente, mas o facto é que o aparecimento destas forças britânicas
ao largo da costa portuguesa fez com que a expedição que o general
Junot tinha pensado organizar contra a crescente concentração militar
portuguesa em Coimbra não fosse realizada. E
o Exército Português da junta do Porto estava em formação acelerada. Bernardim
Freire de Andrade e D. Miguel Pereira Forjaz chegaram ao Porto no dia 28
de Junho, o primeiro, e no dia 1 de Julho o segundo26.
A junta já tinha decretado, no dia 20, a reorganização das antigas
forças militares do Governo das Armas, com a reorganização dos dois
regimentos de infantaria do Porto (naquela altura com os n.os
6 e 18) e das Milícias, a junta provinciais também, mas os dois
generais, que tinham participado nas propostas de reorganização do exército
de 1802 e 1803, vão transformá-lo em 20 de Julho de 1808 de uma
maneira quase imperceptível, criando quatro batalhões de caçadores27
e retirando da sua formação orgânica as companhias de caçadores. Desde
6 de Julho, no dia seguinte à tomada de posse do governador das Armas
do Porto, que tropas aquarteladas na cidade se começaram a dirigir para
Coimbra. Primeiro um destacamento dos Regimentos de Infantaria n.os
6, 9 e 18 que conduziu armamento e munições, enquanto se foram
concentrando no Porto tropas das outras províncias, como o Regimento de
Infantaria n.º 21 chegado nos dias 9 e 10, e cujo primeiro batalhão
saiu em direcção ao sul no dia 12 e o Regimento de Cavalaria n.º 6
(de Bragança), no dia 14, desmontado, para “se fornecerem d’armas e
cavalos, e partirem depois para a sua destinação”28.
No dia 17 foi a vez do 2.º batalhão de Infantaria 21 se dirigir para
Coimbra e, no dia 1 de Agosto, foi a vez de dois batalhões dos
regimentos do Porto, e de um único esquadrão do Regimento de Cavalaria
n.º 6 – a dificuldade de remontar a cavalaria portuguesa irá ser
grande – se dirigirem para sul. No dia seguinte foi um grupo de
milicianos que se deslocaram em direcção ao Exército de operações.
Nem todas as tropas que se incorporaram no exército português de operações
passaram pelo Porto. O Regimento de Infantaria n.º 12 (de Chaves)
concentrou-se em Viseu, depois de ter participado no bloqueio de
Almeida, e dirigiu-se daí para Coimbra. Durante esse tempo, em Évora, preparava-se a revolta da cidade. É
preciso notar que a cidade era um ponto de interesse estratégico. A
revolta da cidade impediria as comunicações com Elvas e daí com
Madrid. Não havendo já ligação com Almeida, a fortaleza de Elvas era
essencial para uma eventual retirada das tropas francesas de ocupação
em direcção a Espanha. Mas não só, era, sobretudo, considerada
essencial para alimentar as tropas francesas e a população de Lisboa29,
se fosse necessário ficar em Lisboa. O que interessa notar é que a
revolta atrairia invariavelmente as tropas francesas de novo para o
interior de Portugal. A revolta no Alto Alentejo tinha começado em
Campo Maior, com ajuda de forças espanholas, criara uma junta de
governo em 5 de Julho de 1808; a de Estremoz organizou-se no dia 15
seguinte, sob a presidência do tenente-general Francisco de Paula
Leite, antigo governador de Elvas, e governador das Armas interino do
Alentejo desde o abandono do marquês de Alorna do governo da província.
O relato dos acontecimentos tem seguido de perto, como sempre, o relato
de José Acúrsio das Neves, mas neste caso, há um documento importante
para análise, publicado em 1814 – e por isso posterior à publicação
da História Geral da Invasão
– que coloca problemas importantes, sendo que, o que interessa para
mim é saber se o general Francisco de Paula Leite foi personagem activo
ou passivo na revolta do Alto Alentejo. A
obra, Mappa
Historico-Militar-Politico e Moral da Cidade de Évora30,
defende o general Leite da passividade que outras obras o acusam, posição
divulgada por Acúrsio das Neves.31
Tento mostrar que a actuação do general Leite tem um objectivo estratégico;
isto é, atrair os franceses para o interior do Alentejo, quando as forças
expedicionárias britânicas estivessem preparadas para desembarcar na
costa portuguesa. Por isso recusou a direcção da revolta de Vila Viçosa,
assim como de Campo Maior, mas já não a de Estremoz e a de Évora. O
autor do Mappa, o prior de São
Pedro de Évora, afirma que “entre o tenente-general Francisco de
Paula Leite, e dois ou três indivíduos da cidade de Évora, se
conservava secretamente o manejo das Regências de Sevilha e de Badajoz,
sem que a Cidade o penetrasse, mas estes mesmos… viram-se finalmente
exaustos de paliações para repelirem as amplíssimas promessas… que
se lhes dirigiam. Cada dia maior corpo as coisas tomavam, e já não era
possível deixar de comunicar-se o segredo, para se lançarem as
sementes, que deviam produzir a… insurreição.32” Se
é possível descortinar o que o prelado quer dizer, através do seu
estilo gongórico, defendo que o general Leite estava em contacto com as
juntas espanholas e preparava secretamente o levantamento de Évora,
sempre pressionado pelos espanhóis. Quando se deu o levantamento de
Estremoz dirigiu-o e transferiu-se para Évora, o que aconteceu em 19 de
Julho. Penso que se pode tirar uma conclusão: o levantamento deu-se de
acordo com o interesse do general Leite e não com o dos espanhóis, que
o tinham querido mais cedo, como é natural. Estremoz
era uma base militar importante. Local de um arsenal de artilharia – o
Trem de Estremoz – quartel do Regimento de Artilharia n.º 3 (do
Alentejo) e, desde 1801, do Regimento de Infantaria n.º 15 (2.º de
Olivença), permitiria consolidar o levantamento da cidade e organizar
as forças militares que se conseguissem criar. E
foi o que aconteceu. Com o levantamento de Estremoz e de Évora, no dia
20 de Julho, começaram a organizar-se as forças militares: os
regimentos de infantaria e de cavalaria, as Milícias, alguns corpos de
Voluntários. Mas
as forças organizadas em Évora e Estremoz não foram, de facto, em
grande número. É possível que o recrutamento para o Exército que foi
para França – a força que se tornou a Legião Portuguesa – tenha
sido nesta região mais eficaz que no resto do país – o marquês de
Alorna tinha sido seu governador – ou que a chegada dos soldados que
abandonaram o corpo em Espanha não fosse tão rápida como nas regiões
mais a norte de Portugal. Mas, mesmo assim, organizou-se o Regimento de
Infantaria n.º 15, a que Acúrsio das Neves, chama o “batalhão de
voluntários de Estremoz”, que foi organizado de novo pelo seu
comandante de 1807, o coronel Aniceto Simões Borges, oficial que,
enquanto tenente-coronel, tinha participado no combate de Arronches
durante a Guerra de 1801, no comando do 1.º Batalhão do regimento.
Para além deste corpo, conseguiu-se organizar duas companhias de tropas
ligeiras e algumas tropas a cavalo do Regimento de Cavalaria n.º 5 (de
Évora). Setecentos homens ao todo. As forças espanholas enviadas pela
Junta de Badajoz eram um pouco mais numerosas: cerca de 1.700 homens. A
resposta francesa não se fez esperar. Loison foi chamado a Lisboa e
enviado de imediato para o Alentejo, no comando de uma força de cerca
de 6.000 homens. A divisão era formada por cinco batalhões de
infantaria, o batalhão da Legião do Hanovre, e dois batalhões de
granadeiros, formado pela junção das companhias de elite dos batalhões,
e por quatro esquadrões de Dragões e oito peças de artilharia33.
Quase metade das forças operacionais francesas, considerando que mais
de um terço dos corpos de infantaria franceses estavam adstritos a funções
de guarnição, em Elvas, Almeida, Peniche e Lisboa, ficavam dois terços
para operações de campanha. Esta expedição ao Alentejo implicava o
envio de mais de um quarto da infantaria (6 batalhões em 24, mais os
granadeiros) e um quarto da cavalaria (2 esquadrões em 9). Foi um erro
extraordinário que deixou livre de tropas francesas o Norte da
Estremadura e a Beira, onde se concentrava o Exército Português e se
preparava para desembarcar a força expedicionária dirigida pelo
general Wellesley. Para os interesses aliados – Portugueses, Britânicos
e Espanhóis – uma vitória estratégica que nada fazia prever tão
completa. A
verdade é que, se a estratégia foi coroada de êxito, a população de
Évora sofreu muito às mãos das tropas francesas. O combate de Évora,
de dia 29 de Julho de 1808, em frente da cidade, no alto dos Moinhos de
São Bento, e o saque da cidade durante três dias, até 31 de Julho, no
dia em que o exército britânico chegou à foz do rio Mondego, fez
algumas centenas de mortos. Totalmente
livre de forças francesas à sua frente, com o seu flanco esquerdo
protegido pelo Exército de Operações de Bernardim Freire de Andrade,
concentrado em Coimbra, a força expedicionária britânica demorou oito
dias a desembarcar a infantaria, a organizar os seus abastecimentos, a
tentar montar a sua artilharia e a preparar a sua cavalaria. Teve tempo
para tudo. Como escreveu o general Thiébault “não havia nada a opor
[ao Exército Britânico] com esperança de sucesso”. O general
Delaborde tomou o comando de uma pequena força – uma brigada –
composta de cinco batalhões de infantaria e do esquadrão de caçadores
a cavalo e saiu de Lisboa a 6 de Julho. Junot
ficou em Lisboa e na península de Setúbal com três batalhões das
duas primeiras Divisões, tropas veteranas em geral, e os seis batalhões
“franceses” da 3.ª Divisão, composto fundamentalmente por recrutas
italianos que tinham sido bastante castigados durante a revolta do
Algarve e no Alentejo no regresso a Lisboa. O
Exército da Junta do Supremo Governo do Porto era formado por dois
batalhões dos dois regimentos do Porto, pelo Regimento de Infantaria n.º
12 (de Chaves), o mais completo de todos, com os seus 1.200 efectivos, e
o n.º 21 (de Viana), seis batalhões de infantaria, acompanhados pelos
três batalhões de granadeiros formados com as doze companhias dos seis
regimentos de infantaria das províncias do Norte. Acompanhavam esta
pequena força, dois batalhões de caçadores acabados de criar, o de Trás-os-Montes
e o do Porto, dois regimentos de Milícias, os do Porto e Moncorvo, no
fundo dois batalhões, e uma força de cavalaria com cerca de 900
cavalos. Não era muito, mas era uma força determinante para o futuro,
que mostrava que se podia contar claramente com a população e com as
elites portuguesas para combater a França napoleónica. Como
é sabido a estratégia seguida pelas duas forças aliadas não foi
coincidente. Mas se as forças portuguesas não se incorporaram na força
expedicionária britânica, não deixaram de prestar um relevante serviço
à causa nacional e aliada, ao impedir o destacamento de Loison, vindo
de Évora em marchas forçadas, por Abrantes e Santarém, de se unir às
forças de Delaborde em Óbidos e de participar no combate da Roliça,
atacando o flanco esquerdo britânico. De facto, desde o princípio da
campanha essa era uma preocupação do comandante britânico: impedir a
junção dos dois corpos inimigos na zona do vale que separa a serra dos
Candeeiros da serra de Montejunto. Por isso “receoso de que Loison
chegasse à Roliça, na noite de 17 para 18, [o general Wellesley]
resolveu-se a atacar sem demora.34”
E porque é que Loison não chegou a tempo à Roliça? Segundo o mesmo
autor, porque “se demorara três dias em Santarém sem motivo plausível,
e na marcha desde a cidade foi duma morosidade inadmissível.” [os
sublinhados são meus] O autor, interessantemente, como quase todos os
que lhe seguiram, não nota que esta actuação só pode ter sido
provocada pelas forças portuguesas, que se movimentavam na retaguarda
de Loison, tanto a leste, com o Corpo de Observação da Beira,
comandado pelo general Manuel Pinto Bacelar, a ocupar Abrantes e a
persegui-lo pela Lezíria; como a Norte, o Exército de Operações de
Freire de Andrade que por meio dos reconhecimentos feitos pela
cavalaria, ia obrigando Loison a cuidar da sua retaguarda e do seu
flanco direito. Loison
não chegou a Óbidos e não se reuniu ao general Delaborde. Indo à
frente da sua força, encontrou-se com o duque de Abrantes junto ao
Cercal, e perto da povoação num outeiro para onde subiram ouviram os
sons do combate. Mas não participaram nele. Foi
a sua última oportunidade de vencer as forças britânicas. Depois
deste falhanço, com os reforços que o general Wellesley recebeu pela
praia da Maceira, não havia dúvidas do que aconteceria. Os 13.000
soldados que Junot agrupou em Torres Vedras não seriam capazes de
vencer os 16.000 britânicos reunidos em torno do Vimeiro. Como
era natural, as investidas desorganizadas das forças francesas durante
a batalha do dia 20 de Agosto de 1808 foram todas rechaçadas. O
Exército Português, mais uma vez, não participou no confronto. Mas
cumpriu o seu dever, mesmo que quase nunca notado. Foi o aliado necessário
a uma força de desembarque, que protegeu permanentemente o flanco
descoberto do aliado, e cumpriu essa função sem falhas. Notas: * Artigo publicado originalmente em: O Exército Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular (I Volume - 2007-2008), Lisboa, Exército Português e Tribuna da História, 2009, págs. 81-100. 1 Ver, por todos, Vasco Pulido Valente, Ir pró Maneta, A Revolta contra os Franceses (1808), Lisboa, Alêtheia, 2007. O autor abordou a revolta numa primeira edição deste texto apresentando-o como “O Povo em Armas: a Revolta Nacional de 1808-1809”, Análise Social, n.º 57, vol. XV, 1979, págs. 7-48. Reeditou o artigo original (a 2.ª ed.) em Tentar Perceber, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (“Temas Portugueses”), 1983, págs. 13-89, também sem informar da edição original, acrescentando-lhe um novo capítulo: “O ‘Povo’ e a classe dominante. Homogeneidade e conflito”. Estes textos foram reeditados em 2007 (numa 3.ª ed.), sem o capítulo adicional, tendo-lhe sido retirados as referências mais marxizantes, e não sendo os leitores informados, novamente, das edições anteriores, nem informados do porquê das alterações nem do contexto historiográfico em que foram produzidos. 2 Para os dados gerais segui José Acúrcio das Neves, História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino, tomos III a V [2.º vol.] in Obras Completas de José Acúrsio das Neves, vol. 2, Porto, Afrontamento, s.d. (1.ª ed., 1811), e Ferreira Gil, A Infantaria Portuguesa na Guerra da Península, 1.ª pt.: A luta com a Espanha e a Invasão franco-espanhola, Lisboa, 1912. 3
A. Grasset, La Guerre
d’Espagne (1807-1813), tomo II, Paris, Berger-Levrault, 1925,
pág. 67. 4 Durval Pires de Lima, Os Franceses no Porto, 1807-1808. 2.ª pt.: Diário de uma testemunha presencial…, Porto, Publicações da Câmara Municipal do Porto, s.d. Os regimentos mandados organizar foram os do antigo estabelecimento, não estando de acordo com o decreto de 22 de Outubro de 1807 que tinha criado mais três corpos milicianos no Partido do Porto: Feira, Figueira da Foz e Oliveira de Azeméis. O decreto, como é natural, parece não ter sido difundido. 5
Thiébault, baron, Relation de l’Expédition du Portugal faite en 1807 et 1808, par le 1er
Corps d’Observation de la Gironde devenu Armée du Portugal,
Paris, Chez Magimel, Anselin et Pochard, 1817, pág. 352. 6 Carlos de Azeredo, Aqui não passaram! O erro fatal de Napoleão, Porto, Civilização, 2006 (1.ª ed.: As Populações a Norte do Douro e os Franceses em 1808 e 1809, 1984), pág. 57. 7 John Slessor foi promovido a marechal de campo em 20 de Novembro de 1796, tendo sido governador interino das Armas do Porto até à sua morte em Setembro de 1800. 8
Alethea Hayter (ed.), The
Backbone, Diaries of a Military Family in the Napoleonic Wars, Edimburgo, The Pentland Press, 1993, pág. 173. 9 Thiébault, op. cit., pág. 145. 10 T. Montalvão Machado, O Cerco de Almeida em 1808, Separata da Revista Militar, Lisboa, 1977. 11 Foy, Histoire de la Guerre de la Péninsule sous Napoléon…, tomo 4, Paris, Baudouin Frères, 1827, págs. 359-360. Também na Beira os regimentos organizados foram os do estabelecimento anterior ao decreto de Outubro de 1807. Na Beira os regimentos passaram de sete para onze, desaparecendo da lista o 2.º Regimento de Milícias da Guarda. 12
Charles Oman, A History of the Peninsular War, vol. I: From the Treaty of Fontainebleau to the Battle of Corunna, Londres,
Greenhill Books, 1995 (1.ª ed., 1902), págs. 163-173. 13
Foy, idem, ibidem, págs.
44-46. 14 José Gomez de Arteche y Mora, Guerra de la Independencia, Historia Militar de España de 1808 á 1814, tomo II, Madrid, Imprensa y Litografia del Depósito de la Guerra, 1876, pág. 427-429. 15
Este regimento fazia parte da 1.ª Divisão, do general Delaborde. A
Divisão era, no 1.º Corpo de Observação da Gironda, tornado Exército
de Portugal em Fevereiro de 1808, a única formada por tropas
veteranas. Vide
A. Grasset, La Guerre
d’Espagne (1807-1813, tomo I: (Octobre
1807 – Avril 1808), Paris e Nancy, Berger-Levrault, 1914,
anexo 11, págs. 434-437. 16 Thiébault, op. cit., págs. 119, 120 e 353. 17 “Declaração da Revolução principiada no dia 16 de Junho de 1808 no Algarve, e Lugar de Olhão …” in Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve (Subsídios para a História da Guerra Peninsular, 1808-1814), Lisboa, 1941, págs. 303-306. 18 Alberto Iria, op. cit., pág. 34. 19 A Sebastião Martins Mestre seria “conferido … o primeiro posto que vagasse no regimento de milícias da comarca de Tavira”, por decreto de 4 de Setembro de 1802, naturalmente por serviços prestados na Guerra de 1801. V. H. Madureira dos Santos, Catálogo dos Decretos do Extinto Conselho de Guerra…, vol. V: Reinado de D. Maria I (2.ª parte: Janeiro de 1794 a Dezembro de 1806), Separata do Boletim do Arquivo Histórico Militar, Lisboa, 1965, pág. 550. 20 Foy, op. cit.,
tomo 3, págs. 43-44. 21 A. Grasset, op. cit, anexo 11, págs. 434-437. 22
Martin Robson, “The Royal Navy and Lisbon, 1807-1808” in Malyn
Newitt e Martin Robson (eds.), Lord Beresford and British Intervention in Portugal, 1807-1820,
Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2004, pág. 36. 23
Hew Dalrymple, Memoir … of His proceedings as connected with the affairs of Spain and
the commencement of the Peninsular War, Londres, Thomas and
William Boone, 1830, pág. vii. 24
Carta do major William Cox para o tenente-general sir
Hew Dalrymple” datada de 16 de Junho, mas enviada a 17, idem, pág.
157. “The Junta
seem now to be satisfied with the present disposition of the British
troops, under General Spencer (…) Their landing at Ayamonte has
had a good effect (…) and as it was the first request of our new
Allies…” 25 Idem, págs. 156-158. 26 Durval Pires de Lima, op. cit., pág. 32 e 33 27 Tanto na historiografia portuguesa como na estrangeira as mudanças na infantaria não forma notadas devido a um erro na crítica das fontes. O autor do Observador Portuguez, Historico e Politico de Lisboa …, Lisboa, Na Typografia de J. F. M. de Campos, 1824, nas págs. 424-425, publica um edital de 20 de Junho de 1808 da Junta Provisional do Supremo Governo a convocar os antigos soldados para se reunirem aos dois regimentos de infantaria do Porto mandados reorganizar anteriormente, e nas págs. 428-430, com a mesma data, alude a outro edital, em que se manda reorganizar o Exército nas três províncias já libertadas da ocupação francesa – Minho, Trás-os-Montes e Beira. Este edital, que cria quatro batalhões de caçadores, uma novidade em relação à organização de 1807, é de 13 de Julho e não de 20 de Junho, conforme se depreende do Diário de uma testemunha presencial… in Durval Pires de Lima, op. cit., pág. 44. O erro de datação é, de qualquer maneira, claro, já que a junta do Porto não poderia legislar para lá do governo das armas (o Partido do Porto) ou da sua província (o Minho) no dia 20 de Junho, não tendo sido reconhecida, ainda, por nenhuma outra povoação do Norte de Portugal; muito menos quando Trás-os-Montes e a Beira estavam muito longe de se verem livres da ocupação francesa. O decreto a que aludi foi publicado na obra pouco conhecida de Joaquim José Ferreira de Freitas, Bibliotheca Historica, Politica, e Diplomatica da Nação Portugueza, Londres, em Casa de Sustenance e Stretch, 1830, pág. 324, sob o título "Decreto da Junta Suprema do Porto, designando a força dos Corpos, e criando 4 Batalhões de Caçadores." 28 Durval Pires de Lima, op. cit., pág. 45. 29 Parecer do general Avril, de 20 de Julho de 1808, a defender a expedição ao Alentejo. Arquivo Histórico Militar, 1.ª Divisão, 14.ª Secção, Caixa63, Doc. 28. 30 [João Limpo Pimentel Pinto de Lacerda], Mappa Historico-Militar-Politico, e Moral da Cidade de Évora, ou exacta narração do terrível assalto, que á mesma cidade deu o general Loison com hum exército de nove mil homens em o fatal dia 29 de Julho de 1808, 2 vols., Lisboa, Na Officina de António Rodrigues Galhardo, 1814, reeditado em Francisco António Lourenço Vaz (int.), O Saque de Évora pelos franceses em 1808, Lisboa, Caleidoscópio, 2008, edição que utilizo. 31 Acúrsio das Neves, op. cit., pág. 241: “Leite, que desde 23 de Junho se conservara retirado na quinta chamada do Roque, junto a Évora, e a quem Lobo tinha escrito uma carta enérgica, persuadindo-o a tomar o comando…” O major de Milícias António Lobo Infante de Lacerda tinha dirigido a revolta de Vila Viçosa de 19 de Junho e proposto ao general Leite que a dirigisse. O general recusou (idem, pág. 157) 32 Francisco António Lourenço Vaz (int.), op. cit., págs. 246. 33 Thiébault, op. cit., págs. 157-158. 34 Ferreira Gil, op. cit., loc. cit., pág. 280.
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