Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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Cónegos Vermelhos

Principal diácono da Igreja patriacal


 

Os dois quadrilheiros de saltimbarca e chuço que, na noite de 25 de Fevereiro de 1745, antes da hora de matinas, rondavam o terreiro do Rossio, viram apontar do lado da ermidinha do Amparo, espreitando do cunhal e cosendo-se com os arcos do dormitório dos padres de S. Domingos, um vulto inquieto que ora se agachava, ora se escoava na sombra, ora corria espantado de arco em arco, aos pulos como uma pega assustadiça.

- Que é aquilo?

Os quadrilheiros alagaram-se, entestaram os sombreiros, enfiaram-se com os gigantes do convento e esperaram que o vulto passasse. Quando ele já vinha a voejar perto, atravessaram-lhe os chuços. Quem vive? Era um homem. Deitaram-lhe as mãos, aferraram-lhe do cachaço como a um podengo, arrastaram-no, escadas acima, até ao lampião do Hospital de todos os Santos. Assombro dos quadrilheiros! – o homem vinha nu. Umas pernas magras cobertas de guedelha ruiva, uma camisinha desnalgada, capada de fralda, que mal lhe tapava o umbigo, e um pano negro de mantéu de mulher a encapuzar-lhe lhe a cabeça. Quem era? De onde vinha? Para onde ia? Falasse a tempo, - ou a sola do carrasco cantava-lhe nas costas, com uma batuta mais lesta que a de um mestre de capela numa fuga de Glória. O homem, a tremer, a tiritar, a encolher-se, a esconder a cabeça, descalço nos degraus de pedra, contou titubeando que uns homens na rua dos Canos lhe tinham metido um arcabuz ao peito, atirado uma estopada à boca, e roubado, com umas peças de oiro que trazia, toda a roupa do corpo até às servilhas e às meias-calças. Mas quem era ele? Silêncio da Cartuxa. Os quadrilheiros perceberam que o homem se tapava, deitaram-lhe a mão ao rebuço, arrancaram-lho em dois repelões, - e à luz do lanternão de ferro do Hospital, que alastrava e escorria nas escadas como uma grande nódoa de oiro, um solidéu vermelho surgiu topelando uma cabeça empoada e frisada de príncipe da Igreja Patriarcal. Os rudes homens do meirinho entreolharam-se transidos de espanto, descobriram-se, curvaram-se, abateram os sombreiros.

- Tenho frio. Levem-me para casa.

Um dos quadrilheiros despiu a saltimbarca e enfiou-lha. O outro, desconfiado, rolando nas mãos o largo chapéu castorenho, decidiu:

- Vamos pôr Vossa Ilustríssima em casa do corregedor.

Era uma solução. O prelado atravessou o terreiro do Rossio empoado de lamarões, chapinhando, descalço, entre os quadrilheiros. No dormitório dos padres de S. Domingos, o sino chamava para matinas. Ouvia-se correr, gorgolejar na sombra a água do chafariz velho. Perto, na Casa das Palhas, os doidos gritavam, uivavam, gemiam. Subida uma ladeira, dobrado um cunhal, cruzado um oratório, galgadas as escadas do Carmo, os três homens entraram em casa do corregedor do bairro, quadra de cilhares altos de azulejo alumiada por uma serpentina de prata de três lumes. O magistrado – herdeiro da gordura e da corregedoria do grande Soto-Maior já morto – surgiu estremunhado, encavalou no nariz os seus quevedos de coiro, e encarando um instante, imóvel, aquela singular figura que lhe aparecia diante dos olhos, de saltimbarca e solidéu vermelho, pés nus e cabeleira de França, balbuciou, a gaguejar de pasma:

- Pois é Vossa Senhoria Ilustríssima?

Não se enganara. Era D. António Luís de Távora, filho dos condes de S. Vicente, principal diácono da Santa Basílica Patriarcal. Nem mais nem menos do que um dos cónegos vermelhos do senhor D. João V. Nem mais nem menos do que um dos vinte e quatro purpurados, quase todos moços, meio bispos meio cardeais, meio cónegos meio príncipes, que a Bula Aurea de Clemente XI criara no pequenino Vaticano da Lisboa Ocidental, e que Bento XIV, enchendo-os de meias vermelhas e de chapéus cardinalícios, de sumptuosidade e de sensualidade, fizera os Adónis da corte portuguesa de 1750. O corregedor, respeitoso, mandou sair os quadrilheiros, fechou as portas, fez assentar o prelado, em cujas pernas nuas os pêlos ruivos se eriçavam ásperos como cerdas de almofaça, e ouviu dele, em estremeções de assombro, a história da sua prisão e da sua nudez. Não. Não acreditasse Sua Mercê nas palavras dos quadrilheiros. Ninguém o roubara. Não tinha sido caso de ladrões. Tinha sido negócio de mulheres. D. António Luís de Távora, que andava à flor dos trinta e oito anos e cobrava uma congrua do Padroado Real de quatro contos e seiscentos mil réis, era, como todos os cónegos vermelhos da Basílica Patriarcal, muito mais caroável de cortejar mulheres no Paço do que de rezar antífonas no coro. Não chegara ainda à desvergonha do Principal Nunes, que dava banca de jogo em casa para os cónegos, beneficiados, monsenhores e todo o demi-monde de mulheres-damas que, os acompanhavam; não tocara o escândalo do filho do conde de Valadares, reverendo cónego de trinta anos e dezanove mil cruzados de dívidas, preso à ordem de el-rei na Torre de Belém, por andar correndo de coche dourado as ruas de Lisboa com uma célebre mulher pública de alcunha a «Irlandesa»; nunca se lembrara de fazer, como o Principal D. Francisco de Almeida Mascarenhas, colecção de livros galantes e de caixas de rapé com mulheres nuas; talvez não fosse capaz, como o bispo de Castelo-Branco em que fala Williani Costigan, de ter em casa duas amantes que passavam por suas sobrinhas e que lhe roubavam os amigos à mesa do whist; mas era incontestável que o Principal D. António Luís de Távora se permitia, junto de muitas mulheres bonitas, e, especialmente, junto de muitas mulheres casadas, privilégios de marido que não vinham claramente expressos, para os cónegos da Ordem Prelatícia, na Inefabile Divinae Majestatis, de Clemente XI, ou na Salvatoris Nostri, de Bento XIV. A última conquista do filho do conde de S. Vicente fora uma tal Francisca Barreto, ouro sem escuma, olhos pretos azevieiros, antiga criada das damas da comédia, casada havia dois anos com um escrevente da Casa da Índia, o «Barbaroxa», que tinha mortes de homem às costas e que fora mestre de espada preta dos moços fidalgos. Quando o marido ia à quinta de Tentúgal, com três dias de jornada, a Francisca Barreto, muito dextra no zangarreio da viola e forte de coxas nos requebros do sarambeque, recebia em casa o moço Principal Távora, que, por penitência, se dignava rezar nas contas com ela e repousar o seu solidéu vermelho nas almofadas do leito do «Barbaroxa». Naquela noite, o homem seguira de jornada para a quinta; Sua Senhoria Ilustríssima, recebido a ocultas, depois de ter danado as «cheganças» com a antiga criada das damas da comédia, foi-se esquecendo pouco a pouco da batina, da mura, da capa, das servilhas, dos sapatões encarnados de fivela, das suas sumptuosas meias vermelhas de cardeal: e estava nos braços de Francisca Barreto, quase à hora de matinas, cantando, para não perder o hábito, a antífona «veni electa mea», - quando, em baixo, os ferrolhos da porta bateram, uma voz familiar rouquejou, e uns passos chambões e apressados subiram a escaleira estreita de patamares de tijolo. Era o marido. Luís de Távora tacteou, na escuridão; deitou as mãos a um mantéu de D. Francisca, cuidando que era um pano, da batina; ganhou a janela; atirou-se para cima dumas capoeiras do quinchoso, nas traseiras da casa, e descalço, nu como o Senhor-da-cana-verde, enquanto os galos espalitados matinavam, e cacarejavam as galinhas, e ladravam os cães, fugiu talando hortaliças da horta, saltando touros do cortelho, - e só tomou o fôlego quando se viu são e salvo, entre os chuços dos quadrilheiros, no terreiro do Rossio, à luz crua do lanternão de ferro do Hospital...

- Agora, corregedor, - concluiu o prelado enfiando de estremeção um rosário de espirros, - mande Vossa Mercê por uma sege de alquilér que me recolha já à Congregação...

- Não pode ser.

- Não pode ser?

- Vossa Senhoria Ilustríssima tem de acabar a penitência e de esperar aqui que aponte a manhã.

- Para quê? - increpou Luís de Távora erguendo-se, os dedos dos pés, roxos de frio, arrebitados sobre a esteira.

- Para ser entregue a Sua Eminência o Cardeal Patriarca. Em não tenho jurisdição sobre Vossa Senhoria Ilustríssima.

No dia seguinte, à mesma hora que o Principal Távora, era apresentado pelo corregedor ao arcebispo de Lacedemónia e pelo arcebispo de Lacedemónia ao Cardeal D. Tomás, - parava solenemente à porta do Paço da Mitra o «Barbaroxa», de sege, vestido com a batina, a murça, as meias e o chapéu vermelho borlado de oiro dos Principais da Santa Basílica Patriarcal, a dizer aos suíços do Patriarca que encontrara aquelas insígnias do canonicato na cama da mulher, e que vinha, ou beijar a mão de Sua Eminência pela honra, ou queixar-se da desonra.

Duas horas depois estavam ambos presos. O Principal Távora, no Aljube; o «Barbaroxa», na cadeia do Tronco.  

 

Júlio Dantas

 

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