Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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Lausperene de amor


 

- Belchior!

- Siô.

- Onde é hoje o Lausperene?

- Francesinhas, siô.

Depois de bem assobiado e roncado o sono da sesta, o faceira assenta-se na cama, espreguiça‑se em Santo Cristo, levanta-se em palmilhas de meias, abre o postigo da janela e vai buscar a sua folhinha de Lausperenes. O mochila preto não o enganara. O Lausperene é nas Francesinhas.

- Belchior

  - Siô.

- A cabeleira

O negrinho, amestrado, traz a peruca de mostachos espetada na mão como numa boneca de pau preto, compõe-lhe algum bucre desriçado, dá-lhe o seu penso de polvilhos de França, e como se lhe metesse dentro um melão do Paul da Chamusca, enfia-a, repuxando e pinchando, na cabeça de sua Mercê. Depois, acocora-se; estica-lhe os refegos das meias de espinha grossa; calça-lhe os sapatos de salto vermelho de perdiz, feitos pelo Domingos Afonso, do Beco do Vidro; vai buscar-lhe a casaca de riço verde, com botões grandes como pires de prata, que o faceira veste aos ais e ajusta aos pinchos e às upas; compõe-lhe as rendas dos manguitos; enfia-lhe o quitó doirado na pala do boldrié; empoleira-lhe no sovaco o chapéu à Anastácia; dá-lhe umas contas para rezar o terço de Benditos; mete-lhe na mão um livrinho das Vinte e quatro Adorações, - e aí está o turina de 1720 pronto para ir «namorar um Lausperene» às francesinhas capuchas de a par de S. Bento.

- Belchior!

- Siô.

- A sege

Duas rodas enormes de largos tapadouros entalhados batem como matracas o lajedo da rua; uma pequena caixa de coiro pregado de ferraria cabeceia sobre os correões, sonolenta; o boleeiro Pangaio faz estribo das duas mãos enclavinhadas; o faceira galga, empoleira-se, some-se na sege, e lá vão, negro e boleeiro, faceira e machos, tropeçando, vacilando, abanando como um andor, subindo primeiro às Chagas, descendo depois aos Paulistas, tornando a subir o morro verdejante até à formidável mole de cilharia de S. Bento da Saúde.

- Pronto, fidalgo!

Quando o faceira descia, de nariz no ar, de livro na mão, ramalhando as contas do terço, já o terreirinho que entestava com o portal das capuchas da Bretanha estava coalhado duma matula de mendigos, de cães, de negros, de cegos de sanfona, de frades pedintes, de mulatas marisqueiras, de beatas de camândulas e rengos brancos, de pés-forçados das escadas do Hospital, que bezoavam, que se acotovelavam, que praguejavam, que enxameavam ao sol na névoa de oiro da tarde, pedindo esmola, comendo melancias, entrapando chagas, subindo aos estribos dos coches, dando relicários a beijar às crianças, vendendo cordeirinhos-pascais de barro de Estremoz, numa lamúria fanhosa de ladaínha:

- Agnus Dei, qui tollis peccala mundi, parce nobis, Domine...

Vinham chegando, - no encalço das bandarras, revoadas de faceirinhas de gravata de garrote e quitó de nascer; chispavam olhos amorosos do fundo dos biôcos negros e dos rebuços amantilhados; florões da Casa Real, com os seus sota-cocheiros de vaqueiro vermelho, despejavam gente do Paço que vinha rezar o terço ou a hora ao Santíssimo; pouco a pouco, ia-se enchendo o templo, cujo altar-mor cintilava numa colmeia de lumes; as freiras, abrindo as cortinas do coro de cima, apareciam, como corujas, através da reixa miúda da grade; em baixo, o «lugar dos leques» povoava-se de franças, de cómicas, de damas, arfando abanicos, chocalhando rosários; - e nesse jubileu de Adorarão Perpétua, desde que começava o terço de Benditos até que acabava o Tantum Ergo, não havia na igreja das capuchas francesas um canto, um recesso, um altar donde não rompesse, não surgisse, não brincasse, da nave para o coro, do coro para a teia, da teia para o transepto, o mais desaforado, o mais escandaloso, o mais universal dos namoros. O Lausperene ! Mas o que foi o Lausperene, na Lisboa do século XVIII, senão uma pastoral galante na penumbra dum templo? Os faceiras beliscavam as franças: os freiráticos namoravam as freiras; os mochilas escudeiravam as aias; e enquanto as velhas, correndo os terços nas mãos, engranzavam Benditos e Glorias; enquanto as madres, alinhadas nas suas estalas, rompiam do coro a ladainha da Virgem, «Kirie eleison, Christe eleison, Pater de CaeIis Deus misereré nobis... », - por toda a igreja cruzavam-se olhares, gemiam suspiros, chilreavam beijos, palpavam-se polpas loiras de braços; Amores cor-de-rosas adejavam, revoavam, pousavam nos confessionários e nos púlpitos, na talha doirada dos altares e nas pias de água benta; um estremecimento dionisíaco agitava o ar, como um frémito de asa; um vago perfume de sensualidade subia com o incenso da goela de prata das navetas, e dir-se-ia que do fundo de cada retábulo negro e sangrento, urna cabeça de sátiro surgia, cornicabra, risonha, arfando as narina, rebolando os olho, farejando voluptuosamente a primavera...

Pobre cardeal D. Luís de Sousa! Quis combater a imoralidade, e trouxe, no seu capelo vermelho, uma imoralidade maior ainda. Quis matar os teatros, - e inventou o Lausperene. Faceiras e fidalgos corriam os pátios de comédias, enchiam os corros das Arcas e da Betesga, biatiam-se, tinindo espadas; por um olhar furtivo da Margarita, por um fandango desnalgado da Josefa Vaca? Pois bem: por cada cómica, - abria-se uma igreja. D. Luís de Sousa, em cujos ombros ineptos pesava, crucigiado de negro, o pallium de arcebispo, «homem incapaz e condenado por idiota», no conceito terminante de frei Alexandre da Paixão, não viu senão um remédio à vida dissoluta dos pátios de comédias: atrair à mesma hora baetas e nichos, fidalgos e faceiras, à adorarão perene do Santíssimo Sacramento. Os famulos, que conheciam a vida licenciosa do prelado, a história de certa freira benta raptada do mosteiro de S. Salvador de Vairão, as «penitências de capões assados» feitas pelo cardeal com a abadessa moça de Chelas, aprovaram a ideia piedosa de Sua Eminência louvaram o zelo que ao seu báculo pastoral mereciam tantas ovelhas gafas, repetiram a frase do padre Chagas - «teatro, consistório de vícios, cegueira de olhos abertos!», - e, dali a poucos anos, em 1682, simulando um rapto angélico de iluminado, o cardeal Sousa recebia do papa Inocêncio XI a bula do Jubileu do Lausperene para todas as igrejas de Lisboa. Foi a Sé, num dos domingos do advento, o primeiro templo a coalhar-se de lumes e a rezar, no seu coro cabidual povoado de murças brancas, as vinte e quatro Adorações. As mulheres lisboetas, aferrolhadas à mourisca nos estrados ensombrados de rótulas, mal afeitas a um bochecho de ar na missa dos domingos e a uma bebedeira de vento nas quatro procissões do ano, - encontraram um pretexto excelente para sair de casa todos os dias e para perturbar a gravidade das Igrejas com as práticas profanas do beliscão e do estafermo, da escudeirice e da estaca. Até ali, o escândalo era só um: - as comédias; dali por diante, os escândalos foram dois: - as comédias e os Lausperenes. O cardeal D. Luís de Sousa, degenerado, derrancado, enfermo, apresentando, entre outros, o estigma das sensibilidades paradoxais, «tremendo de frio - diz o seu médico cubiculário, Curvo Semedo - quando metia as mãos numa escudela de água quente; sentindo um fogo de brasas quando aflorava com os dedos um pedaço de neve», acabou em 1702, desiludido, com a íntima convicção de que seria preciso mandar fazer mais três pátios de comédias, mais três corros como o das Arcas, para afastar homens e mulheres do vicio do Lausperene e da Igreja ....

– Belchior!

- Siô.

- Chama a sege!

E enquanto o mochila negro voava a berrar pelo Pangaio, - o faceira, ao morrerem as vozes do Tantum Ergo, benzia-se de espirro, rezava ainda uma Ave Maria de «busbus», enramava o terço nas mãos, saía o portal das Francesinhas, torcendo o pescoço para o tímpano de pedra, - e lá ia, feliz, contente, bamboado na sege como numa charola, inundado da infinita delícia, do supremo êxtase de ter beliscado sete ancas, palpado vinte braços, piscado o olho a cinco freiras, dado água benta à senhora marquesa de Angeja e gritando ao negrinho, bem alto, para o ouvirem todos na rua:

- Belchior, vamos para o Paço!

Júlio Dantas

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