António Cândido |
DISCURSO DE ANTÓNIO CÂNDIDO
Conferência Recitada no Ateneu Comercial do Porto na noite de 29 de Agosto de 1887 sobre a Moral Política
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O discurso de António Cândido é mais um dos momentos de apresentação do programa da «Vida Nova», apresentado por ele próprio num discurso proferido na Câmara dos Deputados em 17 de Fevereiro de 1880, desenvolvido depois por Oliveira Martins, em 1884, no interior do Partido Progressista. É lido numa época em que António Cândido já tinha afirmado aceitar uma solução ditatorial provisória para resolver a questão política portuguesa. É que, como o próprio explicava no final do discurso, o sistema político português tal qual estava, preparava-se para ir ao fundo na primeira borrasca. De facto não foi, tendo sobrevivido em 1891 à revolução republicana do Porto, devido à acção do próprio orador, ministro do Reino - do Interior - na altura, mas acabará por desaparecer em 1910, após a mal sucedida tentativa de governo ditatorial de João Franco. |
«O mal de que padece a sociedade política portuguesa não é dos que podem ser curados por meio de reformas engenhosas» Meus Senhores, O ilustre presidente do Ateneu apresentou-me a esta
assembleia com tão encarecidas palavras de simpatia e de louvor que eu não
posso deixar de pôr aqui, em primeiro lugar, a expressão do meu mais
extremado reconhecimento pela sua bondade e pela sua gentileza. Não valho o que as suas nobres palavras dizem. A mais de
meio caminho da vida, não pratiquei ainda um acto que fosse útil aos
outros. A ciência não me deve uma verdade; a arte conta-me entre os que a
amam, não entre os que a professam. Pouco maleável, mas sem a têmpera dos
que podem e sabem lutar, nem vou na corrente geral, nem consigo opor-me a
ela eficazmente! E nesta consciência do que sou, até penso ás vezes que
melhor fora não ter nascido... É grande superioridade não querer enganar-me?! É coragem
heróica dizer o que todos sentem?! Não tenho outro talento; não exercito
outra virtude. Mas fico muito contente com as palavras que me foram
consagradas. Se não exaltam o meu orgulho, consolam a vaidade do meu coração;
irá guardá-las por isso a minha memória, que é fiel. E, cumprido este dever de gratidão e de sinceridade,
proponho-vos já, meus senhores, o assunto da minha conferência. É a Moral
na Política. Poderia eleger outro, mais fácil, mais ameno, mais aberto
às iluminações do sentimento, sempre gratas ao espírito peninsular;
entendi, porém, que era este o mais útil e oportuno emprego da minha
palavra. Se quisesse apenas entreter-vos, ser agradável à sensibilidade
estética do vosso espírito, sei bem o que havia de fazer... Mas há tempo
para tudo, meus senhores; e, se me não engano, soou a hora de meditarmos
seriamente sobre as graves condições actuais da nossa vida social e política. Não trago aqui a vestidura estreita dum partido, nem a só
inspiração da história interna do nosso país; habituei-me a ver, em
questões desta ordem, a nação por sobre os partidos e a civilização por
cima dos Estados. O que não quer dizer que me não impressione
principalmente com o que se passa em volta de mim, ou que perca de vista os
interesses da pátria, que eu, com o meu coração ordinariamente triste, não
amo menos do que outros com o seu alegre entusiasmo, optimista e feliz ... Poderei apenas esboçar as linhas e os contornos de assunto tão
complexo, tão profundo, tão difícil e melindroso como observação
actual, quase impossível de resolver como problema sociológico... Mas
fragmentos de verdade são verdades; e no Porto, como em solo feracíssimo,
as boas sementes germinam sempre. * * * Antes do estabelecimento do regime liberal, o problema da
moral politica era extremamente simples. A multidão obedecia a um senhor,
que possuía e exercitava todos os direitos. A submissão e a lealdade eram
portanto as únicas virtudes necessárias aos povos. Estas virtudes, de grande simplicidade, assumiram, por vezes,
uma forma soberanamente bela. A passividade do coração tem os seus poemas;
a escravidão voluntária pode ser heróica. Mas, para o maior número de
vontades, o dever de se submeter e conservar-se leal não custava muito...
Toda a intensidade moral estava do lado dos imperantes; e estes, impostos à
obediência dos povos por sinais do céu - mediante o voo das aves, como no
monte Capitolino, ou mediante uma sagração pontifícia, como nas velhas
catedrais - encontravam sempre meio de fazer coincidir, na consciência, o
dever com o seu interesse. As responsabilidades, como eram só perante Deus,
não lhes embaraçavam grandemente o pensamento nem a acção. É certo que se procurava formar, na melhor educação moral,
o ânimo e a vontade dos príncipes. Na remota antiguidade vê-se Aristóteles
ao lado de Alexandre, e Séneca ao pé de Nero; em séculos mas próximos,
nunca deixou de haver preceptores eméritos ao lado dos que tinham a herdar
o ceptro e a coroa. É também certo que se empregavam todos os meios para
radicar nos povos o respeito e a veneração mais rendida pelos poderes do
Estado, e que a religião e a política dispunham, para esse fim, de
recursos numerosos e valentes. Mas a complicação desses meios nascia
doutra causa, que não das dificuldades teóricas da doutrina consagrada. Se
na consciência havia a fé e se no Estado havia a força,
exercia-se o governo sem embaraços, o rei fazia a felicidade do seu povo,
e, para além do universo visível, Deus inspirava sempre o melhor... Tudo isto mudou inteiramente em menos de cem anos. Cada homem
foi levantado a cidadão; cada cidadão teve a sua parte na governação do
Estado. E daí resultou que todo o homem, além da sua moral como individuo,
como membro de urna família e como fiel de uma comunhão religiosa,
precisou da moral própria da sua nova situação, da moral política, que
é melindrosíssima e de uma dificuldade enorme. Aonde havia de procurá-la? De onde havia de vir-lhe? Não a
tinha o Cristianismo, que educou admiravelmente, sob outros aspectos, a
melhor parte do género humano. É evidente que, nos seus princípios, se encontram alguns
fundamentos de toda a virtude politica; é inegável que a purificação das
almas, que ele recomenda, prepara e facilita toda a acção exterior. Mas,
considerando a vida como transição fugaz para fins sobrenaturais, como
provação, dolorosa e sombria, dum destino que vai todo para a eternidade o
Cristianismo não tinha, não podia ter, normas prefixas para a existência
militante, activíssima, que é a própria essência da liberdade. Leiam o sermão
da montanha e a Imitação de Cristo. O espiritualismo mais
extremo absorve aí todas as potências da alma e da vida. Segundo Jesus, a
actividade exterior do homem só deve ser tanta como a das aves do céu e
como a dos lírios do monte; segundo Gerson, que repete o Eclesiastes, a
suma sabedoria consiste em nos endereçarmos, pelo desprezo do mundo, aos
reinos celestes... Quero eu dizer que o sentimento religioso seja indiferente,
inútil, para a liberdade? Não. Não há vida feliz, individual ou
colectiva, sem ideal; é neste éter das almas, neste divino ambiente, que
se formam e movem o amor, a fé, a abnegação, o entusiasmo pelo bem, a
dedicação tenaz, a lealdade completa, todos os brandos sentimentos que
constituem a nobreza da nossa espécie, e nunca foi possível apertar e
conter nas fórmulas estreitas do egoísmo animal... E a religião foi, e é,
o supremo idealismo dos povos. Como prova de que se constrói solidamente na política,
quando a religião serve de cimento, citar-vos-ei apenas, meus senhores, a
fundação e a prosperidade dos Estados Unidos, impossíveis sem o espírito
fervoroso dos puritanos, e a emancipação da Holanda, que Marnix e
Guilherme de Orange não teriam realizado sem a fé profunda dos gueux. * * * Um dos mais belos períodos da história humana foi aquele em
que se inaugurou a transição dramática do antigo sistema para o actual
regime da liberdade. É ainda recente. Os nossos pais foram agentes ou
testemunhas dessa transição. O que fascinou, encantou os povos foi a ilusão
imensa – formosíssima ilusão! - que fez crer que a felicidade social
podia resultar, imediata e perfeita, da simples acção das leis! Certas
palavras tiveram então o maior prestígio que pode haver nos sons
articulados da nossa língua. A poesia lírica, esta adorável faculdade que
conserva sempre no género humano, ainda nas velhas idades, a sua antiga
alma infantil e moça; a poesia lírica tomou para si, como assunto, a
emancipação da liberdade humana, e cantou-a fervorosamente. A himnologia da revolução liberal em todos os povos é um
capítulo interessante, curiosíssimo, que está por escrever. Vós ainda
ouvistes o que se cantava, dentro dos muros desta cidade, nos memoráveis
dias do cerco... Mas não foi somente no coração popular, naturalmente ingénuo,
que o entusiasmo pela aparência das coisas chegou ao sublime desvairamento
em que é possível a germinação conjunta da poesia e do heroísmo. Os
primeiros efeitos da mutação política perturbaram e iludiram até os
melhores espíritos. Pensou-se, escreveu-se que a liberdade era escola de si
própria e um curso permanente de moral política! Stuart Mill, que morreu há
poucos anos, Laveleye, que vive ainda, tiveram esta convicção, e
sustentaram-na vigorosa mente... Não era, não podia ser. E não tardou que a esperança caísse,
desfeita... A alma dos povos, como a alma dos indivíduos, agitada e
sacudida por uma comoção violenta; transfigura-se, ilumina-se, sente em si
um deus interior, vê intuitivamente mil coisas que eram obscuras... Depois
a vibração acaba, o entusiasmo arrefece, as coisas entram no seu curso
normal, irregular e lento... e vê-se então que em matéria de costumes não
se edifica levemente, não se edifica depressa. A demonstração disto é fácil, mas dolorosa: dolorosa para
a minha sensibilidade, que tem o grave defeito de se retrair ante o
conspecto das inferioridades humanas e de sofrer profundamente com a
inanidade e tristeza de muitas coisas... Afirma-se, por isto, que sou
pessimista! Não é exacto. Os pessimistas têm a voluptuosidade do mal,
que eu nunca senti. Creio que a História é uma grande edificação moral,
e daí resulta a minha fé profunda no Bem. Do homem de hoje e de
sempre sei dizer que me merece admiração e piedade, os dois sentimentos ao
mesmo tempo, por que ele não é ange nem bête, segundo o
belo pensamento de Pascal. * * * Os povos modernos não têm a verdadeira compreensão do
Estado, meus senhores. Não é a da Grécia e de Roma, como insinua a educação
clássica; também não é como a formula e propõe uma certa escola mística.
É menos intensa do que aquela; é mais positiva e complicada do que esta. Em vez de criado e imposto por um poder estranho, o Estado
resulta duma lei imanente nos agrupamentos sociais; em vez de ser um
acidente no destino humano, de muito secundária importância, ele é esta
instituição orgânica, complexa, multiforme, quase omnipotente, que nos
envolve por todos os lados, que toma conta de nós antes de nascermos e nem
à beira da sepultura nos deixa, que influi na nossa liberdade, que actua na
nossa consciência, que tem a seu cargo defender-nos a propriedade e a vida,
que, como um grande navio no imenso mar do tempo, nos leva inteiramente para
o futuro, com boa ou má fortuna. Se isto fosse entendido assim, os interesses do Estado
andariam, como andam, pospostos na consciência pública, com infinita distância,
aos interesses individuais e aos interesses familiares?! Desta justa compreensão do Estado resulta que a intervenção
na política, intervenção de boa fé, não é mera faculdade que possa
exercer-se ou não, como se queira, sem desastradas consequências. É uma
faculdade segundo a lei, mas é um dever segundo a consciência. Quem o
julga assim?! A justiça e a utilidade geral reclamam que os mais dignos
tenham a preeminência das honras e o comando efectivo das sociedades. O Corão
diz num versículo, que vi citado não sei por quem: - O governo que
nomeia um homem para um emprego, havendo nos seus estados outro homem
melhor, peca contra o Estado e contra Deus. Quem se impressiona já,
neste nosso mundo de Cristo, com a exaltação, predisposta ou improvisada,
de tantos que têm apenas, na sede do talento, a habilidade da intriga, e no
lugar do coração... um espaço vazio?! Distingue-se, e convictamente, entre dignidade pessoal e
dignidade política! Pode esta escorrer sangue, ferida pela justiça mais
evidente, que isso não impede a outra de se ostentar e impor eficazmente,
com o mais exagerado melindre. Como se a honra não fosse indivisível e
simples! Como se na consciência moral pudesse haver soluções de
continuidade... Não há nada mais melindroso do que a reputação do homem
de Estado. E com toda a razão. Eu sei que não pode provar-se uma acusação
de improbidade pessoal contra qualquer dos homens eminentes, que
superintendem nas coisas públicas da Europa; mas tenho pensado muitas vezes
com tristeza que sendo honrados, como quero acreditar, nem sempre se
preocupam muito de o parecer! A política económica foi uma das mais belas inspirações
do nosso tempo. Meter todos os interesses da grande multidão numa fórmula
constituída, em partes iguais, de justiça e de sentimento, é um ideal
soberbo! Mas as grandes ideias precisam de grandes homens; e, em vez disso,
é a política de negócios, sem intenção e sem alcance, a que está de
cima neste momento! A finança egoísta, exploradora, insaciável, triunfa
em toda a linha. Na tribuna não ressoam já as grandes palavras que
apaixonaram e comoveram a geração que nos precedeu; as vozes que mais
valem são as que retinem, como metais, no cálculo de operações
fabulosas... A França esperava ainda há pouco, ansiosamente, o anunciado
discurso do seu primeiro-ministro. Disse muitas coisas úteis... Mas
procura-se em vão, naquela multidão de palavras, um pensamento, uma frase
que tenha podido consolar a velha alma gaulesa, tão generosamente
idealista! Ora assim como a extinção do fogo sagrado, que ardia
perenemente em cada altar doméstico, na Grécia em Roma, pressagiava uma
desgraça irremediável - eu não considero de bom agouro este descendimento
rápido do coração e do espírito, esta feição pequeninamente industrial
que a política assume, e com que tenta e seduz o maior número... Não continuo... É destes elementos, e de outros
semelhantes, que se forma a opinião, isto é, a moral dominante. E a opinião
é, para as almas, como o ar atmosférico para os corpos. Vivifica ou mata.
Depende isso da sua composição. * * * Tem-se procurado remediar este mal, universalmente sentido,
aperfeiçoando de dia para dia, de hora para hora, as leis políticas e
administrativas, na ingénua suposição de que elas formam os costumes; e
é positivamente assombroso o que se tem feito neste sentido! Nas escolas e
nos partidos não se trabalha noutra coisa há meio século... O que a razão
tirou de si mesma! O que a fantasia pode tecer no seu tear de marfim! Tomemos um exemplo; e seja o mais fácil. A política moderna é essencialmente, indestructivelmente
representativa; a representação da vontade popular no governo
realiza-se por meio do voto. A respeito da natureza, da extensão e da forma
do voto quem poderá aí repetir o que se tem ideado e o que se tem
experimentado?! Há a teoria do voto como direito natural, de todos, e a que
o restringe à capacidade social de cada um. A primeira teoria abrange os
que entendem que só o homem pode e sabe intervir no governo das sociedades,
e os que sustentam que também as mulheres devem trazer à política a
contribuição da sua encantadora psicologia; a segunda tem a escola dos que
põem a capacidade eleitoral na instrução mais ou menos complexa, e a dos
que a assentam unicamente no censo da propriedade. Temos o sufrágio
directo, o sufrágio em dois graus, e ainda em três e em quatro. Há a
lista dum só nome e a lista de muitos nomes. Há o sistema da simples representação
das maiorias e o que também dá às minorias a sua representação
proporcional: este conta, pelo menos, doze processos diferentes, quase todos
experimentados na Europa e na América. Sobre o modo de garantir o genuíno
recenseamento dos eleitores e o apuramento definitivo das eleições, já não
há que fazer! Depois de se esgotar tudo o que a administração graciosa e
contenciosa podia produzir, recorreu-se ao poder judicial para que aplicasse
a esses factos a apertada forma dos julgamentos civis e criminais... E que se conseguiu com tudo isto? Em que melhoraram os
costumes públicos com tanta perfeição jurídica nas leis da liberdade
eleitoral? A boca da urna começou, por ventura, a ser a boca da verdade! Pelo que se passa no nosso país, podemos responder a estas
perguntas com inteiro conhecimento de causa. Nós temos a melhor lei eleitoral do mundo; as da
constitucional Inglaterra e da França republicana ficam a grande distância
da nossa. As doutrinas dos melhores publicistas foram aqui legisladas mal
apareceram nos livros; e, o que é singular, tudo se fez com a mais,
edificante unanimidade dos homens públicos e dos partidos! Até para a última
demão nesta obra houve acordo expresso e amorável nos que eram, na
véspera, inimigos jurados e truculentos... E tudo ficou como era antes, se
não ficou pior. A abstenção eleitoral é cada vez mais importante pelo número
e pela qualidade dos que se abstêm. Os costumes públicos descem, baixam a
olhos vistos. O desalento e a indiferença invadem e vencem quase toda a
gente... Não se debela uma doença combatendo apenas os seus
sintomas. O mal de que padece a sociedade política portuguesa, de que
padece toda a civilização política actual, não é dos que podem ser
curados por meio de reformas engenhosas, preparadas nas secretarias de
estado, e caldeadas depois na verbosidade parlamentar. Com a nossa Carta de
1826, com a primeira lei eleitoral que tivemos, com o Código Administrativo
de 1842, poderíamos nós ser, politicamente, o povo mais feliz da Europa;
como a França o poderia ser com a Carta de Luís XVIII; como o é a
Alemanha com o império quase absoluto e com a sua chancelaria de ferro. É preciso refazer o homem interior, desmoralizado
pela lição contraditória dos livros e dos factos, pela desastrosa influição
da doutrina quase sempre falsa e dos exemplos terrivelmente contagiosos; é
urgente restabelecer a justiça, a eterna justiça simples e eficaz, nos
sentimentos da opinião e nos factos do poder. Sem isto a teoria é vã e a prática é mortal. O parlamento deveria servir para o julgamento efectivo dos
homens e dos seus actos; mas, para isso, seria preciso que se sentisse ali a
opinião pública – que o parlamento não fosse ou não parecesse, pela
solidão em que está, uma como tenda isolada no meio isolada no meio de um
deserto... A tribuna antiga prestava para este fim; lá a politica e a
Justiça andaram sempre intimamente ligadas. Mas quem se lembrou já de
transformar a tribuna moderna em lugar de acusação directa dos que
prevaricam contra o Estado?... A indignação dos acusados, o interesse dos
seus cúmplices e a cobardia dos outros esmagariam o que se atrevesse a
tanto; e passava-se logo à ordem do dia, que bem poderia ser a nova
importante divisão dum círculo sertanejo nas suas assembleias
eleitorais... Desde que, nas câmaras, é impossível ou perigoso julgar os
homens sob o restrito aspecto da sua dignidade pessoal, que impressão vos
faz a paixão política, furiosa e atroadora, manifestada nas
pequeninas coisas que lá se discutem?! A minha... nem a quero dizer! * * * A civilização política dos nossos dias tem esta sombra
espessa; e quando a contemplo, abstraindo do que me cerca, de tantas
virtudes do nosso tempo, que são evidentes, do imenso progresso que se tem
realizado em tantas coisas, chego a sentir a poesia do passado, numa espécie
de impressão nostálgica... Mas esta ilusão da minha alma dura pouco, e
atribuo logo à imaginação o lugar que lhe pertence. Nunca houve tanta
bondade no mundo, e a bondade é a lei suprema da vida. Existem no coração
dos povos inefáveis correntes de simpatia social; o que falta apenas é a
unidade, ideal e tangível que as reúna e represente a todas. Nunca se
soube tanto! Consola, faz bem pensar que, a esta hora, milhares de
fantasias, enamoradas da arte, se embebem no azul da inspiração estética,
e milhares de cérebros arrancam tenazmente, aos problemas mais cerrados, os
máximos segredos da vida; e que a ciência positiva, como uma coluna de
diamante, cresce, sobe de dia para dia... Quem desadora o sol porque tem
manchas?! Como há-de negar-se a civilização porque tem sombras?! Se a
minha atenção recai principalmente sobre uma delas, é porque é a maior
de todas, e a que posso contemplar mais vezes e mais de perto. O absolutismo não pôde educar-nos para a liberdade; o
Cristianismo, preparando as almas para a receberem, não a organiza, não a
disciplina; é insensato dizer-se que a democracia é escola de si própria;
ninguém espera, que desçam da montanha, entre relâmpagos e trovões, as tábuas
de uma nova lei; está por aparecer, pela primeira vez, a escola de
filosofia de que a verdade irrompa, em leito largo e profundo, como um
grande rio fecundante de toda a humana consciência! Havemos, por isso, de descrer de nós? Havemos de desesperar
do futuro? Não. A Humanidade tem sempre em si um grande reservatório de
forças, de que nem sequer se suspeita nas quadras menos expressivas da sua
existência; e há um sentido profundo e completo nestas palavras escritas
por alguém: A História tem dias tristes, mas não tem dias estéreis,
destituídos de interesse. É certo que o nível moral da política tem bailado. É um
grave mal, mas não é um mal irremediável. Cumpram o seu dever os que o
conhecem. Podem poucos salvar a muitos. Há contágio no mal, mas há
simpatia no bem. Esta fase, tão mórbida, tão desalentadora, há-de
passar, cedendo, a outra melhor. Como?... Quando?... Ainda, no nosso
tempo?... Não sei. Mas uma das mais belas faculdades da organização
humana é a de sentir e praticar o dever, sem a visão directa do seu fim útil. A nossa educação, a educação de todo o mundo ocidental,
é essencialmente revolucionária. As épocas da nossa história foram
sempre assinaladas por movimentos bruscos, por transições, violentas e rápidas,
dum para outro estado religioso, político e civil. Isto faz que nós
sucumbamos, abatidos e descorçoados, diante de qualquer grande dificuldade,
e fiquemos depois, esterilmente, à espera duma revolução que nos
impulsione ou dum Messias que nos salve. Não é bom. O espírito positivo do nosso tempo é cada vez
mais incompatível com esses processos, só possíveis noutra compreensão
do mundo, metafísica ou mística... A política forma, entre nós e lá fora uma classe. Em vez
de ser a natureza social de todo o homem, é a profissão de alguns. Profissão
e indústria quase sempre... Em geral vão para aí os que têm a ganhar, e
não os que têm que perder. Erro gravíssimo! O ganho duns é pura perda
dos outros... Se a maioria da nossa sociedade se resolver a intervir nas
coisas públicas, e levar para lá as virtudes que ainda tem, já o mal, de
que nos queixamos todos, ficará atenuado, diminuído. Deve intervir. Além
de tudo o mais, é uma alta obrigação de patriotismo; a história de todos
os tempos ensina que a independência dos pequenos povos depende
essencialmente do seu regime interno. Li há pouco um livro de Jules Simon. Destina-se, em grande
parte, a combater a apatia moral, a abstenção sistemática dos
conservadores franceses; e o que ele diz é, em muito ponto, aplicável a nós. Escreve palavras de ouro o velho publicista, que é hoje,
incontestadamente, uma das mais belas figuras do mundo. Céptico em mil pequenas coisas, como quem já mede um largo
estádio de observação pessoal no período mais inconsistente que ainda
houve, mas fiel à Liberdade e à Pátria, que tem amado sempre; com este
acre pessimismo, que é inevitável, que se exala de tudo, mas com uma
grande bondade, natural e calma, que é do seu temperamento, e também do génio
literário em que o seu vasto espírito se educou - Júlio Simon é um dos
maiores mestres da nossa raça neste século, e eu amo a sua autoridade como
segurança de acerto e justiça nas minhas opiniões Combatendo a atitude expectante dos conservadores franceses,
ele refere um velho apólogo de Platão, que não resisto a resumir aqui. É
a moralidade e o remate de tudo o que disse. Navegava uma barca pelo mar. Os marinheiros mataram o capitão,
e deitaram-no às ondas; depois guerrearam entre si, desesperadamente,
disputando o leme. Os passageiros, que eram pessoas gradas e ricas, sentados
comodamente, riam daquela fúria insana, e contemplavam com imenso gosto a
sua própria sabedoria... Ninguém notara ainda o, estado do Céu. De repente, levanta-se o vento, encrespa-se o mar,
desencadeia-se uma temerosa tempestade, e a barca, com todos que estavam
dentro, vai para o fundo... * * *
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Fonte: António Cândido, Discursos e Conferências, Porto, Empresa Litteraria e Typographica – Editora, s.d., págs. 165-189.
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