A sala das Cortes, por Domingos Sequeira
DISCURSO DE BENTO PEREIRA DO CARMO.
Discurso de Bento Pereira do Carmo proferido nas Cortes Constituintes, em 13 de Julho de 1821, durante a segunda sessão de discussão do articulado do Preâmbulo da Constituição de 1821.
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O discurso deste constitucionalista, convertido posteriormente ao cartismo, explicava porque era necessário declarar, no Preâmbulo da futura Constituição, que se redigia a lei fundamental para solucionar os males do país - Regenerar Portugal -, que tinham sido provocados pelo «desprezo dos direitos do cidadão, e do esquecimento das leis fundamentais da monarquia», sobretudo a partir do Renascimento. Para o orador, uma das leis fundamentais da monarquia portuguesa era a aceitação do poder soberano das Cortes. Estas assembleias tinham, ao longo da história do país, assumido o poder de nomear reis, não sendo, por isso, necessário falar-se somente nas Cortes de Lamego, de existência duvidosa - e que Alexandre Herculano provará que de facto nunca existiram -, mas também nas Cortes em que se nomearam reis de Portugal D. Afonso III, D. João I, D. João IV e D. Pedro II. O poder soberano das Cortes era uma das leis fundamentais da monarquia portuguesa que tinha sido esquecida, e relembrá-lo acabava por legalizar a tomada de decisões das Cortes constituintes, colocando o Absolutismo fora da tradição política nacional; ilegalizando-o portanto, tornando-o um «despotismo» de acordo com a teoria política de Montesquieu, doutrina que perpassa todo o discurso. Percebe-se, pela inteligência do argumento, que o orador se tivesse tornado um dirigente político reconhecido. |
DISCURSO DE BENTO PEREIRA DO CARMO, DE 13 DE JULHO DE 1821 Eis aqui a nevrologia do preâmbulo, que entra hoje pela
segunda vez em discussão. «Grandes males precipitaram a nação no
abismo, de que a salvou a heróica virtude de seus filhos. A origem destes
males foi o desprezo dos direitos de cidadão e o esquecimento das leis
fundamentais da monarquia. 0 remédio para que senão renovem é a Constituição
política que vai discutir-se e que assenta nessas antigas leis
fundamentais, ampliadas com oportunas providências. O fim, portanto, da
Constituição é assegurar os direitos de cada um e o bem geral de todos os
cidadãos portugueses». Quando pela primeira vez se discutiu este preâmbulo, foram
muitos e muito variados os pareceres dos meus ilustres colegas; mas para me
não fazer cargo de tudo o que então ouvi, apontarei somente as objecções
que me pareceram mais arrazoadas; e são as seguintes: 1.ª que eram
duvidosas as Cortes de Lamego, que estipularam o nosso pacto social; e que não
parecia airoso que esta assembleia sancionasse como certo um facto incerto
da maior transcendência; 2.ª que conquanto existissem, não era pelo
estabelecimento das leis aí ordenadas que poderíamos acabar a grande obra
da nossa regeneração politica; porque nelas se não falava de Cortes, nem
as Cortes de então gozavam do poder que cumpria para o grande fim da
felicidade pública; 3.ª que havendo-se assinalado como causa das desgraças
que oprimiam e oprimem os portugueses o desprezo dos direitos do cidadão,
era escusado falar no esquecimento das leis fundamentais da monarquia. Vou responder a cada uma destas dúvidas. E pelo que toca à
primeira, direi que não é próprio de uma assembleia constituinte entrar
nas miadas e cansadas indagações sobre a existência das Cortes de Lamego.
Deixemos a tarefa aos eruditos nacionais e estrangeiros que têm debatido
este ponto de nossa história política: aos legisladores só cumpre saber
que nas Cortes de 1679 e 1697 se dispensaram e derrogaram alguns capítulos
das de Lamego; e que a nação reconheceu por esse mesmo facto a existência
e validade dos, que não foram dispensados nem derrogados. Não é,
portanto, esta augusta assembleia a que sanciona o pacto fundamental
estipulado em Lamego, foram sim as Cortes de 1679 e 1697. Em quanto à segunda, convenho em que as nossas leis
fundamentais não falam em Cortes; mas devo observar que o nosso direito público
não foi fundido de um só jacto, nem derivado de uma só fonte. Do direito
consuetudinário nos vieram estas grandes assembleias da nação chamadas
Cortes; e se acreditarmos um ilustre autor português, já estas assembleias
eram conhecidas dos antigos lusitanos, antes da invasão. dos povos do
norte; a quem outro as atribui, fiado – no testemunho de Tácito, que diz
– de minoribus rebus principes consultant; de majoribus omites. 0
certo é que as Cortes foram reconhecidas sempre pelos senhores reis destes
reinos, que muitas vezes as convocaram, chegando a fixar certos períodos
para a sua convocação. Acrescento mais, que até foram reconhecidas por
aquele mesmo monarca, em cujo reinado morreram; falo do Sr. D. João V, que
nos primeiros anos do seu governo continuou a exigir tributos, esperançando
os povos de que chamaria as Cortes, logo que a urgência das circunstancias
o permitisse; porque não era da sua real intenção violar nossos usos e
costumes. Do que levo dito tenho direito a tirar a seguinte conclusão: – As
Cortes sempre foram olhadas pela nação e pelos senhores reis deste reino
conto formando parte das leis fundamentais da monarquia. Qual foi porém a autoridade das Cortes nos tempos passados?
Se consultarmos os nossos publicistas, as Cortes eram nada. Se consultarmos
os monumentos e a história, as Cortes exerceram muitas vezes a soberania,
como representantes da nação, em que ela reside. Por cinco vezes no espaço de 525 anos as Cortes nomearam os
senhores reis deste reino e quase sempre excluindo pessoas que se diziam com
direitos à coroa mais ou menos fundados. Elegeram o nosso primeiro rei, o
Sr. D. Afonso Henriques; o conde de Bolonha, Afonso III, excluindo seu irmão
Sancho Il; o Sr. D. João I, excluindo a infanta D.
Beatriz, filha do rei D. Fernando, e os filhos de D. Inês de Castro
e do rei D. Pedro I; o Sr. D. João IV excluindo os reis de Espanha; e o Sr.
D. Pedro II, excluindo o Sr. D. Afonso VI. 0 nosso primeiro rei reconheceu nas Cortes o poder
legislativo, quando disse aos deputados da nação juntos em Lamego: - «Constituamus
leges per quas terra nostra sit in pace» – «Vultis facere leges de
nobilitate et justitia?» Todavia os deputados se esqueceram de levantar
barreiras, que lhes pusessem a coberto este poder; e o que resultou de tão
fatal esquecimento foi, que 300 anos depois dizia o Sr. D. Afonso V nas suas
Ordenações no Livro 3.º Título 78 § 4.º: «El-rei é a lei animada sobre a
terra e pode fazer lei e revogá-la quando vir que é compridoira». Em
verdade nas Cortes de Coimbra de 1385 algumas restrições se puseram ao
poder real, as quais o Sr. rei D. João I aceitou e jurou cumprir; e tais
foram «que não faria guerra nem paz sem consultar as Cortes». E
quantas desgraças se não teriam poupado à nossa heróica nação, se
pontualmente se houvesse observado esta cláusula expressa do nosso pacto
social! Viriam porventura a efeito as extravagantes expedições do Sr. D.
Afonso V e a sobre todas fatal expedição, que enterrou nos campos de Alcácer
Quibir a glória e a fortuna da gente portuguesa? Pelo nosso direito público as Cortes da nação eram as
competentes para concederem os pedidos e contribuições necessárias às
despesas públicas; e ao menos nesta parte há sido mais dificultoso aos
advogados do poder, arbitrário torcer o sentido e as actas das Cortes
passadas; porque os factos têm uma fisionomia mais pronunciada e muito
menos equívoca. Esqueceu-se este princípio da nossa lei fundamental; e a
nação ficou abismada numa dívida enorme, que sem dúvida custará grandes
sacrifícios à geração presente. A perda desta prerrogativa foi a que
mais custou aos povos, que sempre protestaram e patentearam a sua desaprovação
por todos os meios que se lhes ofereceram. De muitos exemplos que poderia
apontar estremarei um só por ser porventura, muito pouco sabido. Um dos
Filipes tentou aumentar o cabeção das sisas a despeito das solenes
promessas feitas em Tomar por Filipe II; e uma das câmaras deste reino (a
da vila de Alenquer), a quem fez a proposta, respondeu: «que sonegar sizas
não era pecado, porque sem consentimento das Cortes foram estendidas além
do prazo, porque as Cortes as concederam; e que se não convinham na
legalidade das que estavam pagando, como era possível convir no seu
aumento?» Rematavam esta resposta singular com uma sentença, que muito
folgaria ver gravada com letras de ouro nos pórticos dos palácios de todos
os reis «Não há rei rico de vassalos pobres, nem amado de vassalos
oprimidos. Concluo por derradeiro, que o nosso direito público admite e
reconhece a soberania da nação; admite e reconhece que esta soberania foi
exercida pelas Cortes; admite e reconhece que só às Cortes cabia prover às
despesas públicas por via de impostos e pedidos. Até aqui o nosso direito público, agora os factos históricos
mostram que mal que se desprezam estes princípios, obscurecidos pela
superstição, fanatismo e arbitrariedade, o espírito público esmoreceu e
a nação se despenhou num abismo de misérias. Logo, é exacta a ideia do
preâmbulo, quando diz que somente pelo restabelecimento destas leis é
que pode renascer a antiga prosperidade, mormente sendo ampliadas com
oportunas providências. É necessário dizê-lo francamente e repeti-lo
muitas vezes a nossos constituintes. «0 projecto que vamos discutir está esboçado em nossa
antiga Constituição»; ou por outras palavras: a nossa antiga Constituição,
apropriada às luzes do século em que vivemos, forma o projecto de que nos
ocupamos agora. Os seus redactores, instruídos pela história do
passado, esmeram-se todavia em dividir os poderes, segundo a sua natureza e
marcar balizas, que nem o tempo, nem as paixões pudessem apagar. Por três vezes tem a nação portuguesa despertado do
letargo de alguns centos de anos; nas duas primeiras muito lucrou a causa da
glória e muito pouco a da liberdade. Na última, em tudo única, importa
segurar por tal maneira o edifício social, que a geração presente colha
alguma vantagem de seus arriscados esforços e as gerações vindouras não
maldigam a nossa memória, bem como nós maldizemos, nesta parte, a memória
de nossos maiores. Para desatarmos, a terceira dúvida, que se opôs ao preâmbulo,
cumpre que nos demoremos um pouco sobre a condição civil da gente
portuguesa nos primeiros séculos da monarquia. Quando a nação pôs a
coroa na cabeça do senhor D. Afonso Henriques, começava na Europa a
desmoronar-se o sistema feudal, que era um encadeamento sucessivo de
vassalagem e soberania, subindo por todos os postos da sociedade, desde o
vilão até ao primeiro imperante. Causas particulares fizeram com que este
sistema não fosse tão pesado entre nós, como em outros países, onde os
vilões eram escravos; porque entre nós havia a necessidade política de
lhes dar uma condição mais honrosa, do que aos mouros, considerados como o
último anel da cadeia social. 0 cristianismo fazia ingénuos os vilões,
isto é, fazia-os homens livres capazes de melhorar a sua condição,
entretanto que o escravo mouro só podia aspirar à alforria. Outra circunstância
concorreu para melhorar a sorte do povo português, e foi o plano que
seguiram os nossos primeiros reis de convidar colonos estrangeiros para
substituir a povoação mourisca. Concorreu ainda terceira circunstância:
os cavaleiros do Templo, do Hospital e do Santo Sepulcro, comunicando o
Oriente com o nosso reino, deram uma direcção mais liberal à opinião pública,
fazendo conhecer entre nós a Constituição que Godofredo de Bulhões dera
a Jerusalém, debaixo do nome de Assises, e que foi um modelo para as nações
mais civilizadas daqueles tempos. À medida que o sistema feudal se relaxava entre nós, parece
que se lhe devia substituir uma nova organização social, que fixasse e
definisse os direitos do cidadão, de uma maneira clara e precisa; mas não
foi assim: estes melhoramentos apareceram destacados, segundo o bom prazer
dos reis, que de tempos a tempos se lembravam de tornar melhor a condição
civil de seus súbditos, com alguma providência parcial. Assim vemos, por
exemplo, que o Sr. D. Afonso II promulgou uma lei, que vem no Livro 4.º Título
25 § 1.º do Código Afonsino, em que ordenava: «que qualquer homem que
for livre filhe qualquer senhor que quiser: isto (acrescenta ele)
estabelecemos em favor da liberdade por tal que o homem livre livremente
possa fazer de si o que lhe aprouver». Assim vemos, que o Sr. D. Manuel
prescreveu no Livro 2, Título 46 de suas Ordenações a obrigação de morarem
os colonos em certos casais; por considerar este ónus como uma servidão
adstritiva; mas não deixou de legitimar outras obrigações feudais, que
passaram na sua generalidade para as Ordenações Filipinas do Livro 4,
Título 42. Declarar e fixar os direitos do cidadão não devia ser obra
dos reis, mas cláusulas expressas do pacto social. Entretanto em Lamego só
se fizeram algumas leis acerca da nobreza; e nas Cortes de Coimbra de 1385
se contentaram os povos de exigir que ninguém fosse obrigado a casar contra
sua vontade, como por muitas vezes os obrigaram o Sr. D. Fernando e a rainha
D. Leonor. Verdade é, que os povos vendo-se vendidos como rebanhos de
ovelhas e doados a donatários com suas jurisdições de mero e misto império,
padroados e direitos de padroado, frutos e proveitos, rendas e outros
direitos, que rigorosa e excessivamente se lhes exigiam, representaram em
Cortes ao Sr. D. João I na linguagem enérgica e
singela daquele, tempo: - «que Vossa Mercê fizesse isentos e os
tirasse da sujeição de não servir, nem obedecer a outrem, salvo a Deus e
a Vossa Mercê. E porque senhor assim como nós somos teudos de socorrer a
vossos mesteres e necessidades; assim sedes vós obrigado a nos amparar e
nos defender, nós e nossos haveres, a manter a vossa terra em direito, e em
justiça». - Contudo o tempo era passado, em que os povos podiam obter
condições mais vantajosas: o Sr. D. João I estava já firme e seguro em
seu trono no ano de 1430. Por duas principais razões não entraram os
direitos de cidadão nas leis fundamentais da monarquia: 1.ª pela
barbaridade em que Portugal jazia mergulhado com toda a Europa, quando se
estipulou e adicionou o nosso pacto social; 2.ª pela defeituosa organização
de nossas velhas Cortes, em que os dois braços, clero e nobreza, impediam
acintosamente a emancipação do 3.º estado, que reputavam património seu. Do que fica dito podemos apurar as seguintes verdades: 1.ª
que a condição civil do povo português não foi tão apertada pelo
sistema feudal, como a condição civil dos outros povos da Europa: 2.ª que
não se substituindo ao sistema feudal uma nova organização social, ficou
pendendo do bom prazer dos reis o melhoramento da condição civil do povo
português: 3.ª que estes melhoramentos destacados e, incompletos não
podiam formar um código, onde bem e verdadeiramente se definissem os
direitos do cidadão; e finalmente, que os direitos de cidadão não
entraram em nossas leis fundamentais, tanto por arbitrariedade dos tempos,
como pelo interesse daqueles que desejavam perpetuar essa barbaridade.
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Fonte : Luís Manuel Prado de Azevedo, Discursos Parlamentares de Oradores Portugueses, vol. I, Porto, Escriptorio da Empreza («Bibliotheca Modelos de Eloquencia, 1»), 1878, págs. 191-200.
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