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O Padre António Vieira a pregar, na reconstituição de João da Cunha Neves e Carvalho, publicada na Galeria pitoresca da historia portuguesa, de 1842 |
ORAÇÃO DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA
Sermão do Padre António Vieira proferido na Capela Real em 1642, no dia do nascimento do Rei D. João IV e da festividade de S. José, 19 de Março.
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Para além dos motivos de ordem religiosa, este sermão de Vieira caracteriza-se
pelo esforço de concordar o Evangelho e a festa de São José com a festa
do novo rei, sentado no trono de Portugal à pouco mais de um ano. Notam-se
bem as preocupações do célebre orador em mostrar a legitimidade da Casa
de Bragança ao trono de Portugal e à sucessão de D. Sebastião, havendo já um esboço da
futura ligação entre a legitimidade do governo de D. João IV, e as ideias do
rei Encoberto e do Quinto Império, um tema a que voltará
bastantes vezes, e que servirá para defender a legitimidade da aclamação
do duque de Bragança.. É que a Restauração de uma dinastia nacional em Portugal estava longe de ser, naquele momento, um dado adquirido, tanto a nível externo, como sobretudo a nível interno. As resistências à revolta contra um rei legítimo - Filipe III -, eram muitas e as reticências tanto na aristocracia, como na Igreja assim como na população em geral bastantes. Dificuldades no estabelecimento do novo estado de coisas que o nacionalismo português tem impedido de investigar convenientemente, mas que levarão o padre jesuíta a utilizar todos os meios para justificar a revolta, como seja em último caso a lendária afirmação proferida em Ourique a D. Afonso Henriques por Cristo: «Quero em vós, e em vossa descendência estabelecer o meu império». |
«O tempo em que se começou a celebrar S. José, foi pontualmente depois da perda de el-rei D. Sebastião, de triste memória, e antes da felicíssima restituição à coroa de el-rei D. João nosso senhor; para que posto entre a ruína do Reino, e o remédio: compadecido da ruína, a remediasse».
SERMÃO
DE S. JOSÉ Cum
esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph.
1 [«Maria, Mãe de Jesus, estava prometida em casamento a José»] I Questão
foi mui duvidada entre os Antigos, qual dia desta vida era mais feliz; se o
primeiro, se o último; se o do nascimento, se o da morte. Daqui veio, que
seguindo várias gentes várias opiniões, umas se alegravam nos
nascimentos, outras os celebravam com lágrimas: umas se entristeciam nas
mortes, outras as solenizavam com festas. Chegou finalmente a dúvida ao
tribunal de el-rei Salomão, o qual inclinando-se à parte que parecia menos
provável, resolveu que melhor é o dia da morte, que o dia do nascimento: Melior
est dies mortis die nativitatis [«é melhor ir a
uma casa onde há luto do que ir a uma casa onde se faz festa»]. 2 Com isto estar resoluto, e
definido assim na Escritura, hoje parece que temos a mesma questão ou
concordada, ou ressuscitada; porque estamos por mercê de Deus em um dia tão
glorioso por uma morte, tão feliz por um nascimento, que bem se pode
competir dentro em si mesmo, ou a vencer feliz suas glórias, ou a vencer
glorioso suas felicidades. Consagrou-se este dia às glórias do Céu com a
morte do maior santo que nele reina, o divino Esposo da Virgem Maria., S.
José: e consagrou-se outra vez o mesmo dia às felicidades de Portugal, com
o nascimento felicíssimo do mais desejado rei, e mais benemérito, el-rei
nosso senhor D. João, o Quarto, para que sobre os trinta e oito, que hoje
conta, continue por muitos e mui compridos anos as prosperidades que goza.
Morre hoje José, e nasce Sua Majestade. Que ventura tão recíproca! Nem
José, morrendo, podia deixar no mundo melhor substituto: nem Sua Majestade,
nascendo, podia entrar no mundo com melhor planeta. Estando
Cristo Redentor nosso na cruz, olhou para S. João, o discípulo amado, e
encarregou-lhe que tivesse cuidado de servir e acompanhar a sua Santíssima
Mãe. Reparam alguns santos em não dar o Senhor este cargo a outro apóstolo,
senão a S. João, porque ainda que em S. João concorriam todas as
qualidades, em algumas era igualado, e em alguma excedido; e para mordomo da
Rainha dos Anjos todos o excediam no atributo da ancianidade. Pois se era
mais moço João, e havia outros amados, e mais parentes, porque não
escolheu Cristo a outro discípulo, senão a S. João para este ofício? A
razão foi; porque o ofício de acompanhar e servir à Senhora, era ofício
de S. José, enquanto viveu: e para substituir em ausências de José, quem
havia de ser, senão João? Não é menos que de S. Cipriano o pensamento: Ut
non tam Joseph oneretur tanti ministerii praepositura, sed Joannes.
Morrera José: vagara no mundo aquele grande lugar; e para substituir em sua
morte, para suceder em sua ausência, ninguém havia no mundo que estivesse
a caber, senão quem? João, o amado de Deus. João o amado de Deus
substitui a José: Non tam Joseph, sed Joannes. E
isto quando? No dia de seu nascimento. Parece que não pode ser; porque nem
o real, nem o nascimento podem competir a S. João aqui. Ora tudo foi.
Quando Cristo deu a S. João o cuidado de servir à Senhora, as palavras que
disse foram estas: Mulier, ecce Filius tuus: 3 Mulher, eis
aí teu filho. Deinde dicit discipulo: Ecce Mater tua: 4
João, eis aí tua Mãe. Mãe e Filho, de que maneira? Mãe tinha S. João,
mas era Maria Salomé: Filho era, mas do Zebedeu. Pois se estes eram seus
pais, como se chama João filho da Senhora, e a Senhora Mãe de João? É
porque João tornou a nascer nesta hora, e nasceu só da Virgem por força
das palavras de Cristo. Autores houve, e entre eles expressamente S. Pedro
Damião, que disseram, que assim como as palavras, Hoc est Corpus meum
[«isto é o meu corpo»],
ditas uma vez por Cristo, tiveram força para converter o pão em corpo do
mesmo Cristo; assim as palavras, Mulier, ecce Filius tuus, tiveram
força para fazer a S. João, e o converterem de filho do Zebedeu em filho
de Maria. De
maneira, que S. João teve dois nascimentos: um nascimento natural, com que
nasceu filho do Zebedeu; outro nascimento sobrenatural, com que nasceu filho
da Mãe de Deus. Pelo primeiro nascimento nasceu nas praias do Tiberíade;
pelo segundo nascimento nasceu ao pé da cruz. Pelo primeiro nascimento
nasceu de geração humilde; pelo segundo nascimento nasceu da mais ilustre
e real prosápia que havia no mundo, filho de uma Senhora., herdeira de um
rei morto à mão de seus inimigos: Jesus Nazarenus Rex Judaeorum [Jesus
de Nazaré rei dos Judeus].
Assim nasceu S. João segunda vez, e assim foi necessário que nascesse,
para suceder no lugar de S. José como sucedeu; porque, só se pode
substituir dignamente a morte de José, com quê? Com o nascimento real de
um João, o amado de Deus: Discipulum, quem diligebat: Mulier ecce Filius
teus: Non tam Joseph, sed Joannes. II Só
vejo me podem reparar os curiosos em falar no dia de S. José por termos de
morte, sendo que mais devia com um, e outro intento chamar-lhe, nascimento;
porque assim chama a Igreja às mortes dos santos: Natalitia Sanctorum.
Se eu não fora mais amigo da verdade, que da propriedade, assim o fizera;
mas as mortes de outros santos podem-se chamar nascimentos; a morte de S.
José, não. As mortes de outros santos podem-se chamar nascimentos, porque
quando morreram à vida temporal, nasceram à vida eterna. Não assim S. José.
Como não estava ainda aberta a porta do Céu, quando S. José morreu, não
foi o Santo no dia de sua morte à glória, senão ao Limbo. Ao Limbo S. José
neste dia? Valha-me Deus; que duvidoso horóscopo! Não sei eu como poderei
provar o que entrei dizendo que não se podia nascer com melhor planeta.
Dizem os matemáticos, que nascer com os planetas debaixo da Terra, é prognóstico
de infelicidades. Pois se S. José neste dia seu o temos todo debaixo da
terra, o corpo na sepultura, a alma no Limbo; que influências podemos
esperar deste planeta em tão funesto sítio? Ora digo que é felicíssimo
auspício ter neste nascimento a S. José debaixo da terra; porque ainda que
os planetas debaixo da Terra tenham perigosas influências, tiram-se por
excepção os planetas que são Josés: os planetas que são Josés, para
influírem felizmente, hão-de estar debaixo da Terra. Estava
o patriarca José em Egipto: morreu, e diz o Texto sagrado, que depois de
sua morte, cresceram muito os Israelitas em número. e poder: Quo mortuo,
creverunt filii Israel quasi germinantes multiplicati shunt, ac roborati
nimis, impleverunt terram [«morreu ... os filhos de
Israel tornaram-se fecundos e multiplicavam-se; tornaram-se cada vez mais
numerosos e poderosos, a tal ponto que o país ficou repleto deles»]. 5 Que os filhos de Israel
crescessem pelos merecimentos de José, não me admira; antes assim havia de
ser, que isso quer dizer José, aumento e crescimento: Joseph accrescens.
O que me admira é que crescessem os Israelitas depois dele morto: Quo
mortuo. Se José quer dizer crescimento, e os filhos de Israel cresceram
por sua. influência, porque não cresceram em sua vida, senão depois de
sua morte? A razão é porque para se lograrem as influências de José, há-de
estar debaixo da terra. Delicadamente o tirou Hugo Cardeal do mesmo Texto.
Diz o Texto que: Creverunt quasi germinantes, cresceram os filhos de
Israel, assim como crescem as plantas. Bem dito, diz Hugo: Uno grano
emortuo, multa creverunt: Cresceram os filhos de Israel como as planta;
porque assim como as plantas, para nascerem, e crescerem, é necessário que
a virtude de que nascem, se enterre primeiro debaixo da terra; assim para
que a virtude de José influísse aumentos nos filhos de Israel, foi necessário
que ele morresse e se enterrasse primeiro: Quo mortuo, creverunt. Os
outros planetas hão-de estar em cima, mas os Josés debaixo da terra. Grande
advertência de Filo. Pode-se duvidar a razão porque José se mostrou tão
benigno, e fez tantos favores e mercês a seus irmãos, de quem recebera
tantos agravos. Digo que se pode duvidar; porque bem mostraram os primeiros
dois irmãos, Caim e Abel, que não basta a razão de irmandade para
abrandar corações. E se um irmão respeitado mata; um irmão ofendido, que
fará? Pois se José estava tão ofendido de seus irmãos, como se mostrou tão
benigno e liberal com eles? A razão, disse Filo, que foi por umas palavras
que disseram a José os irmãos. (quando lhe deram conta de si, disseram que
eram doze; os dez que ali estavam, um que ficara com o pai, e outro que
morrera, que era o mesmo José. As palavras foram estas: Duodecim fratres
sumus: minimus cum patre nostro est, alius non est super
[«Éramos doze irmãos ... : o mais novo está agora com o nosso pai e o
outro desapareceu»]. 6 O
menor de todos, Benjamim, ficou com o pai; o outro, que era José, Non
est super, já não está em cima, está debaixo da terra. Já está
debaixo da terra José? Por isso se mostrou tão benigno, e liberal com os
irmãos, diz Filo: Alius non est super, de se loquentes audiens, quid
animi habere potuit? Ouvindo dizer José que já não estava em cima,
senão que estava debaixo da terra, que outra coisa pode fazer senão amar,
favorecer, e influir beneficamente liberalidades? Os outros planetas, para
influírem benignamente, hão-de estar em cima; mas José, quando não está
em, cima, senão debaixo da terra, como hoje (assim tem o hebreu: Hodie
non est super) no dia em que não está em cima, senão debaixo da
terra, então influi vida, mercês, felicidades, e aumentos. III Temos
visto o nascimento real de João o Amado, e o sítio do Planeta, em que
nasce debaixo da terra, no mesmo, ou semelhante dia; e porque os dias, como
diz David, também se falam e se entendem uns com os outros: Dies diei
eructat verbum [«o dia passa a mensagem a outro dia»]; 7 com razão perguntará o dia do nascimento
de Sua Majestade ao dia, em que nasce, de S. José, que influências pode ou
deve esperar de tão divino Planeta. g resposta não é como a dos matemáticos,
duvidosa e incerta; mas tão certa e sem dúvida, como tudo o que dizem os
evangelistas. Vamos ao nosso Evangelho, que é de S. Mateus, no capítulo
primeiro, e ouçamos com admirável propriedade o que diz, como se falara
deste dia, e do nosso caso: Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph.
Estava, diz, a Mãe de Jesus, Maria, desposada com José. Onde se deve
advertir, que a palavra desposada não significa promessa recíproca de
bodas futuras, senão verdadeiro e actual matrimónio por contrato, e
palavras de presente, como consta do mesmo Texto: Noli timere accipere
Mariam conjugem tuam: [«não tenhas medo de
receber Maria como esposa»] 8
mas a cortesia do Evangelista não
disse, casada, senão desposada, como termo mais decente e decoroso. O que
suposto, era a Senhora já Mãe de Jesus, porque tinha concebido ao Verbo
Eterno; mas antes de Mãe, primeiro desposada. E porquê? Como era, e havia
de ser sempre Virgem, tanto importava ser primeiro desposada, como depois:
porque razão logo ordenou a Providência Divina, que não concebesse ao
Filho de Deus, senão depois de desposada: Cum esset desponsata Mater
Jesu? A razão principal é; porque convinha e era necessário, que a
conceição, e parto da mesma Virgem estivesse encoberto: Ut virginues
partus celaretur. Assim o dizem S. Jerónimo, S. Basílio, S. João
Damasceno, Santo Ambrósio, S. Bernardo, e é comum dos santos padres.
Constava da Sagrada Escritura pelo oráculo e testemunho do profeta Isaías,
que o Messias, e Rei prometido para Redentor do mundo havia de nascer de uma
Virgem: Ecce, Virgo concipiet et pariet Filium [«a
jovem concebeu e dará à luz um filho»]. 9
E porque
este Rei não só na Terra, senão no mesmo Inferno, havia de ter muitos émulos
e inimigos, esta era a importância, e necessidade porque convinha, e tinha
ordenado a Divina Providência, que estivesse encoberto a todos, como com
efeito se encobriu no desposório, ou matrimónio da Virgem Santíssima com
S. José, parecendo que não tinha mais mistério a conceição, e
nascimento daquele Filho, que o comum e ordinário dos outros homens. Que
semelhança tem agora, ou que propriedade em S. José a providência de Deus
neste mistério com o nascimento de Sua Majestade, que Deus guarde, no dia
do mesmo Santo? Disse-o Ruperto com umas palavras, que se lhe pedíramos as
fizesse de encomenda, não vieram mais nascidas ao intento: Ut esse
Sponsus, custosque Beatae Virginis, ac nati ex ea Regis. Desposa-se José
com Maria, e nomeadamente com Maria Mãe de Jesus, porque o fim destes
desposórios foi ser José Esposo da Virgem, e guarda do Rei nascido: Custos
nati Regis. Oh grande excelência! Oh grande glória! Oh dignidade
superior a todos os santos a de José! Que os foros da mesma omnipotência
nasçam debaixo de seu amparo, e que não tendo Cristo Anjo da Guarda,
porque é Deus, tenha por Custódio um homem, que é S. José: Custus
nati Regis! Grande glória de José, e grande graça também do. nosso
rei, e reino! Que o amasse Deus, e cuidasse do seu remédio com tão
especial providência, que o patrocínio que deu em seu nascimento ao Rei
que havia de restaurar o mundo, esse mesmo patrocínio desse em seu
nascimento ao rei que havia de restaurar a Portugal! Um e outro nasceu
debaixo da mesma protecção, um e outro nasceu debaixo da tutela e amparo
de S. José: Joseph custos nati Regis. Sendo
pois estes dois reis nascidos ambos reis, ambos redentores, e ambos
encobertos; o primeiro, como diz a profecia de Isaías: Vere tu es
Deus absconditus, Deus Israel Salvator [«De facto,
Tu és o Deus escondido, o Deus de Israel, o Salvador»]. 10
O segundo prometido pela profecia, e tradição de Santo Isidoro a Espanha,
não com outro nome, ou antonomásia, senão a do Encoberto; vejamos quão
particularmente encobriu a um e outro, o que a um e outro deu Deus por
guarda o cuidado e vigilância de S. José. A Cristo encobriu-o, como Esposo
de Maria, nove meses e treze dias desde sua conceição até depois de seu
nascimento, em que o descobriu a estrela no Oriente aos Magos, e os Magos em
seguimento dela a toda Judeia. E como o encobriu? Spiritus Sanctus
superveniet in te, et virtus Altissimi obumbravit tibi [«O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo
te cobrirá com a Sua sombra»].
11 A Virgem Senhora nossa tinha dois Esposos, um divino, outro
humano. O Esposo divino era o Espírito Santo; o humano, S. José. Do
primeiro Esposo era obra o Filho concebido, como disse o Anjo à mesma
Virgem: Spiritus Sanctus superveniet in te:
acrescentando: Et virtus Altissimi obumbravit tibi:
que a virtude do Altíssimo lhe faria sombra. E que sombra foi esta, ou quem
foi este sombra °? Foi sem dúvida o segundo Esposo, a cuja sombra esteve a
Virgem depois de desposada, e com a sombra. e nome de Pai, encobriu o que
verdadeiramente não era seu Filho. Assim ficou o Rei, e Redentor, que havia
de ser do mundo, encoberto desde sua Encarnação nove meses até seu
Nascimento, e treze dias, até que a estrela e os Magos, e Deus por eles o
descobriu ao mundo: Ubi est, qui natus est Rex Judaeorum?
[«Onde está o Rei dos Judeus
recém-nascido?»]
12 Mas
se S. José guardou encoberto a Cristo nove meses e treze dias; que comparação
tem este tempo, que não chega a um ano, com mais de trinta e seis anos
inteiros em que teve encoberto ao rei encoberto de Portugal, desde o dia de
seu nascimento até o felicíssimo de sua restituição? Vejo que me
respondem, que S. José não só encobriu a Cristo naquele primeiro ano não
acabado, mas em outros, cujo número certo se não sabe. Sabendo pelo Anjo
que Herodes entre os Inocentes de Belém, queria tirar a vida a Cristo,
fugiu de Judeia para o Egipto, e depois da morte do mesmo Herodes, sabendo
também por aviso do Céu, que reinava em Judeia Arque seu filho, retirou-se
para Galileia. De sorte que para encobrir o primeiro Rei nascido, tomou por
meio tirá-lo diante dos olhos dois reis seus inimigos, e escondê-lo em
terras estranhas. Porém para encobrir o segundo rei, não só no seu
nascimento, nem na sua infância, puerícia, ou adolescência, senão na
idade de varão perfeito em tantos anos, a traça com que o encobriu a
outros dois reis, que não menos lhe podiam tirar a vida e a coroa, qual
seria? Verdadeiramente milagrosa, e digna da Omnipotência Divina. Dentro na
mesma Espanha, dentro no mesmo Portugal, e diante dos olhos dos mesmos reis,
escondeu e encobriu de maneira ao encoberto, que vendo-o, o não viam, nem
viram. É, certo que assim foi, mas duvidoso, como podia ser. No
dia da Ressurreição ajuntou-se Cristo aos dois discípulos que iam para
Emaús, os quais, em todo aquele caminho, O viam e ouviam, sem O conhecerem.
Porventura transfigurou-se Cristo, ou mudou as feições do rosto? Por
nenhum modo. Pois se eram seus discípulos, costumados a vê-l'O todos os
dias, e agora O estavam vendo, e no seu rosto não havia mudança, como O não
conheciam? Responde o Evangelista: Oculi eorum tenebantur, ne eum
agnoscerent [«Os
discípulos, porém, estavam como cegos e não O reconheceram»]. 13
A palavra tenebantur,
melhor se pode entender, do que declarar na nossa língua: Tenebantur,
estavam detidos: Tenebantur, estavam
presos: Tenebantur, estavam
suspensos: Tenebantur, estavam em si,
e fora de si, como extáticos os olhos que O viam, e não conheciam. Fazendo
este milagre nos Discípulos a omnipotência de Cristo; e nos reis, que
tanto podiam temer, e acautelar-se do que hoje é nosso, a mão invisível
de S. José. Desde o princípio em que se fizeram senhores de Portugal
aqueles reis estranhos; Filipe II tinha diante dos olhos a senhora D.
Catarina; Filipe III ao duque D. Teodósio; Filipe IV a Sua Majestade, que
finalmente lhe tirou da cabeça a coroa; e vendo-os, não conheciam o que
neles deviam recear e temer, cegando-os S. José com a mesma luz de seus
olhos; e cobrindo o seu e o nosso encoberto com o descobrir. Assim
desempenhou o grande santo a obrigação que tinha de encobrir, e provar o
nome de encoberto no novo rei, nascido no seu dia: mas ainda lhe falta, ou
nos falta uma maior consideração e vigilância deste seu empenho. O ódio,
a emulação, a cautela, o receio de perder o ganhado em Portugal, que
tinham os reis estranhos, a grandeza do poder, e a doçura do possuir, podia
lisonjear e adormecer todo este cuidado; mas da nossa parte, e em nós os
Portugueses, além da dor do perdido, estava com os olhos abertos ao remédio
o amor, o desejo, e a necessidade. O amor ainda que é cego para ver, é
lince para adivinhar: o desejo é um afecto sempre ardente e inquieto, que não
sabe sossegar um momento: sobretudo a necessidade da redenção, da
liberdade, e de rei natural, era a que mais apertava os cordéis a este
tormento, e tinha. com a soga na garganta todos estes afectos. E como podia
ser, que sendo eles tão vigilantes, e tendo sempre o direito da coroa, e a
pessoa do rei a quem pertencia, diante dos olhos, de tal sorte a encobrisse
S. José, que a ninguém viesse ao pensamento ser ele o que o havia de
recuperar"? Mas em encobrir o nosso encoberto neste grande perigo de o
declararem as evidências, ou conjecturas de algum destes afectos, mostrou o
Santo, quão alta e delicadamente observou as obrigações do ofício de o
guardar: Custos nati Regis;
equivocando milagrosamente um rei com outro rei, e encobrindo um vivo com
outro morto. Perdeu-se, ou morreu na batalha de África el-rei D. Sebastião,
e puderam tanto as saudades de um rei, que se tinha perdido a si e a nós,
que sem se divertirem aonde deviam, deram em esperar dele, e por sua vida e
vinda, a nossa redenção; e este foi o altíssimo conselho, com que S. José,
debaixo das cinzas do rei passado e morto, conservou e teve encoberto o rei
futuro e vivo. Não vemos conservar-se vivo o fogo debaixo das cinzas que o
encobrem? Pois assim conservou e encobriu S. José a vida de el-rei, que
Deus guarde, debaixo das cinzas de el-rei D. Sebastião defunto. É o que
diz expressamente Isaías, no capítulo LXI. Promete Deus ali de alegrar os
tristes, de consolar os desconsolados, de libertar os cativos, e conclui,
que pelas cinzas lhes dará a coroa: Ut mederer contritis corde: et
praedicarem captivis indulgentiam: ut consolarer omnes lugentes
;
14 e finalmente: Et darem eis coronam pro cinere.
Assim estava Portugal triste, assim estava desconsolado, assim estava
cativo, e assim lhe prometia S. José a coroa perdida debaixo das cinzas do
rei morto reputado por vivo; e assim conservava vivo e encoberto aquele que
verdadeiramente havia de restituir aos tristes, desconsolados e cativos a
coroa perdida. De maneira que encoberta a verdade debaixo do engano, a
esperança, debaixo da desesperação, a vida debaixo da morte, e a coroa
debaixo das cinzas, aos príncipes estranhos, que tudo isto tinham por riso,
não lhes dava cuidado o remédio; e os vassalos, amigos e naturais, que o
tinham, pouco menos, quase por fé, com milagrosa providência, enganada a
sua dor, o seu amor, o seu desejo, e a sua necessidade, se consolavam e
animavam da falsa e equivocada esperança até que a verdadeira, debaixo
dela encoberta, ao tempo destinado pelo Céu, lhe trouxe a felicidade que
hoje logramos. IV Certo
que ponderar cabalmente esta felicidade, será causa de não faltar nunca
Portugal ao eterno agradecimento a S. José. Que uma vida (não sejamos
ingratos, por não saber o que devemos a Deus), que uma vida, em que estavam
fundadas as consequências, que hoje se logram, apesar da emulação de dois
reis, debaixo de sua mesma jurisdição se conservasse! Que nasça a décima
sexta geração de Portugal tão esperada., e que sendo décima sexta por três
dias, nem o amor dos naturais, nem os ciúmes dos estranhos em trinta e sete
anos o descobrisse! Vivo apesar de tantas advertências políticas,
encoberto, apesar de tantas evidências manifestas! Grandes milagres da
Providência Divina; e este segundo, a meu ver, ainda maior. E se não,
pergunto: Qual foi a razão, porque ordenou Deus que o libertador que havia
de ser de Portugal, se conhecesse tantos anos antes no mundo, não pelo nome
de libertador, senão pelo nome de encoberto? A razão foi; porque maior
milagre da Providência era conservá-lo encoberto, que fazê-lo libertador.
Fazê-lo libertador, foi deliberarem-se os homens a uma coisa muito útil;
conservá-lo encoberto, foi cegarem-se os homens a uma coisa muito
manifesta: e maior milagre é encobrir evidências ao entendimento, que
persuadir conveniências à vontade. O que todos ponderam, o que todos
admiram, o de que todos fazem maior caso é, que se unissem, e concordassem
as vontades de todo um reino, para fazer o que fizeram. Muito foi; mas bem
considerado, não foi muito; porque, que muito que as vontades dos homens se
persuadissem a uma coisa tão útil, e tão honrosa, como ter reino, ter
rei, ter liberdade, viver sem cativeiro e sem opressão? Porém que o autor
felicíssimo de todo este bem nascesse e vivesse entre nós tão retratado
pelos oráculos divinos, e ainda. nomeado pelo próprio nome, e o tivesse
Deus encoberto, sem que o amor, nem a emulação, que são os dois afectos
mais linces, o descobrissem! Que o vissem os olhos, e que guardasse segredo
o entendimento! Que suspirassem os desejos, e que não bastassem as maiores
advertências! Dissimulado a evidências, e encoberto a olhos vistos! Este
é o maior milagre, esta a maior maravilha, mas agora exercitada, e muitos séculos
antes já ensaiada: por quem? Pelo autor da mesma protecção, S. José. Conta
o Texto sagrado no quarto Livro dos Reis, capítulo onze, que em uma ocasião
quiseram tirar a vida tiranicamente os herdeiros do sangue real de Israel ao
menino Joás; porém que Josabá o livrou do perigo, e o criou
escondidamente: Abscondit eum, ut non interficeretur,
15 até que passados alguns anos, os nobres do povo se uniram, e
todos com as armas nas mãos entraram no paço real, e impedindo as guardas
em um sábado, aclamaram por rei a Joás, e o meteram de posse do reino, que
lhe pertencia, lançando do paço a Atalia, uma senhora que então
governava. Desta maneira refere o Texto este caso, e bem se vê, que é tão
próprio do que sucedeu em Portugal, que se ao nome de Joás se mudara o s,
em m, se pudera trasladar este capítulo,
e escrever-se em nossas crónicas. Bem está: mas quem fez isto? A quem se
deve esta façanha! Quem há-de levar a glória desta maravilha? Quem? S.
José. Diz Isidoro Isolano que Josabá, a cuja indústria deve sua vida e
restituição Joás, foi figura de S. José, Esposo da Virgem Joseph
profecto in Josaba praefiguratus est, quae Joas Infantem clam nutrivit, et
aluit, ao regem Israel tandem constituit.
Hei-de construir as palavras ao pé da letra, para maior glória de S. José,
e maior evidência do nosso caso. Joseph profecto in Josaba
praefiguratas est. Verdadeiramente S. José
foi figurado em Josabá: Quae Joas infantem clam
nutrivit, et aluit: que guardou ao infante
Joás vivo e encoberto: Ac regem Israel tandem constituit:
e finalmente o fez rei de Israel, metendo-o de posse do reino, que lhe
tocava. E não é isto mesmo, o que fez S. José com o rei e reino de
Portugal? Nem o caso pode ser mais próprio; nem eu quero dizer mais nesta
matéria. Estas
são as obrigações em que S. José tem empenhado a Vossa Majestade,
Senhor; e as consequências delas são, que assim como S. José não só foi
Salvador V Tenho
acabado o sermão; de todo ele quisera tirar somente uma coisa, queira o
Senhor que seja tão bem recebida nos ânimos de todos, como é a todos
necessária e importantíssima. O que concluo de todo este discurso é, que
deve o reino de Portugal tomar solenemente a S. José por particular
advogado, e protector de sua conservação e aumentos. A razão que tenho
para isto, é a mais eficaz, que pode ser: querer Deus que seja assim, nem nós
devemos querer outra coisa. Sonhou el-rei Faraó que haviam de vir a seu
reino aqueles catorze anos de vária fortuna, e dizendo-lhe que importava
prevenir-se de algum varão de grande prudência, que superintendesse. à
conservação e remédio do reino, Placuit Pharaoni consilium
[o concelho agradou ao Faraó»], 18 contentou o conselho ao rei, e voltando-se para José, disse: Nunquid
sapientiorem, et consimilem tui invenire potero [«não
há ninguém tão inteligente e sábio como tu»]? 19
Porventura, José, posso eu achar algum que seja mais sábio, mais prudente,
e em cujas mãos e conselho esteja mais segura minha monarquia,? O ceptro e
a coroa ponho debaixo do vosso patrocínio, mandai, ordenai, despendei, não
como vassalo, mas como pai. O mesmo digo no nosso caso. Isidoro
de Isolano já acima alegado, autor, que há muitos anos que escreveu,
admirando-se muito de que em seu tempo não fosse celebrado na Igreja o
glorioso S. José, conclui assim: Suscitabit Dominus sanctum Joseph
ad honorem nominis sui, caput, et patronum peculiarem imperii militantis
Ecclesiae. Esteja embora esquecido por agora S. José, e não seja sua memória tão
celebrada como merece; que Deus levantará este grande santo a seu tempo,
para que seja particular padroeiro do seu império na Igreja militante: Patronum
peculiarem imperii militantis Ecclesiae.
Duas coisas havemos de saber para entendimento destas palavras: uma, quando
se começou a celebrar S. José; outra, qual é no mundo o império de
Cristo. O tempo em que se começou a celebrar S. José, foi pontualmente
depois da perda de el-rei D. Sebastião, de triste memória, e antes da
felicíssima restituição à coroa de el-rei D. João nosso senhor; para
que posto entre a ruína do Reino, e o remédio: compadecido da ruína, a
remediasse. E o império de Cristo qual é? O mesmo Senhor foi servido de
no-lo explicar, quando disse a nosso fundador, o senhor rei D. Afonso
Henriques: Volo in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire.
Quero em vós, e em vossa descendência estabelecer o meu império. Pois se
Deus levanta no mundo a S. José, quando quer levantar a Sua Majestade por
rei: se o império de Cristo na Igreja militante somos nós; e S. José há-de
ser particular padroeiro deste império: que resta, senão que efectivamente
se conclua de nossa parte, que é o constituir e reconhecer com pública
solenidade a S. José por protector particular do reino de Portugal, e sua
conservação; dizendo a este José, o que os Egípcios disseram ao outro: Salus
nostra in manu tua est, respiciat nos tantum Dominus noster, et laeti
serviemus regi [«Tu salvaste-nos a vida! Alcançámos o
teu favor e tornar-nos-emos escravos do Faraó»? 20 Notas: Optei por apresentar a tradução das citações latinas retiradas da Bíblia no próprio corpo do texto para permitir uma leitura contínua do sermão.
1.
Mateus, I, 18. (regresso ao texto)
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Fonte: Padre António Vieira,
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