DAS MEMÓRIAS DA MARQUESA DE ALORNA
Nota: Algumas das ligações no texto remetem para entradas no «Portugal - Dicionário histórico».
O ANO DE 1780.
No 1.º de Fevereiro de 1780 cheguei a Salvaterra, e
conheci logo pelo modo com que me recebeu a princesa do Brasil, Dona
Maria, que a Família Real, não obstante as cartas fulminantes do
General da Província e de Aires de Sá 1, estava muito a meu favor. As Princesas mesmas me facilitaram uma ocasião de poder encontrar a
Rainha só. Aproveitei logo dela e disse a sua Majestade, que,
vistos os dissabores que o Conde de Oeynhausen 2 tinha. experimentado
na província, eu não podia deixar de lembrar-lhe que era debaixo
da sua protecção que se tinha feito o meu Casamento e que mais que
nunca, precisava que sua Majestade verificasse as esperanças que tão
justamente tínhamos concebido e as suas promessas augustas tinham
autorizado. Longe de parecer que este meu discurso (a que juntei
algumas frases ternas, conformes ao meu estado) tinha produzido um
bom efeito sobre a Rainha, achei um modo muito seco e mesmo me pareceu
severo, respondeu simplesmente: – Veremos, e foi andando para diante. É dificultoso pintar o desalento que
espalhou sobre mim esta cena, que pareceu tão extraordinária
depois do que se tinha passado no ano antecedente, no mesmo mês de
Fevereiro. O número de apaixonadas que eu tinha nesse tempo no Paço,
sim, me podia mostrar que esta indiferença da Rainha era uma
daquelas aparências que a política da nossa Corte julga essencial
à sua dignidade, mas eu estava muito desconsolada para poder augurar da resposta da Rainha alguma coisa favorável. Dona
M ... A ... e Dona B ... H ... 3, mostrando-se muito minhas amigas e muito minhas interessadas, quiseram saber logo o que eu tinha
passado com Sua Majestade. A minha sinceridade e o seu valimento, me
facilitaram para logo esta confidência, e como os olhos das pessoas
da Corte vêem diversamente as coisas do que as vê uma mulher
costumada à Natureza singela e sem arte, acharam que as coisas iam
belamente, e puseram-me o «veremos» da Rainha em tal perspectiva,
que seria loucura descontinuar os meus esforços para melhorar de
fortuna. Fui dos corredores do Paço para a Antecâmara da Rainha,
aonde estive fazendo versos e contando Novelas às Açafatas 4
da
Rainha toda a noite, até que apareceu o famoso Arcebispo de
Tessalónica,
que entrou por ali dentro aos encontrões, como costumava, para ir
rezar com a Rainha. As Açafatas lançaram-se todas a ele para que
me falasse, e ele, marrando com tudo e com todos, apenas me disse
que já tinha falado com meu Marido, que não tinha que me dizer,
que fossem à fava e que a Rainha estava esperando por ele para
rezar. Estas duas cenas com os primeiros agentes da minha felicidade
facilmente se julgará a impressão que me fizeram, mas, por
habilidade das Açafatas ainda tive que tomar estes estoiros do
Arcebispo como sinais de benevolência. Por felicidade minha e para
poder costumar-me à marcha retrógrada que se pratica naqueles sítios,
a escassez das casas em Salvaterra obrigava-me a dormir no Paço em
casa da Camareira-Mor da Rainha mãe 5, que era minha Amiga. Esta
senhora, uma das veteranas do Paço, não se deitava senão depois
da meia-noite e o seu quarto era o rendez-vous da boa
companhia, circunstância que me facilitou, dentro em dois ou três
dias, o Conhecimento daquele terreno, da linguagem necessária
nele e dos indivíduos de que se compunha a casa de Sua Majestade.
Vi que pouco a pouco se tinham costumado à minha fisionomia, e que
o mesmo Arcebispo já bracejava menos, quando me encontrava, e quase
que mostrava alguma curiosidade em me ouvir. Não me enganei, porque
adoecendo Dona M ... A ... 6 e achando-me eu no seu quarto, veio ele
de propósito falar-me. Seria coisa curiosa mas inútil relatar
o princípio da conversação. Basta só dizer que, depois de muita
grosseria, muita patada e muito despropósito, que nos divertiram
muito, a mim e a Dona M... A..., resolveu-se S. Ex.ª a falar em Negócios.
Comecei por argui-lo muito resolutamente do abandono em que nos
tinha deixado, depois de se interessar com tanta eficácia em que
meu Marido ficasse em Portugal e casasse comigo, e não sabia
como ele podia concordar este desamparo com o nome de filho que lhe
continuava a dar; que as histórias que acabavam de passar-se no
Porto provavam que S. Ex.ª ou não tinha conhecido o Conde quando
se interessava por ele ou o desconhecia agora, deixando-o vítima da
cabala e da emulação; que eu tinha ordem de meu marido para dizer
a S. Ex.ª que, não obstante ter abandonado tudo pelo serviço da Rainha, a sua
honra o obrigava a largar o 2.° Regimento do Porto, de que era Coronel, se Sua Majestade não estava capacitada de que, longe de
merecer a carta que Aires de Sá lhe escreveu, precisava de uma
satisfação completa, e que, tendo merecido o desagrado da Rainha,
não queria ficar nem um dia mais em Portugal: Como as ordens do
Conde de la Lippe tinham força de lei, entregasse S. Ex.ª a Sua Majestade
a Cópia de uma que eu lhe dava, pela qual se governou o Conde para
revogar outra anterior, de cuja inexecução o arguíam. Olhou para
mim muito pasmado e respondeu-me: – Isso é ponto de Estado. Nem eu nem ele soubemos então que coisa
era ponto de Estado. Insisti, dei-lhe quantas razões me lembraram
para o obrigar a falar, mas tudo era inútil e a resposta constante
foi sempre: – Isso é ponto de Estado! Até que eu, que já tinha percebido que
o homem era de têmpera amorosa, não obstante a casca bruta,
comecei a explanar as consequências daquele rigor, e como bastava
que eu considerasse na situação aflitiva de meu Marido, para me
enternecer. Pintei-lhe tão vivamente as minhas penas, que já lhe
bailavam as lágrimas nos olhos, até que rompeu, dizendo: – Já me não posso interessar por seu
marido, Senhora. ele é um ingrato, que não quis aceitar os benefícios
da Rainha e que recusou o governo da Beira, que Sua Majestade lhe
mandou oferecer, declarando que precisava de uma pessoa do seu préstimo
naquela província. O que de ali se havia seguir, V. Ex.as
o veriam; mas como não quiseram, queixem-se de si. Estas palavras, que podiam assustar-me,
produziram o efeito contrário, e estimei ver tão distintamente uma
das causas do desagrado da Corte e ter tantos meios de convencer de
falsidade os autores de uma calúnia sem nome. Perguntei-lhe em que
ocasião tinha sido feito esse oferecimento e por quem. Respondeu-me
logo que S. M. tinha encarregado o Marquês de Angeja de escrever ao
Conde, e que ele lhe tinha respondido que não aceitava. Eu, que
estava bastante certa do modo de proceder do Conde, assegurei-lhe que,
para provar a Sua Majestade que a tinham enganado, eu respondia pela
aceitação do Conde, mesmo sem lhe comunicar o que acabava de
passar-se, e que além disso eu me obrigava a provar a Sua Ex.ª que
o Marquês de Angeja não tinha nunca proposto ao Conde semelhante
coisa. Teimou o Arcebispo muito que era verdadeira a proposta e a
recusa; e eu, pelo contrário, sustentei-lhe sempre que era mentira
e que no dia seguinte lhe traria todas as cartas do Marquês de Angeja
para ver se achava nelas o mínimo vestígio do negócio. A minha
firmeza começou a persuadi-lo e. facilitou-me insistir em que desse
ali mesmo a ordem do Conde de La Lippe, para achar uma nova prova de
animosidade com que começavam a caluniar e perseguir meu marido.
Tive então a completa satisfação de ver que a leitura da
sobredita ordem lhe provou evidentemente que o Conde tinha enchido
completamente a sua obrigação. O ponto estava em convencer o Arcebispo
da verdade, para logo começar a blasfemar contra as intrigas da
Corte e a dizer-me que ninguém conhecia os amigos (quer dizer: o Visconde, o Marquês de Angeja) como ele, que se interessava. muito
por mim e pelo Conde, mas que, não obstante o que eu diria, não
deixava de ter que o arguir, porque a verdade do caso era que o
Conde, tendo casado comigo, estava com isso tão contente, que não
queria mais nada do serviço e queria largá-lo.
Esta foi sempre a arma formidável com que o atacaram na
presença da Rainha, e é desnecessário dizer que também lhe
provei facilmente o contrário. Nesta conversação ganhei tanto terreno ...! Não obstante repetir-me por várias
vezes que tudo aquilo eram "pontos de Estado", sempre concluiu,
segurando-me que, se o Conde não tivesse casado comigo, não teriam
os fidalgos tanto campo para intrigas, e que um dedo seu valia mais
que todos eles juntos; que a Rainha a necessidade que tinha era de
um homem como ele, para lhe endireitar as coisas; que veria o que se
podia fazer e que ele ia logo dizer à Rainha que as intrigas do
Porto procediam de não saberem os Ministros qual era a sua mão
direita, porque lhe esqueciam os decretos de que deviam de ser
fiscais e clamavam pela execução das ordens que se tinham abolido.
A conversação durou muito tempo, mas o resto foram sempre indícios
de amizade, misturados com muita grosseria. Soube pelas açafatas,
depois, que ele me não tinha falado menos claro que a Sua
Majestade, e que a Rainha, cuja bondade aproveitava todas
ocasiões de manifestar-se, mostrou grande desejo de me
favorecer e fez várias expressões honrosas a respeito dos talentos
e merecimentos do Conde. O efeito de tudo isto foi maravilhoso,
porque, no dia seguinte, entregando eu as cartas do marquês de
Angeja ao Arcebispo, foi com elas imediatamente à Rainha e fez tal
alarido que ordenou sua Majestade mesmo ao Marquês de Angeja que
chamasse o Conde de Oeynhausen e lhe desse uma satisfação de tudo
que se tinha passado e que lhe segurasse, da parte de S. M., que
ela ficava inteirada de tudo que se tinha passado no Porto,
reconhecia os seus talentos Militares, e aprovava muito o modo com
que se tinha conduzido. Na manhã seguinte, teve o Arcebispo, uma
larga conferência com meu marido e pareceu renovar nele todo o
entusiasmo antigo. O Conde foi beijar a mão à Rainha, que
o tratou muito bem, e eu fui continuando a minha assistência no Paço,
donde me propus não sair, sem arrancar meu Marido à situação
penosa em que se achava. As Princesas, que constantemente me
fizeram muita honra, contribuíram muito a benquistar-me com a
Rainha e dispuseram a Rainha mãe a favorecer todas as minhas
pretensões. Um destes dias, chegou a notícia da morte de D.
Francisco Inocêncio, embaixador em Espanha, e, segundo as disposições
em que estava o Arcebispo, não pareceu nada extraordinário a
nenhuma das minhas amigas que este lugar se desse ao Conde; mas
estava o Visconde de Ponte de Lima 7 pela proa e, apesar da opinião
do Ministro dos Negócios Estrangeiros e da boa vontade do
Arcebispo, como tinha receio que D. Miguel de Portugal tivesse muito
frio em Alemanha, insistiram com a Rainha e foi ele nomeado
Embaixador. Meu Marido não quis pedir nada, mas eu que estava da
parte de dentro do Paço e que via como se distribuíam aquelas
postas, falei a Aires de Sá, pedindo-lhe que fizesse entrar o
Conde na Carreira Diplomática, porque assim se lhe tinha prometido
antes do Meu Casamento, e eu não podia subsistir, na situação em
que estava. Respondeu que no Conselho já não podia dizer mais do
que tinha dito, porque, a respeito das Coisas Militares como das Políticas,
entendia que ele era o homem que se necessitava, mas que, à força
de dizer o que entendia, já os seus colegas o increpavam de
parcialidade. Todas as minhas amigas e a Princesa
faziam força para que o Conde entrasse na Carreira Diplomática,
mas nenhuma me dava segurança e todas acusavam o Visconde e o Marquês
de Angeja de oposição. Resolvi-me a falar ao Visconde, assentando
de fazer o contrário do que ele me dissesse. Fez-me muitos
cumprimentos, mostrou-me grande desejo de me servir, disse-me que a
embaixada de Espanha ainda não estava dada, nem por consequência
vago o lugar de Viena e que me -pedia encarecidamente que naquela
noite não falasse eu à Rainha. Isto me bastou para ver a sua opinião.
Fui imediatamente falar com uma das minhas amigas, a qual me
comunicou que, tendo tido a resolução de perguntar a S. M. se meu
Marido seria nomeado para algum dos lugares, S. M.
respondeu que eu ainda não tinha pedido nenhum. Esta resposta
aclarou-me e, abolindo todos os meus antigos princípios, conheci
que na nossa Corte é preciso pedir, e que de pouco ou nada serve
merecer. Encontrei a Princesa D. Maria, que me disse: - Vai depressa pedir o lugar de Viena,
se o queres, porque já está dada a embaixada a D. Miguel. Estas palavras bastaram para fortificar
o meu parecer e obrar o contrário do que me tinha aconselhado o
Visconde. Fui imediatamente esperar a Rainha ao quarto de sua Mãe e
pedir-lhe o lugar. Não me lembra o que me respondeu, mas foi tão
pouco que, por mais que me seguraram que o Negócio ia bem,
interiormente o dei por perdido. No outro dia, pelas sete horas da manhã,
já eu estava na antecâmara, mas achei o Marquês de Angeja moço a
contas com o Arcebispo. E como a experiência me tinha mostrado que
daquela família saía toda a fábrica de embrulhadas com que me
atazanavam, tomei o meu privilégio de senhora e disse-lhe
polidamente que quisesse S. Ex.ª retirar-se, que eu tinha que falar
com o Arcebispo em particular. Não colhi desta conferência senão
dizer-me ele mal de meu Pai, relatar uma carta que ele tinha
escrito à Rainha, pouco necessária. Voltei desconsolada para o
oratório, aonde achei Dona M... A..., que com palavras misteriosas
pretendia animar-me. Tinha razão, porque, chegando depois o Conde
de Oeynhausen, veio atrás dele o Visconde de Ponte de Lima e lhe
disse com grande aceleração que Sua Majestade acabava de o nomear
Ministro Plenipotenciário para a Corte de Viena; - e que lhe podia
ir agradecer essa graça. Sem grande temeridade posso dizer que a
perturbação que mostrou o Visconde neste anúncio, me indicou
bastantemente que se tinha desarranjado algum plano seu, o que
depois se confirmou, porque soube com bastante certeza, que na véspera
à noite, pouco tempo depois de me ter dado aquele conselho de
amigo, tinham o Marquês de Angeja e ele, insistido muito com a
Rainha, para que nomeasse D. Diogo de Noronha
8 em seu lugar. Quando
eu saí do Oratório, achei o Arcebispo como um doido, dando uns
sinais de alegria tão imprudentes como inesperados, e disse-me logo
em ar de triunfo. - Diga lá a seu Pai que lhe pegue e que
vá ralhar com V.ª Ex.ª a Viena. Eu não fiz nada continuou ele. -
A Rainha é que quis, mas diga lá que não sou seu Amigo nem do seu
Homem! Vai por terra ou por mar? Que é do homem? Que venha beijar a
mão à Rainha, e eu tenho que lhe falar. Esta multidão de coisas juntas
atordoaram-me de modo que apenas me lembra o que lhe respondi, tanto
mais que a ideia de ver o Conde satisfeito era a que absorvia todas
as minhas faculdades. Sei, porém, que ficámos, eu, ele e Dona M
... A..., muito tempo comentando a multidão de intrigas que se
tinham feito aqueles três dias, das quais eu já não fazia caso
algum, lembrando-me que a piedade da Rainha me punha 774. léguas
longe dos intrigantes. As circunstâncias em que me achava então
com meu Pai não deixavam de me dar cuidado; porque, como me tinham
feito assinar uma escritura, e ao Conde também, de que eu nunca
sairia de Portugal, necessitava uma nova ordem da Rainha
para poder acompanhar meu Marido. Depois de beijar a mão à
Rainha, foi o Conde conferir com o Arcebispo, que o tratou às mil
maravilhas e logo lhe disse que era preciso tirar uma Princesa de
Portugal do paradeiro em que elas estavam; que ele não tinha ordem
nenhuma da Rainha para lhe falar naquela matéria, mas que estava
certo que, observada toda a decência e delicadeza neste ponto, a
Rainha estimaria ver a senhora Infanta D. Mariana Vitória casada
com o Imperador 9. O Conde respondeu-lhe que desejava encher todas as obrigações
do seu emprego com a maior habilidade possível e que ficava muito
lisonjeado com a simples ideia de uma incumbência tão lisonjeira, mas
que a mesma importância da matéria exigia a maior circunspecção,
e por isso lembrava a S. Ex.ª que, para que o não julgassem
intruso ou o viessem a arguir de precipitado, seria bom que, pelo
Ministro dos Negócios Estrangeiros, mandassem pôr aquele ponto nas
instruções por escrito que ele devia receber. Pareceu isto muito
bem ao Arcebispo, louvou a sua prudência e sagacidade e continuou
dizendo que esse serviço lhe daria a ele (Arcebispo) ocasião de
fazer valer a sua amizade e ao Conde a de consolidar a sua fortuna;
que esta ausência, sendo cheia por um serviço tal, aplacaria as
intrigas e emulação dos Angejas e a antipatia do Visconde„e lhe
daria a ele tempo para vencer as objecções que tinha feito o Marquês
de Angeja ao Estabelecimento da Caixa Militar, sem a qual era impossível
a execução do plano que tinha feito ao Conde, e que ele esperava
que, depois de estar alguns anos em Viena, pudesse vir executar,
sendo chamado para se pôr à testa das coisas militares, que era o
que se precisava. Que, por agora, o melhor era partir, para
extinguir a parcialidade do Visconde, motivada pelos alaridos dos
meus parentes, e que eles calariam a boca, quando o Conde estivesse
no lugar que lhe competia. Disse-lhe mais que os Ordenados de Viena
não eram grandes e que, se além dos seus soldos militares, que ele
queria que conservasse, julgava precisar mais dinheiro, que lho
dissesse francamente, que ele lho procuraria. Quem conhece a boa fé germânica e quem
teve ocasião de observar a candura, nobreza e generosidade da alma
do Conde, verá que este discurso não podia produzir nele senão
uma gratidão sem limite, um desejo sem limite de encher as intenções
da Rainha e um abandono total da conveniência, apropriado à
generosidade de S. M. e ao zelo do seu Procurador, que, sendo primeiro Ministro, tinha na mão todos os meios de o fazer feliz. Eu participei do modo de pensar de meu Marido, e, ainda que dezoito anos de trabalhos e o ter nascido neste
país me faziam duvidar de tanta felicidade junta, era tal a multidão
de sentimentos que me ocupava, que não tive tempo para objecções. Parti de Salvaterra para Almeirim, a dar
parte a meus Pais da nomeação do Conde; e, bem como eu temia, meu
Pai perguntou logo se a Rainha tinha dispensado o termo que me
obrigava a não sair de Portugal. Por aqui vi logo quais eram as
disposições de meu Pai. Tratei de não falar mais naquela matéria.
Para evitar algum excesso, encarreguei minha irmã e meu irmão de o
adoçarem quanto pudessem nesta matéria, mas o que me custou mais a
combater foi minha Mãe, que não suportava a ideia de separar-se de
mim para sempre. Contra as suas armas, que são saudade e lágrimas,
não tinha eu força alguma nem pude resistir-lhe, senão
entregando-lhe a minha filha, como penhor da minha volta dentro em
dois anos. No dia seguinte, voltei para Salvaterra,
aonde estava o Conde; voltei, para envenenar-lhe aqueles instantes
de alegria, com a notícia do que se passava na minha família e com
receio de que me separassem dele por muito tempo. Ele disse-me
logo quanto era necessário para sossegar a minha inquietação. E,
a dizer a verdade, mais temia eu a impertinência da contenda que as
forças dela, porque, visto querer o Arcebispo que eu partisse,
estava certa que a Rainha me havia de mandar. Sem embargo disto,
ainda durou muitos dias a indecisão, mas finalmente venceu-se,
entregando o Arcebispo uma petição minha a S. M., que foi
despachada logo. O Conde foi nomeado para Viena no dia 15
de Fevereiro, e daí até o dia 14 de Abril, em que partimos para
Viena, passei os dias em cumprimentos, despedidas e mortificações.
Meu Pai fez tudo quanto podia contribuir para a minha felicidade;
porque, estando persuadido de que, quanto mais me afligisse e
mortificasse, mais excitaria o interesse da Corte a meu favor e, por
consequência, mais se seguraria a minha fortuna, mortificou-me
quanto soube e quanto pôde. Mas, como os meios extraordinários nem
sempre são os mais seguros, eu fiquei com as mortificações, e
nunca me chegaram as fortunas, que ele talvez me desejava. Notas: Na transcrição do documento actualizámos a grafia, mas mantivemos a utilização das maiúsculas e das minúsculas, assim como a sintaxe mantendo as vírgulas. Normalmente, e seguindo aqui a transcrição de Hernâni Cidade, transformámos o ponto e vírgula num ponto, e modernizámos a transcrição dos diálogos, fazendo parágrafo e acrescentando o travessão. 1. Aires de Sá e Melo (c. 1690 - 1786), secretário de estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, de 1777 a 1786 , tinha sido nomeado em 1775 secretário de estado adjunto do Reino para ajudar o marquês de Pombal no seu despacho. Fora embaixador em Madrid de 1764 a 1775, sendo o principal defensor da aproximação diplomática com a Espanha. O filho, João Rodrigues de Sá e Melo, foi feito visconde de Anadia em 8 de Maio de 1786, em consideração aos serviços do pai. (regressar ao texto) 2. Carlos Augusto, conde de Oyenhausen, familiar do conde de Lippe, e da mulher do marquês de Pombal, embora longínquo, veio para Portugal em Setembro de 1776 recomendado pelo ainda marechal general do exército português. Nomeado coronel do 1.º regimento de infantaria do Porto, que estava destacado na fortaleza de Valença, foi acusado em Junho de 1777, já no reinado de D. Maria I, por oficiais do seu regimento de introduzir novidades no regulamento, sem autorização. Ilibado pelo inquérito realizado sob a autoridade do conde de Bobadela, saiu de Portugal, durante cerca de 6 meses. Em 15 de Fevereiro de 1779 casou com a futura marquesa de Alorna, regressando ao comando do seu regimento agora aquartelado no Porto. (regressar ao texto) 3. Hernâni Cidade transcreve estas iniciais como Maria Antónia e Bernarda Campos. Uma das Damas da Câmara da Rainha chamava-se Maria Antónia de Azevedo. (regressar ao texto) 4. As Açafatas faziam as funções de criadas de quarto da Rainha. Eram quem a ajudava a vestir e despir e que tratavam dos vestidos, assim como das jóias. O nome vinha do árabe as-safat, que era um pequeno cesto de vime, de borda baixa sem arco nem asas. Em 1782, data da 1.ª edição do Almanaque de Lisboa, em que se listam as pessoas servindo no «Quarto da Rainha», havia onze açafatas servindo a rainha, a princesa do Brasil e a infanta D. Maria Ana, irmãs da rainha, assim como a infanta D. Mariana Vitória, sua filha. (regressar ao texto) 5. D. Maria Caetana da Cunha, marquesa de Povolide, tinha nascido em 10 de Setembro de 1699, era filha do 1.º conde de Povolide, irmã do 2.º conde e tia do 3.º, D. José da Cunha de Ataíde, o titular à época. Fora casada com D. Brás Baltazar da Silveira, que tinha sido capitão-general das Minas. (regressar ao texto) 6. Hernâni Cidade, em nota, afirma que se trata de D. Maria de Almeida Bernarda Campos, considerando por isso que estas iniciais não se referem à mesma pessoa que as primeiras M.A. que transcreve como Maria Antónia. V. nota 3. (regressar ao texto) 7. Há aqui uma confusão. O Visconde de Vila Nova de Cerveira só foi feito Marquês de Ponte de Lima em Dezembro de 1790, data provável portanto da produção destas memórias, ou da sua cópia. (regressar ao texto) 8. D. Diogo de Noronha (1747-1806), filho do 3.º marquês de Angeja, feito 8.º conde de Vila Verde em 1799, foi nomeado ministro assistente ao despacho, e secretário de estado do Reino em Fevereiro de 1804, tendo assumido interinamente nesse mesmo ano a secretaria de estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra. Morreu em Novembro de 1806, com 57 anos. Em 1781 será nomeado embaixador em Roma. (regressar ao texto) 9. José II (1741-1790), Imperador do Sacro Império Romano Germânico da Nação Alemã em 1765, filho da rainha da Hungria e Boémia Maria Teresa (1717-1780), e do Imperador Francisco de Lorena (1708-1765), tinha enviuvado em 1767 devido à morte da sua segunda mulher, a princesa Josefa Maria da Baviera. (regressar ao texto) Fontes: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivos
Particulares, Casa Fronteira, Família Almeida, doc. 170. Marquesa de Alorna, Inéditos: Cartas e outros Escritos, Lisboa, Sá da Costa («Clássicos Sá da Costa»), 1941, págs. 59 - 72. A ver também:
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