DAS MEMÓRIAS DA MARQUESA DE ALORNA


Relato das movimentações de D. Leonor de Almeida, condessa de Oyenhausen, futura marquesa de Alorna, para conseguir a nomeação do seu marido como embaixador de Portugal em Viena. A transcrição completa deste documento, um caderno manuscrito existente na Torre do Tombo, mostra a vida da corte portuguesa na sua paragem anual em Salvaterra, no Ribatejo, no princípio de cada ano. O documento tem também o interesse acrescido de mostrar a figura do arcebispo de Tessalónica, confessor e ministro assistente ao despacho no início do reinado de D. Maria II, e conclui com um último parágrafo extraordinário, em que se fala das relações entre pai e filha, mostrando que o problema da dificuldade no relacionamento é de todos os tempos e de todos os estratos.

Nota: Algumas das ligações no texto remetem para entradas no «Portugal - Dicionário histórico».

 

O ANO DE 1780.

 

D. Leonor de Almeida

D. Leonor de Almeida, condessa de Oyenhausen, futura marquesa de Alorna

No 1.º de Fevereiro de 1780 cheguei a Salvaterra, e conheci logo pelo modo com que me recebeu a princesa do Brasil, Dona Maria, que a Família Real, não obstante as cartas fulminantes do General da Província e de Aires de 1, estava muito a meu favor. As Princesas mesmas me facilitaram uma ocasião de poder encontrar a Rainha só. Aproveitei logo dela e disse a sua Majestade, que, vistos os dissabores que o Conde de Oeynhausen 2 tinha. experimentado na província, eu não podia deixar de lembrar-lhe que era debaixo da sua protecção que se tinha feito o meu Casamento e que mais que nunca, precisava que sua Majestade verificasse as esperanças que tão justamente tínhamos concebido e as suas promessas augustas tinham autorizado. Longe de parecer que este meu discurso (a que juntei algumas frases ternas, conformes ao meu estado) tinha produzido um bom efeito sobre a Rainha, achei um modo muito seco e mesmo me pareceu severo, respondeu simplesmente:

– Veremos, e foi andando para diante.

É dificultoso pintar o desalento que espalhou sobre mim esta cena, que pareceu tão extraordinária depois do que se tinha passado no ano antecedente, no mesmo mês de Fevereiro. O número de apaixonadas que eu tinha nesse tempo no Paço, sim, me podia mostrar que esta indiferença da Rainha era uma daquelas aparências que a política da nossa Corte julga essencial à sua dignidade, mas eu estava muito desconsolada para poder augurar da resposta da Rainha alguma coisa favorável. Dona M ... A ... e Dona B ... H ... 3, mostrando-se muito minhas amigas e muito minhas interessadas, quiseram saber logo o que eu tinha passado com Sua Majestade. A minha sinceridade e o seu valimento, me facilitaram para logo esta confidência, e como os olhos das pessoas da Corte vêem diversamente as coisas do que as vê uma mulher costumada à Natureza singela e sem arte, acharam que as coisas iam belamente, e puseram-me o «veremos» da Rainha em tal perspectiva, que seria loucura descontinuar os meus esforços para melhorar de fortuna. Fui dos corredores do Paço para a Antecâmara da Rainha, aonde estive fazendo versos e contando Novelas às Açafatas 4 da Rainha toda a noite, até que apareceu o famoso Arcebispo de Tessalónica, que entrou por ali dentro aos encontrões, como costumava, para ir rezar com a Rainha. As Açafatas lançaram-se todas a ele para que me falasse, e ele, marrando com tudo e com todos, apenas me disse que já tinha falado com meu Marido, que não tinha que me dizer, que fossem à fava e que a Rainha estava esperando por ele para rezar. Estas duas cenas com os primeiros agentes da minha felicidade facilmente se julgará a impressão que me fizeram, mas, por habilidade das Açafatas ainda tive que tomar estes estoiros do Arcebispo como sinais de benevolência. Por felicidade minha e para poder costumar-me à marcha retrógrada que se pratica naqueles sítios, a escassez das casas em Salvaterra obrigava-me a dormir no Paço em casa da Camareira-Mor da Rainha mãe 5, que era minha Amiga. Esta senhora, uma das veteranas do Paço, não se deitava senão depois da meia-noite e o seu quarto era o rendez-vous da boa companhia, circunstância que me facilitou, dentro em dois ou três dias, o Conhecimento daquele terreno, da linguagem necessária nele e dos indivíduos de que se compunha a casa de Sua Majestade. Vi que pouco a pouco se tinham costumado à minha fisionomia, e que o mesmo Arcebispo já bracejava menos, quando me encontrava, e quase que mostrava alguma curiosidade em me ouvir. Não me enganei, porque adoecendo Dona M ... A ... 6 e achando-me eu no seu quarto, veio ele de propósito falar-me.

Seria coisa curiosa mas inútil relatar o princípio da conversação. Basta só dizer que, depois de muita grosseria, muita patada e muito despropósito, que nos divertiram muito, a mim e a Dona M... A..., resolveu-se S. Ex.ª a falar em Negócios. Comecei por argui-lo muito resolutamente do abandono em que nos tinha deixado, depois de se interessar com tanta eficácia em que  meu Marido ficasse em Portugal e casasse comigo, e não sabia como ele podia concordar este desamparo com o nome de filho que lhe continuava a dar; que as histórias que acabavam de passar-se no Porto provavam que S. Ex.ª ou não tinha conhecido o Conde quando se interessava por ele ou o desconhecia agora, deixando-o vítima da cabala e da emulação; que eu tinha ordem de meu marido para dizer a S. Ex.ª que, não obstante ter abandonado tudo pelo serviço da Rainha, a sua honra o obrigava a largar o 2.° Regimento do Porto, de que era Coronel, se Sua Majestade não estava capacitada de que, longe de merecer a carta que Aires de Sá lhe escreveu, precisava de uma satisfação completa, e que, tendo merecido o desagrado da Rainha, não queria ficar nem um dia mais em Portugal: Como as ordens do Conde de la Lippe tinham força de lei, entregasse S. Ex.ª a Sua Majestade a Cópia de uma que eu lhe dava, pela qual se governou o Conde para revogar outra anterior, de cuja inexecução o arguíam. Olhou para mim muito pasmado e respondeu-me:

– Isso é ponto de Estado.

Nem eu nem ele soubemos então que coisa era ponto de Estado. Insisti, dei-lhe quantas razões me lembraram para o obrigar a falar, mas tudo era inútil e a resposta constante foi sempre:

– Isso é ponto de Estado!

Até que eu, que já tinha percebido que o homem era de têmpera amorosa, não obstante a casca bruta, comecei a explanar as consequências daquele rigor, e como bastava que eu considerasse na situação aflitiva de meu Marido, para me enternecer. Pintei-lhe tão vivamente as minhas penas, que já lhe bailavam as lágrimas nos olhos, até que rompeu, dizendo:

– Já me não posso interessar por seu marido, Senhora. ele é um ingrato, que não quis aceitar os benefícios da Rainha e que recusou o governo da Beira, que Sua Majestade lhe mandou oferecer, declarando que precisava de uma pessoa do seu préstimo naquela província. O que de ali se havia seguir, V. Ex.as o veriam; mas como não quiseram, queixem-se de si.

Estas palavras, que podiam assustar-me, produziram o efeito contrário, e estimei ver tão distintamente uma das causas do desagrado da Corte e ter tantos meios de convencer de falsidade os autores de uma calúnia sem nome. Perguntei-lhe em que ocasião tinha sido feito esse oferecimento e por quem. Respondeu-me logo que S. M. tinha encarregado o Marquês de Angeja de escrever ao Conde, e que ele lhe tinha respondido que não aceitava. Eu, que estava bastante certa do modo de proceder do Conde, assegurei-lhe que, para provar a Sua Majestade que a tinham enganado, eu respondia pela aceitação do Conde, mesmo sem lhe comunicar o que acabava de passar-se, e que além disso eu me obrigava a provar a Sua Ex.ª que o Marquês de Angeja não tinha nunca proposto ao Conde semelhante coisa. Teimou o Arcebispo muito que era verdadeira a proposta e a recusa; e eu, pelo contrário, sustentei-lhe sempre que era mentira e que no dia seguinte lhe traria todas as cartas do Marquês de Angeja para ver se achava nelas o mínimo vestígio do negócio. A minha firmeza começou a persuadi-lo e. facilitou-me insistir em que desse ali mesmo a ordem do Conde de La Lippe, para achar uma nova prova de animosidade com que começavam a caluniar e perseguir meu marido. Tive então a completa satisfação de ver que a leitura da sobredita ordem lhe provou evidentemente que o Conde tinha enchido completamente a sua obrigação.

O ponto estava em convencer o Arcebispo da verdade, para logo começar a blasfemar contra as intrigas da Corte e a dizer-me que ninguém conhecia os amigos (quer dizer: o Visconde, o Marquês de Angeja) como ele, que se interessava. muito por mim  e pelo Conde, mas que, não obstante o que eu diria, não deixava de ter que o arguir, porque a verdade do caso era que o Conde, tendo casado comigo, estava com isso tão contente, que não queria mais nada do serviço e queria largá-lo.  Esta foi sempre a arma formidável com que o atacaram na presença da Rainha, e é desnecessário dizer que também lhe provei facilmente o contrário.

Nesta conversação ganhei tanto terreno ...!

Não obstante repetir-me por várias vezes que tudo aquilo eram "pontos de Estado", sempre concluiu, segurando-me que, se o Conde não tivesse casado comigo, não teriam os fidalgos tanto campo para intrigas, e que um dedo seu valia mais que todos eles juntos; que a Rainha a necessidade que tinha era de um homem como ele, para lhe endireitar as coisas; que veria o que se podia fazer e que ele ia logo dizer à Rainha que as intrigas do Porto procediam de não saberem os Ministros qual era a sua mão direita, porque lhe esqueciam os decretos de que deviam de ser fiscais e clamavam pela execução das ordens que se tinham abolido. A conversação durou muito tempo, mas o resto foram sempre indícios de amizade, misturados com muita grosseria. Soube pelas açafatas, depois, que ele me não tinha falado menos claro que a Sua Majestade, e que a Rainha, cuja bondade aproveitava todas  ocasiões de manifestar-se, mostrou grande desejo de me favorecer e fez várias expressões honrosas a respeito dos talentos e merecimentos do Conde. O efeito de tudo isto foi maravilhoso, porque, no dia seguinte, entregando eu as cartas do marquês de Angeja ao Arcebispo, foi com elas imediatamente à Rainha e fez tal alarido que ordenou sua Majestade mesmo ao Marquês de Angeja que chamasse o Conde de Oeynhausen e lhe desse uma satisfação de tudo que se tinha passado e que lhe segurasse, da parte de S. M., que ela ficava inteirada de tudo que se tinha passado no Porto, reconhecia os seus talentos Militares, e aprovava muito o modo com que se tinha conduzido. Na manhã seguinte, teve o Arcebispo, uma larga conferência com meu marido e pareceu renovar nele todo o entusiasmo antigo.

O Conde foi beijar a mão à Rainha, que o tratou muito bem, e eu fui continuando a minha assistência no Paço, donde me propus não sair, sem arrancar meu Marido à situação penosa em que se achava. As Princesas, que constantemente me fizeram muita honra, contribuíram muito a benquistar-me com a Rainha e dispuseram a Rainha mãe a favorecer todas as minhas pretensões. Um destes dias, chegou a notícia da morte de D. Francisco Inocêncio, embaixador em Espanha, e, segundo as disposições em que estava o Arcebispo, não pareceu nada extraordinário a nenhuma das minhas amigas que este lugar se desse ao Conde; mas estava o Visconde de Ponte de Lima 7 pela proa e, apesar da opinião do Ministro dos Negócios Estrangeiros e da boa vontade do Arcebispo, como tinha receio que D. Miguel de Portugal  tivesse muito frio em Alemanha, insistiram com a Rainha e foi ele nomeado Embaixador. Meu Marido não quis pedir nada, mas eu que estava da parte de dentro do Paço e que via como se distribuíam aquelas postas, falei a Aires de Sá, pedindo-lhe que fizesse entrar o Conde na Carreira Diplomática, porque assim se lhe tinha prometido antes do Meu Casamento, e eu não podia subsistir, na situação em que estava. Respondeu que no Conselho já não podia dizer mais do que tinha dito, porque, a respeito das Coisas Militares como das Políticas, entendia que ele era o homem que se necessitava, mas que, à força de dizer o que entendia, já os seus colegas o increpavam de parcialidade.

Todas as minhas amigas e a Princesa faziam força para que o Conde entrasse na Carreira Diplomática, mas nenhuma me dava segurança e todas acusavam o Visconde e o Marquês de Angeja de oposição. Resolvi-me a falar ao Visconde, assentando de fazer o contrário do que ele me dissesse. Fez-me muitos cumprimentos, mostrou-me grande desejo de me servir, disse-me que a embaixada de Espanha ainda não estava dada, nem por consequência vago o lugar de Viena e que me -pedia encarecidamente que naquela noite não falasse eu à Rainha. Isto me bastou para ver a sua opinião. Fui imediatamente falar com uma das minhas amigas, a qual me comunicou que, tendo tido a resolução de perguntar a S. M. se meu Marido seria nomeado para algum dos lugares, S. M. respondeu que eu ainda não tinha pedido nenhum. Esta resposta aclarou-me e, abolindo todos os meus antigos princípios, conheci que na nossa Corte é preciso pedir, e que de pouco ou nada serve merecer. Encontrei a Princesa D. Maria, que me disse:

- Vai depressa pedir o lugar de Viena, se o queres, porque já está dada a embaixada a D. Miguel.

Estas palavras bastaram para fortificar o meu parecer e obrar o contrário do que me tinha aconselhado o Visconde. Fui imediatamente esperar a Rainha ao quarto de sua Mãe e pedir-lhe o lugar. Não me lembra o que me respondeu, mas foi tão pouco que, por mais que me seguraram que o Negócio ia bem, interiormente o dei por perdido.

No outro dia, pelas sete horas da manhã, já eu estava na antecâmara, mas achei o Marquês de Angeja moço a contas com o Arcebispo. E como a experiência me tinha mostrado que daquela família saía toda a fábrica de embrulhadas com que me atazanavam, tomei o meu privilégio de senhora e disse-lhe polidamente que quisesse S. Ex.ª retirar-se, que eu tinha que falar com o Arcebispo em particular. Não colhi desta conferência senão dizer-me ele mal de meu Pai, relatar uma carta que ele tinha escrito à Rainha, pouco necessária. Voltei desconsolada para o oratório, aonde achei Dona M... A..., que com palavras misteriosas pretendia animar-me. Tinha razão, porque, chegando depois o Conde de Oeynhausen, veio atrás dele o Visconde de Ponte de Lima e lhe disse com grande aceleração que Sua Majestade acabava de o nomear Ministro Plenipotenciário para a Corte de Viena; - e que lhe podia ir agradecer essa graça. Sem grande temeridade posso dizer que a perturbação que mostrou o Visconde neste anúncio, me indicou bastantemente que se tinha desarranjado algum plano seu, o que depois se confirmou, porque soube com bastante certeza, que na véspera à noite, pouco tempo depois de me ter dado aquele conselho de amigo, tinham o Marquês de Angeja e ele, insistido muito com a Rainha, para que nomeasse D. Diogo de Noronha 8 em seu lugar. Quando eu saí do Oratório, achei o Arcebispo como um doido, dando uns sinais de alegria tão imprudentes como inesperados, e disse-me logo em ar de triunfo.

- Diga lá a seu Pai que lhe pegue e que vá ralhar com V.ª Ex.ª a Viena. Eu não fiz nada continuou ele. - A Rainha é que quis, mas diga lá que não sou seu Amigo nem do seu Homem! Vai por terra ou por mar? Que é do homem? Que venha beijar a mão à Rainha, e eu tenho que lhe falar.

Esta multidão de coisas juntas atordoaram-me de modo que apenas me lembra o que lhe respondi, tanto mais que a ideia de ver o Conde satisfeito era a que absorvia todas as minhas faculdades. Sei, porém, que ficámos, eu, ele e Dona M ... A..., muito tempo comentando a multidão de intrigas que se tinham feito aqueles três dias, das quais eu já não fazia caso algum, lembrando-me que a piedade da Rainha me punha 774. léguas longe dos intrigantes.

As circunstâncias em que me achava então com meu Pai não deixavam de me dar cuidado; porque, como me tinham feito assinar uma escritura, e ao Conde também, de que eu nunca sairia de Portugal, necessitava uma nova ordem da Rainha para poder acompanhar meu Marido. Depois de beijar a mão à Rainha, foi o Conde conferir com o Arcebispo, que o tratou às mil maravilhas e logo lhe disse que era preciso tirar uma Princesa de Portugal do paradeiro em que elas estavam; que ele não tinha ordem nenhuma da Rainha para lhe falar naquela matéria, mas que estava certo que, observada toda a decência e delicadeza neste ponto, a Rainha estimaria ver a senhora Infanta D. Mariana Vitória casada com o Imperador 9. O Conde respondeu-lhe que desejava encher todas as obrigações do seu emprego com a maior habilidade possível e que ficava muito lisonjeado com a simples ideia de uma incumbência tão lisonjeira, mas que a mesma importância da matéria exigia a maior circunspecção, e por isso lembrava a S. Ex.ª que, para que o não julgassem intruso ou o viessem a arguir de precipitado, seria bom que, pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, mandassem pôr aquele ponto nas instruções por escrito que ele devia receber. Pareceu isto muito bem ao Arcebispo, louvou a sua prudência e sagacidade e continuou dizendo que esse serviço lhe daria a ele (Arcebispo) ocasião de fazer valer a sua amizade e ao Conde a de consolidar a sua fortuna; que esta ausência, sendo cheia por um serviço tal, aplacaria as intrigas e emulação dos Angejas e a antipatia do Visconde„e lhe daria a ele tempo para vencer as objecções que tinha feito o Marquês de Angeja ao Estabelecimento da Caixa Militar, sem a qual era impossível a execução do plano que tinha feito ao Conde, e que ele esperava que, depois de estar alguns anos em Viena, pudesse vir executar, sendo chamado para se pôr à testa das coisas militares, que era o que se precisava. Que, por agora, o melhor era partir, para extinguir a parcialidade do Visconde, motivada pelos alaridos dos meus parentes, e que eles calariam a boca, quando o Conde estivesse no lugar que lhe competia. Disse-lhe mais que os Ordenados de Viena não eram grandes e que, se além dos seus soldos militares, que ele queria que conservasse, julgava precisar mais dinheiro, que lho dissesse francamente, que ele lho procuraria.

Quem conhece a boa fé germânica e quem teve ocasião de observar a candura, nobreza e generosidade da alma do Conde, verá que este discurso não podia produzir nele senão uma gratidão sem limite, um desejo sem limite de encher as intenções da Rainha e um abandono total da conveniência, apropriado à generosidade de S. M. e ao zelo do seu Procurador, que, sendo primeiro Ministro, tinha na mão todos os meios de o fazer feliz.

Eu participei do modo de pensar de meu Marido, e, ainda que dezoito anos de trabalhos e o ter nascido neste país me faziam duvidar de tanta felicidade junta, era tal a multidão de sentimentos que me ocupava, que não tive tempo para objecções.

Parti de Salvaterra para Almeirim, a dar parte a meus Pais da nomeação do Conde; e, bem como eu temia, meu Pai perguntou logo se a Rainha tinha dispensado o termo que me obrigava a não sair de Portugal. Por aqui vi logo quais eram as disposições de meu Pai. Tratei de não falar mais naquela matéria. Para evitar algum excesso, encarreguei minha irmã e meu irmão de o adoçarem quanto pudessem nesta matéria, mas o que me custou mais a combater foi minha Mãe, que não suportava a ideia de separar-se de mim para sempre. Contra as suas armas, que são saudade e lágrimas, não tinha eu força alguma nem pude resistir-lhe, senão entregando-lhe a minha filha, como penhor da minha volta dentro em dois anos.

No dia seguinte, voltei para Salvaterra, aonde estava o Conde; voltei, para envenenar-lhe aqueles instantes de alegria, com a notícia do que se passava na minha família e com receio de que me separassem dele por muito tempo. Ele disse-me logo quanto era necessário para sossegar a minha inquietação. E, a dizer a verdade, mais temia eu a impertinência da contenda que as forças dela, porque, visto querer o Arcebispo que eu partisse, estava certa que a Rainha me havia de mandar. Sem embargo disto, ainda durou muitos dias a indecisão, mas finalmente venceu-se, entregando o Arcebispo uma petição minha a S. M., que foi despachada logo.

O Conde foi nomeado para Viena no dia 15 de Fevereiro, e daí até o dia 14 de Abril, em que partimos para Viena, passei os dias em cumprimentos, despedidas e mortificações. Meu Pai fez tudo quanto podia contribuir para a minha felicidade; porque, estando persuadido de que, quanto mais me afligisse e mortificasse, mais excitaria o interesse da Corte a meu favor e, por consequência, mais se seguraria a minha fortuna, mortificou-me quanto soube e quanto pôde. Mas, como os meios extraordinários nem sempre são os mais seguros, eu fiquei com as mortificações, e nunca me chegaram as fortunas, que ele talvez me desejava.


Notas:

Na transcrição do documento actualizámos a grafia, mas mantivemos a utilização das maiúsculas e das minúsculas, assim como a sintaxe mantendo as vírgulas. Normalmente, e seguindo aqui a transcrição de Hernâni Cidade, transformámos o ponto e vírgula num ponto, e modernizámos a transcrição dos diálogos, fazendo parágrafo e acrescentando o travessão.

1. Aires de Sá e Melo (c. 1690 - 1786), secretário de estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, de 1777 a 1786 , tinha sido nomeado em 1775 secretário de estado adjunto do Reino para ajudar o marquês de Pombal no seu despacho. Fora embaixador em Madrid de 1764 a 1775, sendo o principal defensor da aproximação diplomática com a Espanha. O filho, João Rodrigues de Sá e Melo, foi feito visconde de Anadia em 8 de Maio de 1786, em consideração aos serviços do pai. (regressar ao texto)

2. Carlos Augusto, conde de Oyenhausen, familiar do conde de Lippe, e da mulher do marquês de Pombal, embora longínquo, veio para Portugal em Setembro de 1776 recomendado pelo ainda marechal general do exército português. Nomeado coronel do 1.º regimento de infantaria do Porto, que estava destacado na fortaleza de Valença, foi acusado em Junho de 1777, já no reinado de D. Maria I, por oficiais do seu regimento de introduzir novidades no regulamento, sem autorização. Ilibado pelo inquérito realizado sob a autoridade do conde de Bobadela, saiu de Portugal, durante cerca de 6 meses. Em 15 de Fevereiro de 1779 casou com a futura marquesa de Alorna, regressando ao comando do seu regimento agora aquartelado no Porto. (regressar ao texto)

3. Hernâni Cidade transcreve estas iniciais como Maria Antónia e Bernarda Campos. Uma das Damas da Câmara da Rainha chamava-se Maria Antónia de Azevedo. (regressar ao texto)

4. As Açafatas faziam as funções de criadas de quarto da Rainha. Eram quem a ajudava a vestir e despir e que tratavam dos vestidos, assim como das jóias. O nome vinha do árabe as-safat, que era um pequeno cesto de vime, de borda baixa sem arco nem asas. Em 1782, data da 1.ª edição do Almanaque de Lisboa, em que se listam as pessoas servindo no «Quarto da Rainha», havia onze açafatas servindo a rainha, a princesa do Brasil e a infanta D. Maria Ana, irmãs da rainha, assim como a infanta D. Mariana Vitória, sua filha. (regressar ao texto)

5. D. Maria Caetana da Cunha, marquesa de Povolide, tinha nascido em 10 de Setembro de 1699, era filha do 1.º conde de Povolide, irmã do 2.º conde e tia do 3.º, D. José da Cunha de Ataíde, o titular à época. Fora casada com D. Brás Baltazar da Silveira, que tinha sido capitão-general das Minas. (regressar ao texto)

6. Hernâni Cidade, em nota, afirma que se trata de D. Maria de Almeida Bernarda Campos, considerando por isso que estas iniciais não se referem à mesma pessoa que as primeiras M.A. que transcreve como Maria Antónia. V. nota 3. (regressar ao texto)

7. Há aqui uma confusão. O Visconde de Vila Nova de Cerveira só foi feito Marquês de Ponte de Lima em Dezembro de 1790, data provável portanto da produção destas memórias, ou da sua cópia. (regressar ao texto)

8. D. Diogo de Noronha (1747-1806), filho do 3.º marquês de Angeja, feito 8.º conde de Vila Verde em 1799, foi nomeado ministro assistente ao despacho, e secretário de estado do Reino em Fevereiro de 1804, tendo assumido interinamente nesse mesmo ano a secretaria de estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra. Morreu em Novembro de 1806, com 57 anos. Em 1781 será nomeado embaixador em Roma. (regressar ao texto)

9. José II (1741-1790), Imperador do Sacro Império Romano Germânico da Nação Alemã em 1765, filho da rainha da Hungria e Boémia Maria Teresa (1717-1780), e do Imperador Francisco de Lorena (1708-1765), tinha enviuvado em 1767 devido à morte da sua segunda mulher, a princesa Josefa Maria da Baviera. (regressar ao texto)

Fontes:

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivos Particulares, Casa Fronteira, Família Almeida, doc. 170.

Marquesa de Alorna, Inéditos: Cartas e outros Escritos, Lisboa, Sá da Costa  («Clássicos Sá da Costa»), 1941, págs. 59 - 72.

A ver também:

A ler:

  • António Pedro Vicente, «O Conde de Oyenhausen - Soldado e Diplomata ao serviço de Portugal», in O Tempo de Napoleão em Portugal - Estudos Históricos, 2.ª Ed., Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2000, págs. 75 - 91

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