DO DIÁRIO DE
FREI MANUEL DO CENÁCULO

Superior da Ordem Terceira de São Francisco, bispo de Beja e arcebispo de Évora Frei Manuel do Cenáculo foi uma das mais importantes figuras do iluminismo em Portugal. Este relato do saque de Évora é impressionante, e mostra bem o problema que se colocou à elite portuguesa durante a 1.ª Invasão Francesa - o caminho muito estreito que se tinha que percorrer entre a aceitação do governo de ocupação, a revolta activa e a colaboração, para manter a existência de uma autoridade portuguesa.

 

O SAQUE DE ÉVORA PELO EXÉRCITO FRANCÊS EM 1808

 

Frei Manuel do Cenáculo

Frei Manuel do Cenáculo Vilas-Boas, Arcebispo de Évora

Julgo ser do meu ofício conservar uma memória exacta, e individual dos acontecimentos nesta cidade de Évora, principalmente relativos à minha pessoa, que sucederam desde a intrusão dos Franceses neste Reino; e tomo por época o dia 13 de Julho do ano próximo passado 1808.

Tendo-se recebido neste dia uma carta oficial, escrita de Juromenha pelo comandante das forças espanholas naquela praça D. Frederico Moretti, dirigida à Câmara e Povo de Évora propondo-lhe uma declaração contra o intruso governo, foi necessário proceder ao convocamento das três Ordens, Nobreza, Clero, e Povo, a quem eu presidi; e foi o meu voto que visto o estado da Cidade, sem tropa, nem munições, não estava em estado de aceitar proposta alguma, no que todos concordaram, e se fez termo, em virtude do qual foi a resposta de que se junta cópia debaixo do n.º 1 1; e dela se julgaram os magistrados obrigados a dar conta ao General Junot para evitar algum rompimento violento, e me foi participado pelos mesmos ministros a boa aceitação com que foi recebido este nosso arbítrio. Continuou esta cidade a sofrer pacificamente obedecendo às Ordens do Governo intruso, sujeitando-se a executar as disposições dos Ministros que a administravam as Secretarias e Tribunais na Corte, e as expediam com cominações, para evitar as quais entretinha eu com respostas que acautelassem a esta minha Diocese as cruéis hostilidades que sofreram tantos Povos desta perseguida Nação, e até me preparei com uma Pastoral que fiz imprimir, e é a que aqui vai junta n.º 2; a qual cuidadosissimamente não publiquei, sem embargo dos exemplos de muitos outros prelados que as publicaram; ainda que eu me visse instado, e como obrigado a fazê-lo pela a insinuação expressa do chamado Secretário de Estado do Interior Francisco António Herman, em Aviso seu, e em nome do intruso Junot, datado de 13 de Maio de 1808.

Assim permanecemos, até que não sei por que clandestina diligência se convocou o mesmo Coronel, com alguma pequena escolta a vir a esta cidade incorporar-se com o General da Província para se repetir a gloriosa Aclamação do nosso Amável Príncipe, tornando a governar-nos na sua feliz obediência pelas Leis Pátrias; o que com efeito se praticou, apresentando-se ao Povo na varanda das Casas da Câmara o retrato do mesmo Senhor, pelos dois chefes português e espanhol, sendo inexplicável a alegria de todo o povo, com que repetia vivas, repicando-se todos os sinos, e desafogando todos os seus prazeres em mil demonstrações. Fiz eu logo que na Sé se cantasse soleníssimo Te Deum; se celebrasse grande festa em acção de graças, renovando eu, e todas nas minhas mãos o juramento de Fidelidade ao nosso Legítimo e Saudoso Soberano.

Recebi, e hospedei no Palácio Arquiepiscopal o coronel espanhol e grande número de oficiais e tropa que com ele concorriam. Estabelecemos um governo de regência do qual eu era o Presidente com o General da Província. Continuámos por poucos dias neste feliz estado, deliberando quanto nos pareceu a bem da nossa segurança, e comodidade pública, quando no dia fatal de 29 de Julho fomos atacados pelo numeroso exército de nove para dez mil homens franceses, comandados pelo General-em-Chefe Conde do Império Loison, e por dois outros generais de divisão, Solignac e Margaron; o qual exército deixava já saqueada a Vila de Montemor, e feita grande mortandade, apesar da vanguarda de oitocentos homens e quatro bocas de fogo que ali tínhamos para defender o passo, a qual à vista da desproporção com o inimigo se retirou sem alguma operação de defesa.

Chegado este exército inimigo às vizinhanças da Cidade, saíram ao campo os dois Chefes o Regimento de Estremoz e o de Voluntários Estrangeiros de Moretti, os artilheiros que serviam as quatro peças espanholas, alguma Cavalaria de Maria Luísa, e alguma outra do dispersado regimento desta mesma cidade, a que juntos os caçadores da Ordenança formaria um total de mil e oitocentos homens. Não há palavras para explicar o valor, a intrepidez, o patriotismo, e o amor do seu Príncipe com que esta desproporcionadíssima Tropa, principalmente os paisanos, arrostou o inimigo, distinguindo-se muito o Regimento de Estremoz, que investia com tanta intrepidez que o mesmo general Loison me disse que – eram bravos soldados –; e foi tanto o estrago feito no inimigo que passadas duas horas de combate, à vista de terem feito a mortandade de três para quatro mil homens, inimigos, mandaram os Comandantes vários Oficiais ao Palácio da minha residência participar-me que a vitória era nossa; o que foi por mim celebrado com graças particulares dadas ao Deus dos Exércitos que tão visivelmente nos favorecia, e cuidei em prontamente acudir com refeição aos que julgava debilitados com o trabalho da nossa defesa. Quando isto celebrava vejo voltarem os mesmos, e mais Oficiais em uma fuga debandada, e passados poucos momentos chega Moretti, e me diz – Está a acção perdida; se Vossa Excelência não quer morrer às mãos dos Franceses, fuja, e esconda-se. Eu, que tenho em meu coração as minhas ovelhas, não julguei desampará-las em um perigo tão evidente:

Corri para a minha Catedral, e no meio do confuso alarido, do estrondo dos canhões, mandei propor capitulação; mas já em hora que estava entrada a Cidade, desamparada de defensores, pois que toda a tropa tinha fugido em desordem, e quando já entravam pela Sé disparando tiros, que mataram o meu Capelão da Cruz, que com ela, e com a pequena Comunidade que a mim se agregou, tinha mandado para a porta da Igreja, rebentando sobre a abóbada granadas que também mataram e feriram algumas pessoas, e fizeram cair aos meus pés estilhaços, e pedaços de pedra; e quando já os oficiais vencedores, e soldados apontando-me baionetas ao peito gritavam por dinheiro, ameaçando morte e saque violento: eu desci do Sólio suplicando-lhe [sic.] humildemente pela vida deste pobre povo. Então foi que eles à vista das minhas humilhações e súplicas deram indícios de que mudavam o parecer em que vinham de que eu era o cabeça da que eles chamavam revolução desta Cidade; pois que eu era Presidente do Governo estabelecido em nome de S.A.R.

Eu não tinha feito actos alguns positivos em obséquio da sua Nação, e nem sendo insinuado tinha feito a publicação de uma só Pastoral, e tanto deram disto indício que o general Loison tendo dado ordem de entrar o exército na cidade a ferro e fogo, o que foi observado de sorte que a primeira casa em que entraram saqueando foi o Palácio Arquiepiscopal; para ele dispararam muitos tiros, acometendo entretanto à casa e matando o meu Bispo Provisor, e penetrando o Convento de Santa Mónica da Jurisdição Ordinária, no qual entrou o mesmo General, e ordenou que dentro nele seria o seu quartel, dispondo-se as aflitas religiosas com cama e mesa, até que informado do meu portamento humilde e Pastoral, me mandou dizer à Sé pelo seu Ajudante e língua o português Freitas, que se queria aquartelar no meu Palácio. Recebi este aviso com demonstrações de satisfação, e até de agradecimento, e com permissão da tropa feroz que nos tinha como prisioneiros na Sé, e com o pretexto de ir preparar a hospedagem, que logo me foi recomendada que devia ser decente e abundante para um General, e quarenta Oficiais; isto quando a minha Família estava toda dispersa, não havendo na casa provisões algumas, e até sendo já morto por eles o meu cozinheiro. Fui neste aperto para casa acompanhado de alguns Eclesiásticos e Diocesanos, que por carinho, por medo, e para refugiarem-se me acompanharam. Entrei em casa rodeado de Militares destemidos, animados com a glória do triunfo, e com arrojo de inimigos cruéis, trazendo as espadas nuas, espingardas, e pistolas empunhadas, vendo-me na necessidade de os hospedar sem faltas; para o que nunca podia estar provido, e naquela ocasião muito menos. Então entra, penetrando o interior das casas o General Loison, com a carranca de triunfador, com a soberba de tirano, e confrontando-se comigo me disse com gesto feroz, e ameaçador – Monsenhor Arcebispo é réu de morte; assinou um Decreto contra a França; é réu de morte. - Ao que eu (graças a Deus) sem o mais pequeno soçobro e apesar do alarido com que todos os Oficiais circunstantes repetiam: – É verdade que é réu de morte, correspondi abaixando humildemente a cabeça, e o General continuou apartando-se de mim com gesto e passos furiosos – Ao menos devia ter dado parte. Comecei a dispor a hospedagem, e a sofrer os insultos mais humilhantes de se deitarem sobre a minha mesma cama, de penetrarem, e esquadrinharem os quartos particulares; de quererem ser servidos das coisas mais esquisitas e com a maior prontidão, até obrigando alguns criados que foram aparecendo, os Clérigos e Frades, como também alguns Seculares que se refugiaram no Palácio, o qual tive aberto e franco para refúgio dos meus Diocesanos, obrigando, digo, a que os servissem de pronto, e isto com pontapés, bofetões, e ameaços de espada e pistolas.

Foram com efeito hospedados à sua vontade com tudo quanto indiscretamente pediram; e eu lhes assistia à mesa sem embargo do perigo a que me arriscava; pois o General ia para ela com um grande punhal que punha junto a si, e os Oficiais que estavam a ela, e os muitos tumultuosamente saíam e entravam todos armados de espadas, e pistolas, ameaçando todos à mais pequena falta de prontidão. À vista de todos estes sofrimentos com paciência e humildade, se resolveu o General a dizer-me que a minha casa era livre de saque, e começou a tratar-me ele e mais alguns poucos Oficiais maiores com menos desprezo e tirania; mas não foi a sua palavra observada porque por ele mesmo General foi a minha casa saqueada excessivamente; não ficou quase nada da prata de que o meu antecessor se tinha provido; fiquei sem anel Episcopal; todo o copioso Monetário que a tanto custo tinha juntado para deixar, juntamente com a grande Livraria que tinha edificado (a qual por si só dá tanto a ver a grande despesa que tenho feito para a instrução do Clero e Fiéis deste Rebanho, que um dos Oficiais de grande patente Mr. Pillet disse ao vê-la: Eis aqui por que o arcebispo não tem dinheiro; pois o tem gastado nisto), tudo quanto era ouro e prata foi saqueado, como também rasgados os Livros, e feitos pedaços os manuscritos, quebrando as mais pequenas e delicadas peças de Museu natural e artificial, unicamente para levarem alguns pequenos remates de prata, e ouro, fazendo em pedaços Imagens de Cristo e Santos; enfim reduzindo tudo a um estado de fazer lástima ainda a quem não é curioso.

Entretanto era aturdida toda a Cidade com repetidos tiros, alaridos dos desenfreados saqueadores, e dos miseráveis que eram feridos e mortos, e que presenciavam os desacatos feitos nos templos, o forçamento das donzelas, a entrada nos conventos dos Frades e Freiras; pois que quase não houve Igreja onde não obrassem o insolentíssimo sacrilégio de arrombar o santo Tabernáculo, espalharem pelo pavimento o Sacrossanto Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo Sacramentado, para roubarem os vasos Sagrados, até chegando a levar alguns com o mesmo Santíssimo Sacramento que derramaram no campo; profanando os mesmos Templos com homicídios, e forçamentos a mulheres de todo o estado e idade. Passada assim a tarde e noite de sexta-feira 29, fui na madrugada de Sábado rodeado pelo General e mais Oficiais, mandando-me que fizesse uma exortação ao meu povo para que obedecesse à autoridade francesa, e que ordenasse o desarmamento do Clero. Não tive mais remédio do que pegar na pena, e com o socorro do Espírito Santo fazer as duas pequenas Pastorais de que junto cópias n.os 3 e 4; as quais sendo por eles lidas, me ordenaram que prontamente lhes apresentasse vinte cópias delas; como também que mandasse logo cuidar em enterrar os muitos mortos de que estava juncadas as ruas e cheias as casas; acrescentando que queriam estabelecer um Governo Francês do qual seria eu o Presidente e que lhe indicasse os membros de que se havia de compor a Junta; tudo isto com sinais de que a minha vida responderia pela falta de sujeição, quando não havia na Cidade pessoas de quem me lembrasse, as quais não estivessem mortas, como era o meu saudoso Bispo Provisor, os Desembargadores Manuel Simões e Fernando da Silveira, e outros dispersos e fugidos. Tudo fiz auxiliado do meu Clero exemplar, que com todo o fervor me ajudaram em um tal aperto, e aflição. Então se seguiu que o General me tratasse com mais benignidade, protestando-me respeito, e que por mim perdoava as mortes que se haviam seguir, como também dava a liberdade a inumeráveis prisioneiros que tinha dentro na Sé, e nas cadeias, entre os quais eram muitos Frades e Clérigos, duzentos homens do Regimento de Estremoz, e muitos paisanos; levando-me para isto à Igreja, e fazendo dizer pelo seu Língua a todos que: – em obséquio, e respeito ao seu Prelado lhes perdoava a morte, e dava a liberdade – de que resultou que esta aflitíssima Cidade rompesse nos clamores de que era a mim que eles deviam a vida, e o resto dos bens que lhes ficavam (Veja-se a cópia junta n.º 5). Gozava eu desta pequena respiração, quando ouço rodar quatro peças, e postarem-se na frente da minha casa, e um alvoroço e tumulto dentro nela, entrando de repente no meu quarto o General, e deixando-se cair com todo o peso em um canapé, me diz: – Monsenhor, eu não posso com os Franceses: eu não posso conter os soldados – ao que lhe respondi que não havendo subordinação na Tropa nada se conseguia. Era o caso que acabando os Oficiais de fazer uma resenha (posto que inexacta) da sua tropa, e achando que os mortos lhe passavam de três mil, instavam a ele General que fosse queimada, e arrasada a cidade, principiando pelo Palácio Arquiepiscopal. Acudiu Deus, e passada meia hora mandou retirar as peças, repetindo a fineza de que por mim perdoava tudo.

Passado o Sábado e o Domingo entre estas angústias e perigos próximos e evidentes de vida, é incrível quanto sofri por mim e pelos meus: choviam as ordens para desarmar, (veja-se a cópia n.º 6), para aprontar rações, para arrasar muros, para franquear cofres, para mandar vir Cónegos que lhe abrissem as suas oficinas, donde tiraram quanto havia de prata e dinheiro; como também de todos os Depósitos Públicos, e particulares, até que na madrugada de segunda-feira mandou o General dizer-me pelo seu Secretário, estando eu ainda na cama, que ele com o exército fazia uma digressão que demoraria quatro dias; que me recomendava o governo da Cidade, intimando-me mil ordens impossíveis de praticar-se, das quais ele viria saber a execução. Dei graças a Deus por esta respiração que me concedia, e continuei com a Junta a cuidar do sossego e cómodo dos desolados habitantes desta triste Cidade. Dei ordens para haver provisão de mantimentos, e para que os dispersos e fugitivos se restituíssem às suas casas, e isto foi unicamente para que o Povo deixado a si não se desordenasse, e se acrescentassem os males uns aos outros. Passados assim os poucos dias até 13 de Agosto, de repente, estando em Junta cuidando no cómodo e sossego dos meus Diocesanos, oiço golpes ferozes na porta do quarto em que estávamos, alarido incivil, e ameaçador, e aberta a porta acho-me acometido de uma tropa de Contrabandistas, armados de trabucos, punhais, pistolas, espingardas, e espadas, que se apossaram de toda a casa, pondo sentinelas em todas as portas, levando me, e os mais da Junta para um quarto interior, onde nos tiveram presos rodeados de guardas, enquanto esquadrinharam miudissimamente todo o Palácio em busca do Coronel de Milícias de Beja, que era um dos membros do Governo; sendo esta prisão em que me tinham tão rigorosa que, para cearmos foi rodeada a mesa de sentinelas, e até para alguma operação natural me necessitaram a fazê-lo de uma janela abaixo, mesmo acompanhado de guardas. Não há palavras para dizer os insultos que sofria esta Tropa de malfeitores, rústicos, incivis, e muito mal animados; até por eles fui roubado, sem me deixarem nem capote; revolveram-me as gavetas mais recônditas; destruíram-me e levaram quantos papéis quiseram, ainda dos particulares da minha administração e me deram ordem de que eu e os mais membros da Junta havíamos imediatamente ser conduzidos presos para Beja; e isto com tanta violência e aperto, que apesar de lhes ser representado os meus anos, e a impossibilidade de sair da minha Diocese, principalmente sem fazer algumas disposições, me diriam com todo o descaramento – há-de ir, e há-de ir logo – e nesta mesma ocasião (talvez para que eu o entendesse) disseram a um dos membros da Junta, que representava a sua impossibilidade por moléstia gravíssima: – há-de ir, pois trazemos ordem para o levar ou vivo ou morto. Vim a perceber que este procedimento era por ordem de uma Regência incivil, e temerária, que se tinha erigido em Beja, com a pretensão de dominar todo o Alentejo e ainda mesmo o Algarve, e que constava ter oferecido obediência e sujeição à Regência Espanhola, com manifesta traição contra o direito supremo do Amável Príncipe que nos rege; a qual Regência não contente com os horrendos crimes que cometeu e fez cometer, usurpando à força de armas quantos dinheiros públicos havia na Província, cometendo homicídios cruéis e injustos, fazendo provisões sem respeito a personagem alguma, pois até pretendiam e davam ordens para ser preso o General da Província, escreveu à Regência erecta nesta Cidade em Nome e pela Autoridade de S.A.R., à qual eu presidia, pedindo sujeição e obediência àquela Junta a quem queriam atribuir os direitos de Suprema, e porque eu com os votos de todos não tinha assentido a uma tão temerária proposição fiquei sendo o objecto do seu ódio, que agora desafogava no insulto de me fazerem passar pela ignomínia de aparecer preso, e humilhado em uma Cidade, onde já serão poucas as pessoas que não tenham sido educadas por mim, e até muitas favorecidas com os meus ofícios, e sobre as minhas possibilidades. Fui enfim conduzido no dia 14 de Agosto pelas quatro horas da tarde pelas ruas desta Cidade, cercado de Contrabandistas, e malfeitores com as armas na mão, até impedindo aos Povos daquela Diocese, que criei, para que não me fizessem os cortejos, e obséquios que por impulsos naturais de gratidão me queriam fazer. Cheguei a Beja no dia 16 pelo meio da tarde: levaram-me à Praça, e se postaram defronte da casa chamada da Regência: deram parte de que chegava o Arcebispo de Évora, ancião de mais de oitenta anos, que tinha regido aquela diocese por mais de trinta e dois anos com carinho de Pai, e diligências eficazes para beneficiar a todos os seus dependentes: Tiveram-me por mais de três quartos de hora exposto naquela publicidade, sendo com efeito aplaudido, e respeitado com lágrimas e vivas de grande parte do povo, a qual disto mesmo era proibida pela escolta maligna e insolente que me rodeava. Presidia naquela intrusa, informe, e desautorizada Regência um Ministro, a quem por alguns doze anos tinha servido, e posso dizer que favorecido: Eram membros o meu Provisor, que nomeei na Sé Vaga para aquele Bispado; outro Clérigo que foi ordenado por Demissória minha, cuja família subsiste por benefícios meus; e outros rapazes a quem fiz muito bem, e poucos exceptuados a quem, ainda mesmo desta Diocese não tenha favorecido com pensões anuais. Nem um só desceu a cumprimentar-me; nem ao menos das janelas me saudaram; só quando já poderia estar cansada a paciência mais heróica, me apareceu um Frade Franciscano, mascarado com chapéu de galão, talabarte e grande espada, ao qual tinha a mesma Regência graduado em célebre Intendente-Geral da Polícia, o qual me disse que estava o meu quartel pronto, isto com tom imperioso, e tornando-lhe eu que já tinha ajustado com os meus Capuchinhos, me deixou outra vez, dizendo que ia dar parte, até que passado outro muito longo espaço me veio conduzir para o dito Convento, fazendo marchar à roda de mim a mesma corja de Satélites; e chegando me entregou ao Guardião com a voz de que ficava em custódia, proibido de comunicação, mais do que com o Capelão que me acompanhava, e o meu criado do quarto. Ali estive solitário, metido na pequena casa chamada Enfermaria, sem reparos, nem mais móveis que um banco, com sentinela à porta, na escada, e corpo de guarda na portaria, que vedava a entrada a qualquer pessoa que me buscava. Isto nos primeiros dias, até que passados alguns, talvez envergonhados de tanta injustiça me foi dizer o mesmo Frade Intendente, que aquele tribunal me mandava dizer que podia receber as minhas visitas, e depois disso foi que me apareceu o meu Provisor do Bispado de Beja (que segundo os Sagrados Cânones administro em Sé vaga) em traje de grande personagem, com faixa escarlate à tiracolo, e grande medalha, dizendo-me em nome da sua Regência que fizesse eu uma Pastoral àqueles povos, análoga às circunstâncias, e que logo se trataria da minha restituição a esta Diocese, juntamente com os meus Eclesiásticos e Seculares, que comigo tinham sido presos. Foi a Pastoral, que junto por cópia n.º 7: foi à censura e lida no consistório disse o Presidente – Está muito escura: o arcebispo não quer desenganar-se em falar claro a favor desta Regência? - Continuei na minha prisão, até que me apareceu um Bacharel, Carlos Manuel de Serpa, o qual tinha comigo relações de Benevolência e de favores: este foi escolhido para me dar cargos, e fazer perguntas. Sem soçobro respondi instantaneamente por escrito, de sorte que a verdade não agradou, a ponto de nunca aparecer este meu descargo. Permanecia a opressão até que chegou ao felicíssimo dia da Restauração do Governo por que suspirávamos: pôs-se em exercício a Regência que S.A.R. se dignou deixar-nos; não julgou a de Beja ter acabado a sua injusta autoridade, antes era vulgar que aqueles maus Administradores da justiça insinuavam ao povo, e o iludiam com a frase de que a regência de Lisboa dependia da de Beja para ter jurisdição. Era público neste Reino e lamentado o insulto que me era feito, e chegando por algumas representações feitas por pessoas minhas aderentes, e compadecidas dos meus trabalhos a notícia deles à Suprema Regência da Corte, foi esta no Adorável Nome de S.A.R. servida Mandar-me restituir a esta minha Diocese pelo honroso Aviso que é apenso por cópia n.° 8, e também que a minha restituição fosse feita da maneira mais decorosa, mandando ordem que também vai junta na cópia n.° 9, ao General da Província para que me fizesse escoltar por toda a tropa necessária, o que ele General executou tão dignamente, como sabedor do grande insulto, e como testemunha da injustiça dele, que mandou que a minha escolta fosse feita pelos Regimentos de Estremoz, Évora, Olivença, e Moura, comandados pelo Coronel deste, que o fez de uma maneira tão religiosa, e civil, que me merece uma particular memória. Com efeito cheguei a Évora no dia 17 de Outubro. É dificultoso explicar o alvoroço, e prazer com que fui recebido destes meus Diocesanos. Cinco léguas distante de Évora comecei a vê-los, e desde esta distância até uma légua próximo à cidade fui sendo encontrado das Pessoas principais do Clero, Nobreza, e Povo, até pelos procuradores deste. Não houve qualidade de demonstração de alegria que me não fizessem. Foguetes, salvas, repiques, vivas, aclamações, adornos de janelas, flores lançadas sobre mim; até a tropa inglesa, que aqui se achava, se postou no adro da Sé, acompanhando-me o Comandante e toda a sua Oficialidade desde que me apeei e se cantou na Sé Soleníssimo Te Deum, até que me restituí às salas do Palácio Arquiepiscopal, onde com a Ajuda de Deus vou vagarosamente convalescendo de tantos trabalhos.

 

Frei Manuel Arcebispo de Évora


Nota:

1. Os documentos mencionados por Frei Manuel do Cenáculo neste documento não são apresentados nesta página. Estão disponibilizados na fonte referida abaixo.

Fonte:

Memória descritiva do assalto, entrada e saque da cidade de Évora pelos franceses, em 1808,
Évora, Minerva Eborense, 1887

A ver também:

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