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DAS
MEMÓRIAS DE JOÃO CHAGAS A tentativa do Partido Democrático, de Afonso Costa, fazer entrar Portugal, a todo o custo, na Primeira Guerra Mundial ao lado dos Aliados, provocou um exacerbar da luta política que levou à ditadura de Pimenta de Castro e ao violento golpe militar de 15 de Maio de 1915, dirigido pelo general Norton de Matos que fez centenas de mortos e feridos. Nomeado presidente do Conselho de Ministros, João Chagas será ferido gravemente ao dirigir-se para Lisboa a tomar posse das funções para que tinha sido nomeado.
1
DE MARÇO -
Não sirvo isto! Minha
mulher responde‑me: -
Tens razão! É uma vergonha! E
imediatamente redijo este telegrama: “Ministro
dos Negócios Estrangeiros - Lisboa. Por
este telegrama, tenho a honra de enviar a V. Ex.ª a minha demissão de
ministro de Portugal junto deste Governo e nesta data entrego os negócios
da Legação ao Sr. Justino de Montalvão3,
primeiro secretário. Representante de um regime de liberdade, não sirvo
ditaduras, nem ditadores. -
João Chagas». E
tirei um grande peso de cima de mim. À noite chegou a notícia de que o
deputado democrático Henrique Cardoso4
foi ontem morto com um tiro, à porta do seu centro político. -
Está feito! Ele
disse: -
É o diabo! E
desfez-se em conjecturas sobre o fim próximo da República. Estávamos no
salão, e como ali fizesse frio, trouxe-o para o meu escritório, para, ao
pé do fogão. Houve um longo silêncio, que ele interrompeu para me
perguntar o que devia fazer e me pedir um conselho. -
Que conselho? Hesitava
sobre o que devia fazer, se devia secundar o meu gesto... Furtei-me a
continuar esta conversação. O espectáculo das fraquezas humanas faz
tanta pena! Espraiou um olhar pelos meus móveis, disse: -
E você que faz a isto? -
O quê? Aos meus móveis? Levo-os comigo... Perguntou
se não valeria mais a pena desembaraçar-me deles em Paris. Pelo menos de
alguns... -
Não! Isto agora, com este tempo de guerra, não dá nada. Levo-os todos.
E só compreendi o seu interesse pelos meus móveis, quando ele, prestes a
despedir-se, já de pé, me perguntou se eu levaria a mal que ele
solicitasse o meu lugar. -
Não! Meu pobre amigo, não levo a mal! Muito
triste é esta vida. Quem
está radiante é o Montalvão. Encarregado de negócios e em Paris!
Honras, proveitos... No entanto diz-se desolado, faz insuportáveis frases
com os dentes cerrados, para arranjar melhor dicção; mas ao comunicar
hoje ao ministro, com singular pressa, que eu lhe entregara os negócios
da Legação, todo se pôs de rojo em cumprimentos e protestos de zelo.
Feio bicho o homem! Os
jornais chegados hoje dão a entender que em Lisboa se está produzindo um
grande movimento popular de protesto contra a ditadura. A Câmara
Municipal resolveu não acatar os seus actos e o mesmo fizeram as Juntas
de paróquia. O Presidente da Republica é objecto de violentas acusações.
Os jornais de Paris desta tarde dizem no entanto que Lisboa está
tranquila. Mau sinal! Novo
pormenor para a história das mentiras de Freire de Andrade6
e do governo Bernardino Machado7.
Contou-me hoje o Alves da Veiga que, em Outubro do ano passado, Freire de
Andrade lhe telegrafara para Bruxelas: "É quase certo que Portugal
entrará brevemente na guerra. Vá preparando as suas coisas.” 4
DE MARÇO -
Guarde a sua virgindade, amigo Chagas! A
guerra esqueceu. Já não me interessam os comunicados que o Negreiros me
telefona todas as noites e mal leio os jornais de Paris. Estamos
preparando as nossas coisas para partir na próxima semana, por Madrid,
onde me fará bem demorar-me uns dias, rever o Prado e os lugares por onde
passeei a minha nostalgia durante o meu exílio de 1894. Minha mulher está
arranjando os seus vestidos, eu estou pondo em ordem a minha papelada,
cartas, documentos, coupures de
jornais de que grandemente vou precisar em Lisboa para a minha campanha,
pois é coisa resolvida no meu espírito fazê-la em uma série de
brochuras. Assim não venha o imprevisto deitar a terra este projecto. 6
DE MARÇO A
notícia da reunião do Congresso em Lamego continua a circular na
imprensa francesa e por certo na do mundo inteiro. 7
DE MARÇO Esta
tarde o Montalvão apareceu-me, não posso dizer muito pálido, porque
todo ele, mesmo em circunstâncias aflitivas como as que está
atravessando, é fogos de Bengala, mas sensivelmente impressionado, a
dar-me a nova do dia. Chegou o Brederode14
- o Brederode, que o governo anterior retirara há pouco daqui a meu
pedido, por intolerável. A remessa deste doido é um acto de represália
do Ministério. Mal chegou, o Brederode pediu logo que se fizesse inventário
dos pertences da Legação e quis que logo, logo se comunicasse ao Ministério
dos Negócios Estrangeiros de França a sua presença e a sua
encarregatura [sic] de negócio,
pois vem encarregado de negócio, esse alienado. Creio que entrou en
coup de vent. A República entrou com outros modos. Encontrou aqui o
Tomás de Sousa Rosa15
espavorido. Não o assustou. Ao contrário. Pediu-lhe que sossegasse, que
não se fosse embora, que ficasse ao serviço da Nação. Acabo de ler no
livro de registo dos telegramas da Legação em 1910 o telegrama que lhe
foi expedido por Bernardino Machado em 6 de Outubro. Dizia assim: “República
proclamada. Governo Provisório presidido Dr. Teófilo Braga16.
Peço comunique feliz nova a esse Governo e aos nossos compatriotas. Ordem
absoluta. (a) Bernardino Machado, ministro dos Negócios Estrangeiros.”
Isto não se concebe. Pois fez-se. Em data de 7, Sousa Rosa respondeu:
"Na situação especial em que me encontro, V. Ex.ª compreenderá
que não me é possível fazer a comunicação de que me encarrega. Peço
por isso a V. Ex.ª aceite a demissão, que solicito, das funções de
ministro de Portugal em França. (a) Sousa Rosa.” De mim estão neste
momento dizendo certos jornais de Lisboa, como a Luta
do Brito Camacho17,
que pedi a minha demissão “que foi logo aceite", o que é falso,
pois não a pedi, senão que a dei. O
pedido de demissão de Sousa Rosa nunca foi aceite. Logo depois, Sousa
Rosa pediu que lhe fossem pagos o último trimestre da renda da sua casa
da rua de Lubeck, bem como a indemnização ao proprietário, pelo facto
de a abandonar antes de findo o seu contracto. Não levou muito tempo a
resolver este assunto. Em 23 de Dezembro de 1910, o barão de S. Pedro18,
antigo funcionário da monarquia, telegrafava a António Bandeira,
encarregado dos negócios, em França: "Vão expedir-se ordens 7.000
fr. renda de casa. (a) San Pedro.»
E em Janeiro Bandeira telegrafava a Bernardino Machado: "Assunto
antiga casa completamente liquidado. (a) Bandeira.»
Mais tarde, Sousa Rosa pedia a sua reforma, não sei se como diplomata, se
como general do exército, e neste sentido, andou activamente trabalhando
pelas secretarias em Lisboa o Bartolomeu Ferreira, secretário em França
no momento da Revolução, depois nomeado por Bernardino Machado ministro
na Haia, onde agora está. A reforma de general foi-lhe dada. Mais tarde
ainda reclamou-se de Sousa Rosa a formalidade imposta a todos os funcionários
da República de prestarem juramento de fidelidade às suas leis. Sousa
Rosa pediu escusa. Não se insistiu. Eu vou deixar este posto. Como Sousa
Rosa devo pagar um último trimestre de renda e uma indemnização e não
sei ainda como isso será. Estou a ver que não ma pagam. A monarquia, se
tivesse vindo já, não me aborreceria tanto. 8
DE MARÇO 9
DE MARÇO –
Têm notícias de Lisboa? -
Não! -
Então passo em claro o comunicado. Entrada em funções do novo
encarregado de negócios. Esta manhã reclamou da porteira que lhe fosse
entregue a correspondência que vinha para mim. Espero que ele acabe por
cortar o telefone que liga a minha casa com a Legação. Por isso dei
ordem ao Tomás para o conservar. Quero que este maluco dê tudo quanto
poder, porque mal chegue a Portugal quero expor num jornal este aspecto
curioso do Terror Branco. 10
DE MARCO Um
redactor do Petit Parisien veio
entrevistar-me sobre a minha demissão, de que há conhecimento pelos
jornais italianos. Confirmei-lhe que me tinha demitido. Quer fazer sobre
este assunto um artigo. Para quê? Julga-o interessante. À noite jantar
no Hotel Madison com o cônsul e a consulesa de Inglaterra, Mr. et Madame
Hearn. Madame Hearn é brasileira. Agradável conversação até às dez e
meia. Regresso a casa através de Paris deserto. Não se confirma -que os
democráticos tenham eleito outro Presidente da República. Ainda bem. - Dies iræ! Avec espoir que Votre
Excellence reste notre. O
ministério da ditadura já está em crise. O ministro das Finanças do
general Castro pediu a sua demissão. O general Castro não esteve com
meias medidas. Entregou as Finanças a José Jerónimo21,
ministro dos Negócios Estrangeiros. Grande homem este tropa. À tarde, o
Morais Carvalho apareceu e contou que um indivíduo chegado hoje de
Lisboa, que o procurara no consulado, lhe dera notícias de Lisboa. A
ditadura é considerada instável, o Camacho afunda-se (assim devia ser) e
os democráticos procuram mettre de
l'eau dans leur vin, para o que estariam no propósito de fundar um
jornal moderado. O indivíduo em questão teria acrescentado que o meu
gesto, como lhe chamam em Lisboa, fizera ali muita impressão. 14
DE MARÇO -
Há doze anos que estou nesta casa. É a primeira vez que isto me sucede. A
bicicleta do António estava na Legação. O Brederode intimou-lhe mandado
de despejo. Um carteiro que faz a distribuição da correspondência da
Legação perguntou: -
Quem é esse salaud que para aí
veio de novo? O
salaud, como ele lhe chama, foi
de propósito ao correio anunciar que aqui não há mais ministro de
Portugal e reclamar que toda a correspondência da Legação seja entregue
unicamente nas horas de serviço. Para não prolongar esta situação
partimos depois de amanhã, terça-feira. De Portugal não há notícias,
nem me consta que a minha demissão me tenha ainda sido dada. MADRID,
22 DE MARÇO - Pobre
ciego! Una limosna por el amor de Dios! Deus
é invocado sobre todos os pretextos. - Que Dios se lo pague, señorito.
Na
calle de Alcalá, uma mulher
leva pela mão um aleijão monstruoso e ela mesma é horrenda, obesa como
quase todas as mulheres nesta terra, quando deixam de ser jovens. Para
fugir à chuva entramos, a Maria e eu, no Fornos,
que as minhas recordações de Madrid diziam ser um café elegante. É uma
imunda cocheira. O soalho gasto desaparece sob detritos de toda a natureza
e as cadeiras estão tão velhas e sujas que repugna, sentar-se a gente
nelas. O público, como o de todos os cafés de Madrid, é constituído
por essa multidão de homens de todas as idades mas com a mesma fisionomia
e o mesmo trajo, que inspiram a todos os estrangeiros um sentimento de
desconfiança. Fugimos, e mais tarde, no hotel, perguntamos a um criado
que tem viajado e fala línguas se não há em Madrid um café decente.
Terminantemente, diz-nos que não há. Apenas um, o Ideal
Room, é frequentado por melhor gente. Fomos depois ao Ideal
Room e encontrámo-nos em uma salinha cheia de fumo e onde só havia
homens, um pouco mais escolhidos do que nos outros cafés, e que se
voltaram ao ver-nos entrar, tão raro sucede aparecer ali uma mulher.
Madrid é uma cidade sem àrvores, e como a primavera ainda não fez aqui
o seu aparecimento, as poucas que adornam as suas ruas ainda são mais
tristes e feias, com os seus troncos torcidos e os seus galhos nascidos à
lei da natureza. O Buen Retiro
é um lamaçal. Anteontem fomos ver o render da guarda, a Armeria, e ontem
o Museu, que é um deslumbramento. -
É o que nos vale! Disse-me um jornalista espanhol que me conhece de
Lisboa e a quem encontrei hoje. Contudo,
a Espanha, que desbarata o seu oiro em construções de uma sumptuosidade
ridícula, para instalar serviços pessimamente organizados, não soube
ainda instalar dignamente esta maravilhosa colecção de obras de arte. Não
importa. O Prado justifica uma viagem a Madrid. Tendo visto tudo, há dois
dias que nos encerramos no nosso quarto, à espera do dia de amanhã para
partirmos, pois os directos para Lisboa não são diários. Ao nosso
quarto chegam os ruídos de uma aldeia ruidosa, cantares, assobios,
conversações, disputas, no meio de um constante tanger de violas. E
estamos no coração da cidade. Minha mulher, horrorizada, aguarda com
impaciência o dia de amanhã. Logo que chegámos encontrei na rua –
Madrid é pequeno – o Armando Navarro. Cartões-de-visita, etc., e à
tarde o Augusto de Vasconcelos23,
que nesse dia chegara de regresso de Lisboa. O Vasconcelos é conhecido em
Madrid, como ele próprio confirma com sorridente bonomia, por el
golfo; e Pablo Salmeron, que na sua presença dá este curioso
informe, acrescenta que o Relvas, com os seus olhos baixos e as suas falas
baixas, deu lugar a que o apodassem de - el
tonto mysterioso. Bonita situação para a nossa diplomacia. Puxo pela
língua ao Augusto de Vasconcelos. Il
se laisse faire. Conta-me em primeiro lugar o caso do Leandro que eu
desconhecia. O governo espanhol interessou-se por que fosse dada a
amnistia ao incendiário da Madalena. O Bernardino Machado, como sempre,
prometeu. Depreendi da linguagem do Vasconcelos que quem mais se
interessou por este assunto foi ele mesmo Vasconcelos, persuadido como está
que esta política lhe garante uma situação favorável junto do governo
espanhol. O certo é que o Leandro foi amnistiado e já saiu de Portugal,
não sem que pelo caminho o saudassem a tiro. Ao regressar a Madrid
Vasconcelos, segundo lhe ouvi, procurou o marquês de Lema, ministro dos
Negócios Estrangeiros, sem dúvida para receber os agradecimentos deste.
O marquês de Lema deu-lhe um grande abraço. Óptimo diplomata este
Vasconcelos! Também refere a quem o quer ouvir (referiu-o no Palace
Hotel diante de Pablo Salmeron) que comprara por três contos de reis
o deputado republicano Santa Maria, a fim de conseguir, por intervenção
deste, que o governo espanhol autorizasse a saída para Portugal de
quinhentos cavalos. Vasconcelos dá a esta torpe diligência o aspecto de
uma hábil acção diplomática. Sacudi-o para que me dissesse alguma
coisa sobre a actual situação de Portugal perante a guerra. Respondeu
que essa situação é esdrúxula, e atira as responsabilidades do que se
tem passado para cima do Bernardino Machado. PARIS,
10 DE SETEMBRO -
Tu não morres! Tu não podes morrer. Eu
pedia-lhe que olhasse para mim, porque me parecia que a via pela última
vez e queria levá-la gravada nos olhos, à minha querida companheira! Ela
transfigurara-se. Repetia numa exaltação sublime: -
Tranquiliza-te! Tu não morres! Tu não podes morrer! E dir-se-ia que a
sua confiança no meu destino era absoluta, porque não teve um momento de
vacilação. Não derramou uma lágrima. Dez dias creio eu, estive num
quarto do hospital de S. José. Minha mulher não me abandonou um minuto.
Durante dez dias não dormiu. Nos meus curtos sonos senti sempre a sua mão
na minha e nunca pronunciei o seca querido nome que a sombra do seu rosto
não se projectasse sobre o meu. Quando os meus médicos, já
tranquilizados, começaram a desaparecer, foi ela que os substituiu, quem
fez o penso do meu braço ferido e partido, quem tratou o meu olho despedaçado.
Posso dizer que só me abandonou ao chegar aqui hoje. Até hoje não me
perdeu de vista um instante, pois enquanto estivemos em Portugal não
cessou de recear por mim, supondo-me exposto a novos perigos, vendo
assassinos em toda a parte. Propus-me, depois de tudo o que se passou, não
a sujeitar a novas provações, e assim procurarei pagar-lhe a grande
divida de gratidão que contraí com ela, vivendo para ela o tempo que me
resta a viver. Levo para a sepultura a lembrança da sua incomparável
dedicação. Ao meu país dei, quero crê-lo, o último esforço.
Propunha-me, a despeito dos meus projectos de regresso a França, ficar
ali e encetar, por um jornal, se houvesse meio de o fazer, uma nova obra,
de que os portugueses tanto precisam, de orientação pública. Não houve
meio de o fazer, nem para isso apareceu quem me oferecesse recursos. A Capital
propôs-me com afã receber a minha colaboração, mas esta proposta não
foi mantida. Publiquei duas brochuras, da série que levara em mente dar a
lume: -
A última crise e Portugal perante a
guerra, em que se falou muito, que influíram muito, mas que tiveram
pouca leitura. Eram sessenta e quatro páginas compactas o eu pude
reconhecer que o público não suporta tanta leitura. Essas brochuras
indispuseram-me com todos os políticos que apoiaram a ditadura Pimenta de
Castro e em geral com todos os inimigos de Afonso Costa. Fui por eles
muito atacado e alguns, que eram meus amigos pessoais, desapareceram-me.
Contudo, essas brochuras não continham uma palavra agressiva; mas os
portugueses são assim – são fanáticos e odeiam a verdade. Foram as
verdades que eu disse na Última
crise que armaram o braço do homem que me quis matar e de quem se
disse que era um doido. Não era porém um doido, mas um fanático.
Reconheci, no meio dessas lutas de fanáticos, que a minha personalidade não
inspira senão simpatias anónimas. Para os fanáticos, é a de um homem
que irrita. Este sentimento ia-me custando a vida, mas tão irritante se
torna a verdade no meu país que nem essa circunstância me pôs ao abrigo
de novos ataques. A minha reintegração no posto de Paris deu lugar a que
eu fosse atacado no Parlamento, pelos partidários de Antonio José de
Almeida e Brito Camacho, como um inimigo que não se poupa. Fizeram-me aí
uma verdadeira espera, como já ma tinham feito no rápido do Porto.
Eis-me de novo aqui, no meu entresol da avenida Kleber, que mobilei e guarneci com garridice, à
custa de tantos sacrifícios e onde passei as porventura mais inquietas
horas da minha vida. Voltei com a resolução firme de ficar neste país,
suceda o que suceder, como ministro de Portugal, ou como exilado.24
Minha mulher irá de vez em quando ao seu país, ao qual a liga
uma profunda afeição. Eu não penso lá voltar tão cedo. O Estado
pagou-me os vencimentos que eu deveria receber no tempo que estive
ausente. Tenho ali a um canto de uma gaveta quinze mil francos. Para o
imprevisto, chega.25
Encontro nas folhas deste Diário estas notas a lápis: RIO
TINTO, 9 de Abril – Instalámo-nos na, Vila Margarida. O meu plano,
vindo para o Porto, foi fugir ao tumulto de Lisboa, e entregar-me longe
dos políticos ao trabalho das duas brochuras que me proponho publicar;
mas o Guedes de Oliveira insistiu em que estávamos melhor na sua casa
desabitada do Rio Tinto e para cá viemos. Não foi grande ideia. O sítio
é triste, solitário, ermo, mas enfim os importunos não chegam cá. Começo
a trabalhar na Última crise. RIO
TINTO, 12 de Maio – Concluída a minha brochura Portugal
perante a guerra. Os acontecimentos precipitam-se. Projecto de partida
para domingo. RIO
TINTO, 13 de Maio – Graves desordens no Porto, tiros, bombas, mortes. RIO
TINTO, 14 de Maio – Revolução em Lisboa. Comunicações
interrompidas. Sou chamado ao Porto. Reunião em casa do industrial
Azevedo e entrevista com Alexandre Braga, que vem, diz ele, levantar, o
Porto. Corre que o governo está preso. À noite, das janelas da casa de
Guedes de Oliveira, assistimos a Maria e eu a um tiroteio tremendo entre a
polícia, a Guarda Republicana e o povo, na rua de Santa Catarina.
Feridos, mortos, brados de –
Quem vem lá? Seguidos de descargas. Noite em claro em casa de Guedes de
Oliveira. PORTO,
15 de Maio – Deixamos a Vila Margarida por um hotel no Porto, aguardando
que as comunicações restabelecidas nos permitam seguir para Lisboa. É
voz corrente que fui nomeado presidente do novo governo. Dois telegramas
do Afonso Costa reclamando urgentemente e instantemente a minha presença
em Lisboa. Parti
no dia seguinte, 16 de Maio, pelo rápido a caminho de Lisboa e da morte.
Mas chut! Não lembremos mais esse horror! 13
DE SETEMBRO –
Mas - acrescenta o Sr. William Martim - o Sr. Nemours Auguste não chegou
infelizmente a tomar posse de novo do seu lugar, porque morreu ! Pobre
Nemours Auguste. Estou a ouvi-lo dizer-me por ocasião de uma das muitas
revoluções do seu país: -
Je suis honteux pour mon, pays. Provavelmente
morreu ralado de desgostos - pour
son pays! -
Ça a été dure? Resumo-lhe
o que se passou. Ele dá-me uma grande atenção. Traço-lhe o quadro da
actual situação política e insisto em que a questão da posição de
Portugal perante a guerra é uma causa de mal-estar no pais. Ele
perfeitamente sabe, segundo diz, os sentimentos que animam o nosso país,
e eu recordo-lhe os serviços que não temos cessado de prestar à causa
dos Aliados, mas acrescento que justamente pelo facto de esses serviços
se terem tornado conhecidos, o sentimento público é de desgosto, por se
haver verificado que eles têm um carácter clandestino, que não se
concilia com os interesses morais do país. Digo-lhe que o actual ministro
está tratando com o governo inglês de corrigir esta situação e espero
que ele me habilite, com uma palavra, a prosseguir nesta conversação;
mas como em Bordéus, quando lhe falei neste assunto, o Sr. Delcassé
entende por certo que a França não tem o direito de se imiscuir nas relações
anglo-portuguesas, porquanto faz apenas um gesto, um gesto que não diz
nada e que diz isto: Que fazer? E toda a história da aliança inglesa
perpassa pelos meus olhos. Era talvez a ocasião de comunicar algumas úteis
impressões ao ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal. Mas para
quê, se Portugal está condenado pela mediocridade dos seus homens a ser
um feudo da Inglaterra, e o que nos diz a história da guerra de 1914? Que
não é já a Inglaterra que procura mais uma vez reduzir-nos ao estado de
vassalagem, mas nós próprios que lhe oferecemos os pulsos às suas
algemas. A tradição da Aliança Inglesa fora resgatada pelo convite que
a Inglaterra nos fez, em 10 de Outubro de 1914, para nos colocarmos a seu
lado, na presente guerra. Esse documento li-o, meditei-o, tive-o meses em
meu poder. É o mais alto momento da nossa história. Nunca um grande
Estado solicitou o concurso de uma pequena nação em termos tão
lisonjeiros para o amor-próprio desta. Nesse dia 10 de Outubro todo o
passado ignominioso das nossas relações com a Inglaterra se dissipou
para dar lugar a um facto novo e deslumbrante - de uma nova Inglaterra e
de um novo Portugal. Bastava ter dito uma palavra e era a remodelação
completa da história. Era o prodígio. O memorandum
de 10 de Outubro do 1914 pedia uma resposta "favorável e urgente”
ao convite da Inglaterra. Não a teve! Era ministro dos Negócios
Estrangeiros Freire de Andrade; era presidente do Conselho Bernardino
Machado, que o Congresso da República elegia pouco depois Presidente da
Republica. Não! Não há nada a esperar do nosso país! Fomos esta noite
à Comédia Francesa. Sala triste, ausência de toilettes, militares em traje de campanha. Num camarote, um hussard,
de braço ao peito. A noite de
Outubro, Il faut qu' une porte soit ouverte ou fermée, e uma velha peça de
Dumas filho. As dores líricas da Noite
de Outubro pareceram-me fastidiosas. Na hora presente não há lugar
para a dor de já não ser amado, nem mesmo no nosso pensamento. A peça
de Dumas, pareceu-me uma obra de títeres, com a sua defesa do feminismo,
as suas teses a favor do divórcio, a sua moral caduca, os seus ditos
murchos, como flores já sem viço... À saída, a treva. O nosso automóvel
singra pelas ruas de Paris no meio de uma noite densa. Nos Campos Elísios
o único carro que sobe é o que nos conduz. Quando chegamos a casa, temos
a impressão de vir do mar alto.
1
O presidente da República, Manuel
de Arriaga, demitira o governo do Partido Democrático e
encarregou, em 25 de Janeiro de 1915, em ditadura, isto é, sem que o
Congresso tivesse em sessão, o general Pimenta de Castro de formar um
novo governo com intenção de preparar eleições. A participação
dos militares nos assuntos políticos tornou-se cada vez maior. 2
Tomada do poder por Napoleão
Bonaparte em 11 de Novembro de 1799, com o apoio do Exército francês
e criando a ditadura militar que o manteve no poder, primeiro enquanto
primeiro cônsul, a seguir como imperador, até 1814-1815. 3
Nasceu em Chaves em 1872 e, com
António Nobre e Alberto de Oliveira, foi elemento de um cenáculo que
se evidenciou, em Leça da Palmeira. Morreu em Lisboa em 1949.
Licenciado em Letras, foi redactor de O
Primeiro de Janeiro. Diplomata, cuja carreira iniciou em 1910, com
a República, atingiu o posto de ministro plenipotenciário em 1925. 4
Henrique dos Santos Cardoso
(1870-1915), assassinado quando se dirigia para uma reunião na sede
do Partido Democrático em Lisboa, no largo do teatro de S. Carlos. 5
António Augusto Alves da Veiga
(1850-1924).Advogado, dirigente republicano, proclamou a República no
Porto, na revolta de 31 de Janeiro de 1891. Emigrou para Paris, sendo
advogado dos consulados português e brasileiro. Foi nomeado
embaixador em Bruxelas pela República logo a seguir ao 5 de Outubro
de 1910. 6
General Alfredo Augusto Freire de
Andrade (1859-1929) desempenhou diversas missões em África, tendo
sido governador-geral de Moçambique, lente da Escola do Exército,
director-geral das Colónias, secretário-geral do Ministério da
Instrução Pública, presidente do Conselho Superior de Instrução Pública,
ministro dos Negócios Estrangeiros de Junho a Dezembro de 1914. 7
Membro do Partido Regenerador na
Monarquia, foi deputado e ministro das Obras Públicas, Comércio e
Indústria no primeiro Governo presidido por Hintze Ribeiro.
Desiludido com a Monarquia, aderiu ao Partido Republicano. Implantada
a República foi ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo Provisório.
Vencido por Manuel de Arriaga na candidatura à Presidência da República
foi nomeado ministro de Portugal no Brasil. Regressou a fim de
constituir governo. Defensor da intervenção na guerra, foi
presidente da República quando a Alemanha declarou guerra a Portugal. 8
João Franco Pinto Castelo Branco
(1855-1929). Presidente do Conselho de Ministros entre Maio de 1906 e
Fevereiro de 1908 por nomeação do rei D. Carlos. Os principais
decretos do seu governo foram realizados em ditadura. 9
Consideradas características aberrantes dos povos peninsulares, e
especialmente do português, na fase contemporânea da sua decadência
secular, como tinha sido explicada
por Antero de Quental e defendida nas suas obras pelo autores da Geração
de 70. 10
(1871- 1937). Dirigente do Partido
Republicano e, após a implantação da República, do Partido Democrático.
Foi enquanto ministro da Justiça e Cultos um dos principais obreiros
da política religiosa do novo regime, e um defensor acérrimo da
entrada de Portugal na Primeira Guerra Mundial. Presidiu o Conselho de
Ministros três vezes, de Janeiro de 1913 a Fevereiro de 1914, de
Novembro de 1915 a Março de 1916 e de Abril a Dezembro de 1917. 11
Artur Guilherme Rodrigues Cohen (1877-1961), engenheiro civil e de
minas pela Escola do Exército, tendo pertencido ao Corpo de
Engenharia de Minas e Serviços Geológicos (CEMSG), participou no
comité revolucionário que dirigiu a Revolução de 5 de Outubro .
Director dos Serviços Geológicos em 1922, manteve-se nestas funções
até 1935. 12
Possivelmente o tenente António
Lobo de Almada Negreiros, pai do célebre pintor José de Almada
Negreiros. Estava em Paris desde 1900, onde residia e voltara a casar,
primeiro como responsável pelo Pavilhão das Colónias da participação
portuguesa na Exposição Universal de Paris desse ano, e depois como
vice-cônsul de Portugal. 13
António Xavier Correia Barreto (1853-1939). Convidado pelo almirante
Cândido dos Reis para a comissão organizadora da revolução de
1910, foi ministro da Guerra do Governo provisório, e outras duas
vezes. Presidente da Câmara Municipal de Lisboa em 1913, presidente
do Senado em 1920, comandante da GNR, fundou do Instituto Militar dos
Pupilos do Exército em 1911. 14
Martinho Teixeira Homem de Brederode de Cunha (1866-1952), diplomata,
foi embaixador de Portugal na Roménia de 1919 a 1933. 16
(1843-1924). Deputado em 1910,
presidente do Governo Provisório em Outubro de 1910, será eleito
presidente da República em 29 de Maio 1915, devido à demissão de
Manuel de Arriaga, cargo que ocupará até 5 de Outubro seguinte. 17
Manuel de Brito Camacho
(1862-1934). Médico militar até 1902, tornou-se professor da Escola
Médico Cirúrgica de Lisboa em 1904, Fundou o jornal republicano A
Luta em 1906. Ministro do Fomento no Governo Provisório cria o
Instituto Superior Técnico. Fundou o Partido da União Republicana,
os Unionistas, a facção
mais conservadora do Partido Republicano. Passou a lutar contra a
hegemonia política do Partido Democrático, assumindo-se como o
principal opositor aos governos formados pelo partido. 18
Pedro de Castelo Branco Manoel, 2.º barão de São Pedro (1837-1911) 19
Louis Guilaine era um reconhecido
especialista francês da América Latina, e crítico da actuação dos
Estados Unidos naquele continente. Escrevia regularmente na revista France-Amériques
da Société des Américanistes. 20
José Maria de Alpoim Cerqueira Borges Cabral (1858-1916). Deputado e
ministro durante a monarquia, fez parte da Dissidência Progressista
que aderiu à República. Era considerado um revolucionário
profissional a quem foi atribuído o célebre dito: “eu quero e
desejo o poder pelo poder; nada mais.” 21
José Jerónimo Rodrigues Monteiro (1855-1931). Professor de Matemática
no Instituto Comercial e Industrial, engenheiro-chefe na Manutenção
Militar, comandante do Regimento de Sapadores. Membro da Câmara
Municipal de Lisboa em 1901, é deputado em 1904 e 1908. É um dos
membros do “Movimento das Espadas”. Ministro dos Negócios
Estrangeiros (de 4 de Fevereiro a 8 de Março de 1915) e ministro das
Finanças – primeiro, interinamente (de 6 a 10 de Março de 1915) e,
depois, em definitivo (de 10 de Março a 14 de Maio de 1915). 22
Helena Ana Maria Antónia Leichtinger ( Budapeste, 1841-1934) viúva
de Luis Augusto Ferreira de Almeida (1817-1900), 1.º conde de
Carvalhido (1817-1900). 23
Augusto César de Almeida de Vasconcelos Correia (1867- 1951), medico
considerado amigo pessoal de Afonso Costa e politicamente próximo de
Brito Camacho. Ministro dos Negócios Estrangeiros no governo
presidido por João Chagas, de 12 de Outubro a 12 de Novembro de 1911,
tendo assumido a presidência do Ministério, acumulando a pasta dos
Negócios Estrangeiros. Manteve-se como Presidente do Conselho de
Ministros até 16 de Junho de 1912.Em 1912 abandonou a presidência do
Ministériocontinuando ministro dos Negócios Estrangeiros até 9 de
Janeiro de 1913. Embaixador de Portugal em Madrid de 1913 a 1914, e
depois em Londres, de 1914 a 1919. 24
[Nota do Autor] 1918 – Exilado 25
[Nota do Autor] 1918 – Estamos vivendo deles.
Fonte: João Chagas, Diário de João Chagas, vol. 3: 1915-1916-1917, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1932. A ver também:
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