A GUERRA EM MOÇAMBIQUE.

- A VISÃO ALEMÃ -

 

A GUERRA EM TERRA ESTRANHA

Desde a entrada na colónia oriental portuguesa até ao armistício

 
O Kilimandjaro

© DHM

O Kilimandjaro, de Walter
von Ruckteschell

 

ATRAVÉS DO ROVUMA

Na madrugada de 25 de Novembro de 1917, a nossa guarda avançada passou a vau o Rovuma, um pouco a montante da confluência do Ludjenda. O grosso da coluna, com nove companhias, atravessou o Rio durante a tarde daquele dia, seguido pela guarda da retaguarda à distância de dois dias de marcha. O Capitão Goering, com três companhias, tinha atravessado o Rio muito mais a jusante, com o fim de surpreender um acampamento português. Não havia notícias do Capitão Tafel que muito provavelmente viria a alcançar o Rovuma muito mais para Oeste.

Não tínhamos esperanças de qualquer apoio e, com a incerteza absoluta da sorte que nos esperava, havíamos chegado aquele estado de espírito popularmente conhecido como «allgemeine Wurchtigkeit» (completa indiferença). E assim, despreocupados com a situação táctica, os nossos caçadores prosseguiam na sua útil tarefa, denunciando-se ao inimigo que, como mais tarde soubemos, ouvia nitidamente os seus tiros.

Durante a passagem do Rio aproveitaram muitos a oportunidade de tomarem um belo banho, mesmo às vistas do inimigo, e com tal descaramento que, por vezes, foram necessários grandes esforços para lhes lazer compreender as exigências que a guerra lhes impunha. Entrámos em fogo após a nossa chegada à margem sul do Rovuma. A companhia da guarda avançada teve alguns encontros com patrulhas inimigas e fez algumas baixas. Enquanto as tropas atravessavam gradualmente o vau e protegiam a travessia das restantes, ocupei as poucas horas disponíveis em reconhecer a situação. Não muito longe da nossa frente, na margem do Ludjenda, ouviam-se sinais e distinguiam-se pessoas. Aproximámo-nos mais do acampamento inimigo, e vimos homens vestidos de branco dum lado para o outro, a ama distância de algumas centenas de metros. Estavam procedendo à construção de abrigos e organizando uma coluna de transportes. Estas tropas eram certamente de grande efectivo, e enquanto pensava na hipótese de as atacar, vejo sair do acampamento inimigo ama coluna de askaris, fardados de kaki, tomando a direcção clãs nossas forças. Era aproximadamente ama companhia. Presumindo que o inimigo ia ajuizadamente atacar-nos com o máximo do seu efectivo enquanto as nossas forças estavam ainda ocupadas na travessia do Rio, corri à retaguarda e ordenei que as companhias que já o haviam atravessado se estabelecessem em posição defensiva. Tivemos a felicidade do inimigo não ter aproveitado esta favorável oportunidade; o inimigo não apareceu, e fiquei novamente a pensar no que havia de fazer. Tinha dúvidas se, em vista do nosso grande número de carregadores, não seria melhor expediente marchar em frente do inimigo estacionado em Ngomano e estabelecer-me mais para montante do rio Ludjenda. Ou o inimigo não nos incomodaria, ou, caso contrário, teria que sair dos seus entrincheiramentos, resolvendo-se a fazer um ataque difícil. Por outro lado, não era de todo impossível que um ataque ao acampamento inimigo não viesse a ser bem sucedido, porque as suas defesas não eram ainda muito fortes. Sabia, além disso, pelos reconhecimentos, que na margem oposta do rio Ludjenda existia ama faixa de floresta muito espessa e que chegava até ao acampamento, oferecendo-nos portanto a probabilidade de cairmos de surpresa sobre o inimigo, atacando-o duma maneiro decisiva Não estava ainda resolvido a fazê-lo quando o Capitão Muller me convenceu a tomar finalmente aquela decisão, que apesar de muito arriscada nos fornecia a perspectiva dum sucesso completo, há tanto tempo desejado: a captara de munições e de material de guerra, que para nós constituía uma necessidade urgente. Não havia, pois, tempo a perder.  

Mapa de Moçambique

Através da África Oriental Portuguesa

O ataque fez-se, por consequência, enquanto parte das forças estavam ainda atravessando o Rovuma. Enquanto a nossa pequena peça de artilharia de montanha rompia fogo sobre os entrincheiramentos inimigos e, ao mesmo tempo, algumas companhias o empenhavam de oeste e norte, o destacamento do Capitão Koehl atravessava o Ludjenda, uma milha a montante de Ngomano, e marchava através da alta floresta daquela margem, atacando com determinação as posições  inimigas pelo sul. Tomei posição num pequeno cabeço a oeste do acampamento, junto da artilharia. A última companhia das forças do General Wahle avançava num vale à minha retaguarda para atravessar o rio. Em frente, observava perfeitamente os entrincheiramentos do inimigo cujas metralhadoras, funcionando bem; dirigiam por vezes o seu fogo para o nosso cabeço arenoso, obrigando-me a ordenar a alguns europeus e askaris que se cobrissem por estarem demasiadamente expostos. O timbre nítido das espingardas inimigas que já tínhamos notado anteriormente, bem como a ausência de morteiros de trincheira, levaram-me a crer que eram os portugueses os nossos inimigos. Havíamos aprendido a distinguir as detonações das nossas espingardas «'71» e o ruído sibilante da nossa «S-rifle», da dupla detonação da espingarda inglesa e o nítido timbre da espingarda portuguesa dum calibre pouco superior a 6 mm. Mesmo os askaris, em pequenas escaramuças haviam notado rapidamente a velocidade embaraçosa com que os morteiros de trincheira alcançavam as nossas posições. Não nos podíamos precaver contra os inconvenientes da grande quantidade de fumo produzido pelas nossas espingardas «'71». Contudo, no caso presente não havia morteiros, e o fumo traiçoeiro das nossas boas espingardas velhas não nos era tão prejudicial. E depois, quando elas acertavam de facto no alvo a mossa produzida era sempre de respeito. Deste modo, os nossos askaris reconheceram rapidamente que neste dia a sua superioridade como soldados compensaria facilmente a inferioridade das suas armas. «Hoje é o dia das velhas espingardas!» - gritavam eles aos chefes alemães – e da minha posição vi dentro em pouco a linha de atiradores do destacamento de Koehl carregar em filas cerradas os entrincheiramentos inimigos e tomá-los. Foi este o sinal de ataque para as outras frentes. Carregaram por todos os lados o inimigo que era abalado com violência pela densidade do fogo.

Do seu efectivo de 1.000 homens não sobreviveram mais que 200. Na ânsia do saque, os nossos askaris lançavam-se cada vez mais violentamente e sem interrupção sobre o inimigo que fazia fogo ainda! Imagine-se ainda uma multidão de carregadores e moleques que, aproveitando-se da situação, correram ao acampamento saqueando tudo que encontravam roubando o que podiam para em seguida deitaram fora em presença de alguma coisa mais luzente e atractiva. Foi uma horrorosa «melée». Até os askaris portugueses, depois de feitos prisioneiros, compartilharam da pilhagem feita aos seus próprios víveres. Não havia remédio senão intervir energicamente. Fiz uso de toda a minha eloquência e, para exemplo, castiguei pelo menos sete vezes um carregador que eu conhecia, mas que todas as vezes me fugiu para continuar a pilhagem noutro sítio qualquer. Finalmente consegui restaurar a disciplina.

Enterrámos cerca de 200 mortos inimigos e fizemos 150 prisioneiros que foram postos em liberdade depois de se terem comprometido sob palavra a não mais combaterem durante esta guerra, contra os alemães ou seus aliados. Capturámos algumas centenas de askaris, grande quantidade de medicamentos de valor que tão necessários eram, todos de excelente qualidade, o que era de esperar pela experiência de séculos dos portugueses em campanhas coloniais, e ainda alguns milhares de quilos de viveres europeus grande número de espingardas, seis metralhadoras e cerca de trinta cavalos. Não havia infelizmente víveres para indígenas. Rearmámos quase metade das nossas tropas com espingardas portuguesas, e fez-se uma lauta distribuição de munições. Apoderámo-nos de cerca de 250.000 carregadores, número que se elevou a um milhão durante o mês de Dezembro. Soubemos depois, por documentos apreendidos, que as companhias europeias portuguesas haviam chegado havia poucos dias a Ngomano, com o fim de executarem uma ordem impossível dos ingleses de evitar a travessia do Rovuma pelos alemães. Foi realmente um grande milagre que estas tropas não tivessem chegado a tempo, e tivessem tomado uma posição tão proveitosa para nós. E foi assim que, dum só golpe, nos libertámos duma grande parte das nossas dificuldades.

Havia ainda uma grande necessidade a satisfazer e que nos obrigava a avançar desumanamente: a de procurar alimentação para o nosso grande número de indígenas. Continuámos para montante do Ludjenda com este fim. Dias após dia, as nossas patrulhas procuravam guias e provisões, não sendo bem sucedidas a principio. Os indígenas, normalmente pouco numerosos nesta região, tinham fugido perante o avanço dos portugueses, receosos da sua rudeza e crueldade e haviam escondido as provisões que possuíam. E assim, as mulas e os cavalos, um após outro, iam encontrando o seu triste fim no fundo dos nossos caldeiros. Felizmente este distrito é muito rico em caça, e o caçador consegue sempre matar uma galinha-do-mato ou qualquer dos numerosos antílopes que ali abundam.

 
Lettow-Vorbeck

O general
Lettow-Vorbeck

Embora as nossas colunas de marcha fossem, a principio, demasiadamente compridas e vagarosas, mais uma vez a perfeição foi atingida com a prática. Os carregadores, os moleques, as mulheres e as crianças aprenderam depressa a conservar o passo e a manter as distancias, tal qual como os askaris. A coluna serpenteava ao longo de estreitos caminhos com regularidade e boa ordem, ainda mesmo através do mato denso e emaranhado e de terras desconhecidas. Faziam-se geralmente seis horas de marcha por dia, ou seja, cerca de quinze a vinte milhas, havendo um alto de uma hora depois de cada duas horas de marcha. A maior parte da força estava fraccionada em destacamentos de três companhias, cada um com o seu trem de víveres e um hospital de campanha. O destacamento mais avançado precedia o núcleo principal das forças de um dia de marcha à sua frente, e o mais atrasado, um dia de marcha à retaguarda. À frente de cada destacamento marchavam as companhias de combate com as suas metralhadoras, e levando consigo somente as munições e medicamentos necessários, sendo permitido aos europeus transportarem um volume de coisas mais indispensáveis.

Os askaris marchavam alegremente na frente, direitos como lanças, com as espingardas invertidas sobre os ombros, como era costume nos regimentos de infantaria. Conversavam sempre animadamente, e em seguida à pilhagem de qualquer acampamento inimigo que, em regra, lhes proporcionava boas pechinchas, o fumo dos cigarros surgia de todos os lados. Os pequenos recrutas sinaleiros alargavam estoicamente o passo, vestidos com o uniforme askari, e transportando quase todos a sua única riqueza do mundo numa trouxa que transportavam à cabeça. Ao passo que os askaris exclamavam com gratidão «Jambo Bwana Obao» ou «Jambo Bwana Generals» («Bom dia, Coronel»), os pequenos sinaleiros manifestavam a grande esperança de um dia visitarem a Uleia (Europa) e Berlim: «E então o Kaiser dirá: Bom dia meu rapaz, e depois faço-lhe uma exibição. de sinais. Depois dá-me carne assada e apresenta-nos com certeza à Imperatriz, que nos dirá também: Bom dia, meu rapaz, e depois dá-nos bolos e leva-nos a ver as montras das lojas.»

Durante toda esta interessante conversa os askaris conservavam uma vigilância rigorosa, e o mínimo movimento no mato não lograva escapar aos seus olhos de lince.

A testa da coluna examinava todos os rastos e vestígios, deduzindo destes o efectivo e a distância provável do inimigo. Os carregadores de metralhadoras estavam igualmente militarizados. As companhias, como os destacamentos, eram seguidos pelos carregadores que transportavam víveres, bagagens, material de bivaque, etc. As suas cargas de 25 quilos, eram levadas simultaneamente aos ombros e à cabeça.

Não obstante o sou trabalho árduo e mortificante, estes homens sentiam-se cada vez mais ligados às tropas. Quando havia falta de géneros ou os caçadores não eram bem sucedidos, diziam com simplicidade: «Haiswa'b (não importa), nós esperamos, fica para outra vez». Muitos marchavam descalços e com os pés ensanguentados. Frequentemente se observava um deles puxando com prontidão duma navalha para cortar um pedacinho de carne dum pé já muito ferido, e iniciar seguidamente a marcha sem um queixume.

Os carregadores eram seguidos pelas mulheres e pelos Bibi, tal como os askaris, sucedendo muitas vezes nascerem-lhes os filhos durante as marchas. Cada mulher transportava à cabeça não só os seus haveres como os do seu senhor. Era frequente vê-las com as crianças de peito, às costas, com as cabecitas encarapinhadas espreitando do pano em que as enrolavam. Marchavam sempre com ordem, protegidas por um europeu, em geral, um ex-sargento com um askari para o auxiliar. Formavam assim durante as marchas um comboio muito extenso que, em virtude da sua predilecção pelas cores berrantes, dava bem a ideia dum interminável cortejo carnavalesco, especialmente depois de qualquer captura importante.

Mesmo durante as marchas tínhamos que atender à aquisição de víveres. As patrulhas de caçadores marchavam pelo mato, à frente e nos flancos da coluna. Permaneciam por vezes junto dos locais de acampamento já abandonados, se observavam vestígios de caça grossa. Outras patrulhas seguiam pelos caminhos de preto que conduziam ás povoações, onde requisitavam géneros.

Quando chegávamos aos locais de estacionamento, quatro askaris e o meu moleque Serubiti cortavam os ramos precisos para me construírem o esqueleto duma palhota ou duma tenda que era dividida em várias secções. Em seguida o meu cozinheiro, o Baba, com umas grandes barbas, dava as suas instruções rigorosas para o arranjo da cozinha. Vários carregadores iam buscar a água necessária e cortavam o capim e a lenha para o lume com as suas próprias navalhas. Chegavam em seguida os caçadores com a caça e, dentro de pouco tempo, o acampamento era invadido por todos os lados pelo agradável cheiro a cozinhado. No entretanto chegavam os grupos de carregadores que haviam ficado nas povoações limpando o trigo. Este era depois pisado nos kinos (pilões) com o auxílio de paus muito grossos, o que produz um som característico do mato africano que se houve a distâncias muito grandes. Começava depois a chuva de despachos, relatórios de reconhecimentos, documentos apreendidos – e qualquer caixote à sombra duma árvore servia-me de secretária. Quando os altos eram maiores construía-se uma mesa. mais apropriada com estacas e ramaria.

A refeição da noite era tomada em volta do lume com os amigos, sentados em bancos improvisados pelos moleques. Os mais fidalgos, é claro, possuíam cadeiras de bordo. Depois, vá de deitar, a dentro de mosqueteiros, e de manhã, muito cedo ainda, lá íamos mais uma vez para o desconhecido. Encontraríamos que comer? Esta incerteza preocupou-me dia após dia, semana após semana, mês após mês. As marchas contínuas não eram feitas, como se compreende, por mero prazer. Eu ouvi ocasionalmente algumas observações a meu respeito, tais como: «Ainda mais longe? Aquele amigo descende com certeza dalguma família de globe-trotters».

Quando alcançámos a confluência do Chiulezi, as dificuldades de víveres aumentaram extraordinariamente. A região que até ali era muito fértil tornava-se agora tão diferente, que me vi na necessidade de ordenar a reunião das forças, como aliás já era minha intenção. Sob o ponto de vista táctico era-me impossível fazê-lo no momento presente. Não esperava uma pressão muito forte da parte dos ingleses porque a sua linha de penetração crescia dia a dia e, consequentemente, aumentavam as suas necessidades de transportes.

Foi-me enviada, sob a protecção da bandeira branca, uma mensagem escrita do Comandante em Chefe inglês, General van Deventer, na qual me convidava a render-me. Mais se intensificou no meu espírito que a nossa fuga os tinha surpreendido a valer, e de que a nossa invasão do território português os embaraçava muito.

Nunca este nem o General Smuts se tinham lembrado de me fazer um convite idêntico quando a situação lhes era favorável. Porque o faziam agora, nas circunstâncias presentes, idênticas às de Setembro de 1916, em Kissaki? Não era difícil de compreender que o inimigo começava a desanimar. Faltava pouco tempo para o começo da época das chuvas e, portanto, para a preparação de novas operações, e depois daquelas começarem, os transportes inimigos, na maioria em automóveis, teriam que lutar com grandes dificuldades.

Tínhamos por isso muito tempo para nos podermos dividir em várias colunas sem hesitação. Nada tinha a recear da perda temporária do contacto entre cada uma das fracções. E assim, o destacamento do General WahIe separou-se das forças restantes e marchou através das montanhas Mkula, enquanto eu me dirigi para nordeste do Ludjenda.

A rendição do Capitão Tafel, de que tive conhecimento pela mensagem do General van Deventer foi para mim um golpe profundo. O Capitão Tafel tinha recebido o comando das mãos do General Wahle, em Mahenge, quando este partiu para tomar o comando das forças na frente de Lindi. Assegurou a fértil região ao norte de Mahenge com um destacamento de algumas companhias sob o comando de Schoenfeldt, que conseguiu com tão pequeno efectivo manter a posse daquela região, utilizando inteligentemente os canhões de 10,5 do Konigsberg e colocando as suas forças em posições favoráveis.

No curso médio do Ruhudje ficou um pequeno destacamento sob o comando do Capitão Aumann, e a nordeste de Ssongea, perto de Likuju, o destacamento do Capitão Lincke. Este último empenhou frequentes vezes o inimigo, lutando por consequência com a falta de recursos daquele distrito inculto. Viu-se, pois, na necessidade de retirar para o norte, e em Mponda foi reforçado com duas companhias e uma peça, tomando o comando o Capitão Otto. Em Agosto de 1917, convergiram sobre Mahenge forças importantes, inglesas e belgas, e o Capitão Tafel fez retirar as suas provisões para Mgangira. Mahenge foi evacuada em 11 de Setembro: a superioridade do inimigo fazia-se sentir seriamente, e a falta de munições punha as companhias askaris em condições muito inferiores e estas estavam armadas na sua maioria com as famosas espingardas '71.

Soube depois pelo Capitão Otto, que se encontrou com uma patrulha do Capitão Tafel, que este, vindo de oeste de Liwale, havia marchado para o sul em três colunas, tendo alcançado vitórias parciais no curso superior do Mbemkuru, onde capturou grande quantidade de munições. Depois marchou mais para o sul, até ao rio Bangala, voltando para leste quando julgou estar próximo de Massassi. Teve aqui conhecimento, pelos indígenas, que os alemães já há bastantes dias que não travavam combates. Então o Capitão Tafel voltou em direcção ao Rovuma que atravessou perto da confluência do Nangala, com a esperança de encontrar provisões na margem sul. Não encontrou nenhumas e não teve conhecimento de que o destacamento de Goering havia capturado, somente a um dia de marcha, um acampamento português, onde encontrou géneros suficientes em ricas propriedades para lhe garantir uma existência desafogada durante 14 dias. E nestas circunstâncias, o Capitão Tafel retrocedeu para a margem norte do Rovuma, rendendo-se em seguida ao inimigo.

 
Oficiais alemães

© Castermann

Oficiais coloniais alemães

Esta rendição intensificou a minha relutância em destacar outra parte da minha força, pois apesar da minha proximidade, a junção que ambos tínhamos em vista não foi possível efectivar-se. Senti-me torturado pela falta de notícias do destacamento de Goering com o qual mantive o contacto, por meio de patrulhas, quando estava em Ngomano. Durante a marcha para montante do Ludjenda, enquanto tivemos que conservar os destacamentos e companhias mais afastados, por forma a facilitar o nosso aprovisionamento, foi necessário insistir com os chefes acerca da necessidade imperiosa de conservarem o contacto. Todavia, não era de esperar que estes oficiais, que mais tarde executaram tão excelente trabalho como comandantes de destacamentos, sendo tão bem sucedidos em cooperação com os outros, possuíssem logo de começo o treino necessário.

O Governador ficava ainda com o comando supremo das forças, mesmo depois de abandonar a Colónia, em harmonia com a lei que certamente não previa a hipótese duma guerra com um país europeu, e interpretava a sua autoridade de maneira a interferir muito seriamente na do Comandante em Chefe, invadindo por vezes a minha própria esfera de acção. Não tinha podido evitar este inconveniente, mas agora, fora da Colónia, comecei a ligar a maior importância ao facto. Se algumas vezes não acedi aos apelos do Governador, foi porque, na situação militar posterior, houve grandes diferenças de opinião, e o Comandante em Chefe, aconteça o que acontecer, é de facto, e normalmente, o único responsável.

É natural que naquela ocasião nem sempre fosse amável e contemporizador para com os que me cercavam. Acontecendo que os próprios oficiais do Estado-Maior que estavam trabalhando com a maior devoção pela causa comum, pelo que mereciam o meu reconhecimento, foram alvo de muitas censuras injustificadas. São por isso merecedores da minha particular gratidão, pois nunca se consideraram ofendidos, não tendo a minha má disposição concorrido para prejudicar a boa continuidade dos seus trabalhos. Foi devido ao seu trabalho, executado muitas vezes em circunstâncias difíceis, que alcançámos o triunfo que o público com a sua generosidade me atribuía apenas a mim. Eu, que tantas vezes tenho apreciado a boa camaradagem que existe na nossa corporação de oficiais, não gostava certamente desta atmosfera de impertinência e procura de faltas. Felizmente esta fase foi apenas passageira.

A nossa situação agora era tal que não podíamos reconhecer as forças inimigas se viesse a dar-se qualquer encontro. Não tínhamos tempo para reconhecimentos longos. A determinação com que atacávamos as forças portugueses onde quer que as encontrávamos é atestada pelo facto de que, durante Dezembro, foram sucessivamente tomadas, aos portugueses mais três posições fortificadas. A personalidade do oficial comandante que primeiro encontrava o inimigo tinha uma importância capital e decisiva naquelas acções, porque, não tendo tempo a perder, não podia esperar por ordens.

Em 2 de Novembro, o Tenente Kempner, comandante da 11.ª Companhia, que fazia parte da guarda avançada da coluna que marchava para montante do Ludjenda, encontrou um acampamento fortificado português, em Nangwale. Como na maioria dos casos, este acampamento ficava situado num monte desarborizado e com um bom campo de tiro. A valente 11.ª Companhia desenvolveu-se imediatamente ao longo da orla da floresta, e avançou para o ataque através duma zona de 300 metros de terreno descoberto, expondo-se completamente ao fogo inimigo. Os askaris, que transportavam os seus equipamentos de marcha completos, não puderam acompanhar o seu comandante europeu e o seu Effendi (oficial indígena). O Tenente Kempner e o Effendi saltaram sobre a obra principal do inimigo e daqui para os seus entrincheiramentos, encontrando-se ambos sós durante algum tempo entre a guarnição inimiga, que tinha o efectivo de um pelotão. Estes ficaram estupefactos ao ouvirem os gritos de entusiasmo dos askaris que iam chegando e obedeceram prontamente à ordem para deporem as armas. Caiu em nosso poder um número considerável de munições e rações suficientes para alimentar a força durante alguns dias. Quando o oficial português convidou o Tenente Kempner para tomar um cálice de boa aguardente teve muita razão em ficar surpreendido por encontrar a garrafa vazia, ficando, por sua vez, o seu inimigo igualmente pasmado: Um Ombascha (cabo indígena) já se havia adiantado naquela operação.

Estava numa ansiedade grande acerca da sorte do Capitão Goering de quem não havia notícias. Quanto à força do General Wahle, que havia marchado para montante do rio Chiulezi, soubemos depois que tinha atacado e aniquilado uma força de várias companhias portuguesas que estavam entrincheiradas fortemente nas montanhas de Mkula.

As frequentes tentativas para estabelecer comunicações com as forças de Wahle por meio do heliógrafo resultaram infrutíferas, embora os portugueses tivessem observado de Mkula os sinais feitos de Nangwale. Os portugueses europeus capturados em Mkula pelo nosso destacamento recusavam-se a dar a sua palavra de não mais tornarem a combater nesta guerra, mas foram postos em liberdade e enviados para o Rovuma pelo General Wahle, devido à dificuldade que havia em os sustentar.

O Capitão Stermmermann foi igualmente bem sucedido, capturando uma outra posição, também muito forte, que foi valente e vigorosamente defendida, depois de a cercar durante dias. Como a violência do seu ataque não oferecia probabilidades de vitória para o inimigo e ainda porque a posição se tornou insustentável por lhe ter sido cortada a água, o inimigo foi forçado a render-se. Entre as nossas baixas, infelizmente, contavam-se muitos oficiais indígenas bons. Não estive presente no combate de Nangwale porque andava empenhado em normalizar de vez a marcha das nossas companhias da retaguarda. Contudo, em dois dias de marcha com etapa dupla consegui chegar a Nangwale a tempo de superintender na divisão das provisões capturadas. Nas circunstâncias mais favoráveis vivíamos de géneros ocasionais. A situação em Nangwale, onde há seis meses as nossas tropas haviam encontrado uma tão rica vizinhança, era agora completamente diferente. Além das provisões referidas não havia mais nada, e até a caça grossa rareava numa grande área em volta, por ter sido assustada ou dizimada. Sofri uma grande decepção, porque esperava justamente o contrário, e as forças tiveram que partir. Soubemos pelas informações dos prisioneiros e documentos apreendidos que a guarnição de Nangwale era abastecida por colunas de carregadores que vinham de muito longe, talvez das proximidades de Mwalis, onde provavelmente alguma coisa haveria.

Em 5 de Dezembro, o Capitão Koehl, com 5 companhias, uma peça e uma coluna de munições, partiu de Nangwale em direcção ao distrito de Mwalia-Médo. Quanto a mim, continuei a marcha pelo Ludjenda e, felizmente, as boas informações do Tenente Scherbning e doutros europeus que tinham patrulhado aquela região foram absolutamente confirmadas. Estas provisões, contudo, não eram excessivas, mas podiam ser completadas com a caça, com muita satisfação nossa. Em vista do grande número de hipopótamos que existiam perto de Nangwale, muitas vezes em grupos de 15 a 20, levaram-nos a aproveitá-los para o nosso prato diário. Eu mesmo não pude resistir à tentação de atirar contra um dos gigantescos animais: submergiu imediatamente, fazendo redemoinhar a água como se fosse um barco a afundar-se para depois dalgum tempo voltar à superfície, de barriga para o ar, não se movendo mais. Foi depois puxado com uma corda para a margem do rio. O grande número de crocodilos obrigam-nos a ser cautelosos, e algumas vezes perdemos boas presas por causa deles. A carne do hipopótamo é parecida com a da vaca ordinária, mas a língua é particularmente saborosa. O mais valioso produto que dele se aproveita é, sem dúvida, a excelente manteiga que os soldados aprenderam rapidamente a preparar. Tinha uma cor branca de neve e a sua aparência contrastava bastante com a daquela que havíamos fabricado nas primeiras tentativas no Rufiji. As caçadas na floresta e os reconhecimentos que fazia acompanhado por askaris, revelavam-me grande número de segredos da vida do mato. Aprendemos a fazer belo esparregado com folhas de certas plantas (chamadas Mlenda), e a conhecer diferentes espécies de frutos silvestres muito bons. Também verificámos que a semente dos frutos Mbinji, cuja polpa contêm ácido prússico, é completamente isenta de ácido e, quando assada, proporciona um prato excepcionalmente delicado e saboroso, semelhante ao das avelãs.

O Quartel-general chegou a Chirumba (Mtakira) em 17 de Dezembro de 1917. O Tenente Ruckteschell tinha continuado a marcha em frente com a sua companhia e repelido alguns pequenos postos portugueses, da Companhia Portuguesa do Niassa, que administrava a parte norte da Província de Moçambique. Mais para o sul, a administração desta está também nas mãos de Companhias particulares. A autoridade portuguesa em Chirumba, de nome Fernandes, parecia ter sido muito competente. Os grandes edifícios da sua residência, situados no cume do monte desarborizado, estavam rigorosamente limpos, protegidos contra qualquer surpresa com uma trincheira em volta. Ao longo da margem do Ludjenda estendiam-se grandes quintas com árvores de fruto e vegetais. As estradas eram ladeadas com amoreiras e mangueiras formando lindas avenidas. Em volta da residência, como nos subúrbios das povoações indígenas, encontravam-se multas espécies daquelas mangas, conhecidas pelo nome indígena Emben. Os frutos começavam agora a amadurecer e eram tão abundantes que valia a pena colhê-los. Evitou-se quanto possível o desperdício natural dos indígenas. Os frutos, doces e belos, foram apreciados por todos os europeus e grande maioria dos indígenas, e em vista da falta de açúcar, constituíram um complemento valioso para a nossa alimentação, durante semanas. Quando entrei na varanda da casa europeia, ao chegar a Chirumba, o Tenente Ruckteschell pôs-me em frente dos olhos um pedaço de manteiga de porco, coisa que já não via há muito tempo. Aqui, como em muitos outros estabelecimentos portugueses, tinha havido porcos europeus.

 

Tipo indígena


Tipo indígena, desenhado em 1918

Ficámos aqui durante algumas semanas. Marchou para montante um destacamento que se apossou da residência de Luambala. Ao mesmo tempo o General Wahle marchou para a próspera propriedade de Mwemba, já nossa conhecida. O triângulo, ricamente cultivado, Chirumba-Luambala-Mwemba, e além fronteira, era percorrido pelas nossas patrulhas de reconhecimento. Os indígenas desta região, na sua maioria, mostravam-se amáveis e inteligentes: sabiam bem que nada tinham a recear dos alemães. Apesar de tudo, haviam escondido as suas provisões no mato e pouco ou nada nos proporcionavam. Contudo, os nossos homens já tinham a experiência precisa para examinarem minuciosamente, por exemplo, um tronco de árvore de aspecto suspeito, embora bem dissimulado, onde encontravam um esconderijo de géneros. Outros sondavam o terreno recentemente mexido com paus, e assim se encontraram tantas provisões, que no Natal, quando nos sentámos para jantar numa grande palhota, sentimo-nos aliviados da falta de alimentos. Segundo a descrição dos nossos soldados, o rio Ludjenda. era, durante alguns meses do ano, tão abundante em peixe, que este se podia pescar com cestos, mas infelizmente não era esta a ocasião própria. Os peixes que conseguimos pescar eram muito delgados, como linguados com dezoito polegadas de cumprimento, e outros mais pequenos, próprios para fritar. Apesar de poucos, ainda concorreram para melhorar as nossas rações.

Conservou-se o contacto com o destacamento de Koehl nas proximidades de Médo. Julguei muito natural que o inimigo, seguindo a sua táctica usual, se estivesse preparando para um grande movimento de concentração contra nós, e como este não estaria pronto dentro do espaço dum mês, podíamos bem descansar até que terminassem as chuvas, nos fins de Fevereiro. Próximo desta época tencionava concentrar as minhas forças nas proximidades de Nanungu, devendo até lá economizar quanto possível os géneros daquela região, vivendo daqueles que se obtivessem na zona exterior. A princípio não apanhámos muita caça em Chirumba, mas a abastança foi grande quando descobrimos os grandes rebanhos de antílopes na margem leste do Ludjcnda e especialmente mais para montante. Durante o resto da estação seca, e enquanto o rio estava baixo, os comboios de carregadores atravessavam continuamente o rio em diversos pontos, transportando as suas cargas para a margem leste. Eram aproveitados na travessia do rio alguns dongos (pequenas canoas feitas dos troncos das árvores). Eram enviadas patrulhas, que se demoravam semanas, para requisição de géneros e reconhecimentos. O Tenente Scherbening fez uma expedição de meses com a sua patrulha, marchando de Chirumba, via Mtenda, Mahua e finalmente para o sul, pelo rio Lurio, e depois para Malema, onde surpreendeu a Boma Malema portuguesa. Juntou-se-lhe um italiano, esfarrapado e cheio de fome, que andava caçando elefantes. A sua saúde estava abalada profundamente pelas febres e tinha o baço tão inchado que teve que ser transportado de Mahua para a plantação de Malacotera.

Nos princípios de Janeiro de 1918, os ingleses começaram a mover-se. O 1.º e 2.º batalhões do King's African Rifles que ocupavam o ângulo sueste do Lago Niassa, iniciaram o avanço sobre o destacamento do Capitão Goering que se havia reunido a nós e ocupava o ângulo agudo formado pelos rios Luhambala e Ludjenda, cobrindo os depósitos de subsistências a montante deste rio.

Na manhã de 19 de Janeiro, derrotámos um destacamento isolado do inimigo. Quando este contra-atacou, à tarde, depois de reforçado, e ao mesmo tempo que outra força inimiga nos empurrava para o norte, em direcção ás escavações da margem leste, o Capitão Goering passou para esta margem com o grosso das suas forças. Ficou apenas uma forte patrulha na margem oeste, que deteve a marcha do inimigo. Simultaneamente, outra força inimiga – o 2nd Cape Corps da África do Sul (tropas de cor) – avançava sobre Mwembe. Tiveram então lugar pequenas escaramuças e acções entre patrulhas, que muitas vezes nos colocaram em péssimas circunstâncias, devido à impossibilidade de protegermos os nossos comboios de carregadores. Os ingleses aproveitaram-se muito habilmente da oportunidade para contaminarem a lealdade dos nossos askaris. Muitos deles estavam exaustos da guerra e todos perante a incerteza do fim que esta teria. Grande número deles fugiu para as suas terras, dizendo consigo próprios: «Se avançamos mais entramos em terras desconhecidas. Agora sabemos o caminho para casa, e mais tarde nem isso.» A propaganda inglesa, feita pela palavra e por panfletos, caía, na maioria dos casos, em terreno propício, e o resultado foi desertar um grande número de askaris e até de sargentos. Tudo concorria para a sua deserção, especialmente a persuasão das mulheres. Um velho «sol» (sargento-ajudante indígena) desapareceu repentinamente, não obstante ter sido o chefe duma brilhante patrulha independente que conduzia um grande comboio de carregadores através do inimigo, e ter prestado serviços pelos quais se tornou digno da promoção a «Effendi». Este também desertou. Os indígenas são por natureza muito sensíveis à insinuação. Contudo, se o Coronel inglês se pode vangloriar de ter abatido o moral de certos elementos, a verdade é que foi apenas durante um curto espaço de tempo. O antigo desejo de combater e a velha lealdade voltaram novamente, mesmo para aqueles que já haviam começado a desanimar. O exemplo dos askaris fiéis, que se riram dos montes de ouro que os ingleses lhes prometiam no caso de desertarem, frutificou. Numa campanha tão longa e difícil como esta, o moral das tropas é susceptível de diminuir. Mas de nada servia desanimar e era necessário combater a valer esse desânimo. Muito concorreram para esse fim grande número de elementos fiéis, tanto europeus como askaris.

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Fonte:  

General Lettow-Vorbeck,
As Minhas Memórias da África Oriental
, tradução de Abílio Pais de Ramos,

Évora, Minerva, («Subsídios para a História de Portugal na Guerra»), 1923

A ver também:

Portugal na Grande Guerra

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