D. Miguel

D. Miguel


Eu não sou um Rebelde.
de António Ribeiro Saraiva

 

Este texto de António Ribeiro Saraiva, escrito na época em que os «Legitimistas» tentavam explicar as suas posições aos governos da Europa, mostra que a fonte para a sustentação das razões «legitimistas» era a mesma que sustentava Borges Carneiro na defesa das Cortes de 1821 e do constitucionalismo (v. Portugal Regenerado em 1820); fonte que também será invocada pelo regime cartista restaurado em Portugal em Julho de 1833, as célebres, e inexistentes, «Cortes de Lamego».

Interessante é notar que um documento, que quem o divulgou já afirmava poder ser falso, levasse à instauração de um regime que de 1828 a 1834 se tornou o regime político mais violento de sempre em Portugal, ultrapassando em muito o que era aceitável pela sociedade europeia ocidental, mesmo naquela época ainda tão violenta.

Mas, de facto, este texto não explica completamente os princípios de actuação do partido «realista» - absolutista -, que existia desde 1822 e que só se tornou «legitimista» a partir de 1826, já que ele sempre existiu em torno das posições políticas da Rainha D. Carlota Joaquina, e não em torno da legitimidade de D. Miguel. É que a rainha não tinha jurado a Constituição portuguesa de 1821, dando cobertura à posição do seu irmão, o rei de Espanha Fernando VII, que tinha abjurado a Constituição espanhola de 1812 e reintroduzido o poder absoluto em Espanha. A rainha recusava-se a seguir a política do rei D. João VI, seu marido, exactamente como o tinha vindo a fazer desde 1805. Nesse ano, com o apoio de uma parte da grande aristocracia portuguesa, que a historiografia tem conotado como liberal, parece ter tentado destituir o marido da regência, sem resultado. Em 1823, e depois novamente em 1824, tentará realizar, por intermédio do filho mais novo, o mesmo, com a mesma grande aristocracia agora conotada de absolutista. 

A questão da separação do Brasil de Portugal, aceite pelo rei de Portugal, já o não podia ser, de novo, para D. Carlota Joaquina e para a Dinastia Bourbon de Espanha, já que isso era legitimar a separação das colónias americanas da coroa espanhola; assim como a outorga de uma Carta Constitucional em Portugal iria criar pressão sobre Fernando VII para o fazer em Espanha. 

Por isso, a «legitimidade» era o último aspecto desta luta política, e de facto o menos importante, que se jogava em Portugal desde o princípio do século XIX. Mas era essencial para a aceitação dos «legitimistas» e porque apelava aos princípios da «Santa Aliança», e ao apoio da Rússia e do Império Austríaco contra o liberalismo, que estes países tentavam destruir desde 1823.


EU NÃO SOU UM REBELDE; OU A QUESTÃO DE PORTUGAL EM TODA A SUA SIMPLICIDADE OFERECIDA AOS POLÍTICOS IMPARCIAIS, E AOS HOMENS DE BOA FÉ

«Se o Rei, que temos proclamado, tinha um direito legitimo para o ser; o dever dos Súbditos era segui-Lo, e obedecer-Lhe.»

(Manifesto authentico da Nação Portugueza á Europa, em 1641, na occasião de se subtrahir ao intruso dominio da Hespanha.)

 

PREFÁCIO

 

Todo o Escritor que defende a justiça por amor dela mesma, e quando esta justiça é de toda a evidência, pouco trabalho, e nenhuma dificuldade tem para dispor os Leitores em seu favor; por isso o que unicamente exijo e peço é, que se pesem bem, e imparcialmente minhas razões. Nós, os Realistas Portugueses, havemos sido incomodados, constrangidos, desprezados, e exulados pelos Governos Legítimos. Eu mesmo, pessoalmente, fui obrigado a sair de Paris para uma residência forçada na distância de sessenta léguas da Capital de França, e isto num momento que me achava de cama grave e perigosamente enfermo; e assim mesmo obedeci. Ah! apesar disto, como somente me dirijo por princípios, e não por interesses particulares, jamais deixarei de ser sempre o amigo da Legitimidade, e dos Governos legítimos. Os Jornais Franceses, e estrangeiros têm anunciado o meu desterro, bem como o de outros Emigrados Portugueses; um certo se dignou ocupar-se mais particularmente a meu respeito, e tem publicado as circunstâncias que agravavam minha posição. Muitas pessoas me reputaram um homem perigoso, ou um criminoso; mas o motivo claro e justificado de meu desterro não era outro, senão o de me impedir e desviar (a requisição do Embaixador de Inglaterra, e do Encarregado dos Negócios de Portugal) de falar ao Príncipe Senhor D. MIGUEL, quando passasse por esta Capital: com tudo nada mais tinha a dizer ao meu Príncipe, do que quanto aqui digo a todo o mundo: eu mesmo pedi a quem tinha o poder de o conceder. que me fosse permitido falar ao Senhor D. MIGUEL na presença mesmo do Embaixador de Inglaterra, se ele tinha nisto algum interesse; e como eu não tinha a dizer, senão a verdade, estava pronto com todo o gosto a falar diante de quem quer que fosse. Agora (18 de Fevereiro de 1828) que o Príncipe Senhor D. MIGUEL não pode ouvir-me antes de chegar a Portugal, e proceder ali como for do Seu agrado, seja-me permitido dizer altamente a verdade: se esta não pôde agora servir para reclamar aqui mesmo respeitosamente na presença do meu Príncipe os direitos da. minha pátria, e para Lhe expor quanto, apesar da opressão, esta. pátria reconhece, respeita, e estima os do Sucessor Legítimo do Senhor D. João VI., do qual ela implora um socorro, que só Ele pôde trazer às desgraças da Nação, que O viu nascer, e que O adora; espero ao menos que esta voz da verdade encontrará ouvidos para a atender, e corações para a amar.

 

EU NÃO SOU UM REBELDE:
OU A QUESTÃO DE PORTUGAL EM TODA A SUA SIMPLICIDADE.

 

Direi ainda alguma coisa. antes da Questão.

 

Toda a Europa sabe o que nós temos feito, nós os Realistas Portugueses, que mais exactamente deveriam chamar-se Patriotas Portugueses, de que o mundo virá a convencer-se, como espero. Havemos recusado obedecer a um Soberano, que não reconhecemos. como nosso, por ser excluído do Trono Português pelas nossas Leis, assim. como por suas próprias convenções. Nós nos temos julgado, e nos reputamos ainda, os defensores da Legitimidade, e ao mesmo tempo dos privilégios e direitos do Povo Português. Todos os Governos da Europa nos têm tratado de Rebeldes. Sem discutirmos agora os motivos da justiça, ou da injustiça, que se nos tem feito, procuraremos, em boa fé, ver quem se engana, quem é injusto, nós, ou. a política?

Mas apresentaremos à reflexão de nossos Leitores doze questões simples, antes de entrarmos no exame da principal.

1.ª

Espero que não será chamado Rebelde aquele que defende o Governo Legítimo da sua Pátria?

2.ª

O Governo Legitimo não é aquele que tem as qualidades requeridas pelas Leis?

3.ª

As Leis que regulam e determinam estas qualidades, não são, as Leis Fundamentais das. Nações, onde existem?

4.ª

Não tem a Nação Portuguesa Leis Fundamentais, que regulam e determinam a natureza de seu Governo, assim corno da ordem de sucessão á Coroa deste Reino?

5.ª

As Leis Fundamentais, que regulam e determinam a ordem de sucessão á Coroa Portuguesa, não consistem nas disposições das Cortes de Lamego, e nas disposições das Cortes posteriores, que aquelas se referem, principalmente as de 1641?

6.ª

Pode-se pois ser Rei Legítimo de Portugal contra as disposições das sobreditas Cortes, sem que o Rei Legitimo tenha feito legalmente uma mudança nas mesmas disposições?

7.ª

Não há por ventura um modo único e leal, estabelecido para fazer mudanças disposições fundamentais do Reino?

8.ª

Acaso terão sido lealmente mudadas estas Leis depois da morte do Senhor D. João VI?

9.ª

Segundo as disposições das Leis Fundamentais de Portugal, o Imperador do Brasil não está excluído da sucessão ao Trono Português, e por conseguinte a Coroa não devolve ao Senhor Infante D. MIGUEL?

10.ª

A Europa não tem acaso reconhecido legítima a ordem de sucessão à Coroa Portuguesa, estabelecida em Portugal pelas Cortes acima mencionadas?

11.ª

Não tem pois a Europa sido injusta em nos chamar Rebeldes, a mim, e a meus honrados compatriotas, que temos defendido os direitos, a independência, e a liberdade de nossa Pátria, e de nosso Príncipe?

12.ª

Os Governos da Europa são por ventura dispensados do serem consequentes consigo mesmos?

 

Eis aqui bastantes perguntas, ás quais os partidários do Senhor D. Pedro seria difícil responder alguma coisa, que lhes sela favorável! Eu também os desafio a entrar em discussão, e mostrar ainda uma vez 1 a futilidade de suas razões.

Quanto a mim, teria muito que responder a cada uma destas questões; mas, além de que as respostas por si mesmas se apresentam a quase todas as minhas doze perguntas, como não quero embrulhar ou confundir uma coisa clara e simples de sua natureza, ocupar-me-ei unicamente com algumas. proposições, que não serão muito agradáveis aos amantes de Constituições ou Cartas importadas de país estrangeiro: contudo é para os obrigar a ser razoáveis que eu passo o meu tempo com estes meus Senhores.

 

ENTRO NA QUESTÃO.

 

Quando digo: Nós, os Portugueses Realistas, não somos Rebeldes, é necessário que eu o prove. Pois bem: a prova de minha asserção está toda implicitamente na minha epigrafe: «Se o Rei, que temos proclamado, tinha hum direito legitimo para o ser; o dever dos Súbditos era segui-Lo, e obedecer-Lhe.»

Desenvolvamos isto.

Proposições

I. Nós temos Leis Fundamentais estabelecidas pela Nação, e pelo Rei 2 , confirmadas e sancionadas por Leis e Decretos de nossos Soberanos.

II. Estas Leis não podiam ser mudadas, senão do mesmo modo, e pela mesma forma, que se tinha praticado para as estabelecer.

III. Na conformidade destas Leis, o Imperador do Brasil era excluído da sucessão do Trono Português; ou, se assim o querem , o seu caso não estava previsto nas Leis Fundamentais. - Admitida uma, ou outra hipótese, o Imperador do Brasil não podia ser Rei Legítimo de Portugal, sem uma declaração feita legalmente a seu respeito, no segundo caso. Ele não podia mudar a seu bel prazer a Constituição do Estado

IV. Nossas Leis Fundamentais têm sido reconhecidas pela Europa como fundamentais do direito Português; não podia pois a Europa, sem uma inconsequência notável reconhecer, contra as mesmas Leis, Rei de Portugal o Imperador do Brasil.  

Demonstrações das proposições precedentes.

I. 

Actos consagrados pela história civil e política, assim como pela legislação de hum país, não são testemunhas mortas; e por isso não é necessário mais, que atende-los, para se convencer da verdade da minha primeira proposição.

Os actos das Cortes de Lamego em 1143 assim como os das Cortes de Lisboa em 1641, são bem patentes em todas as historias de Portugal; as Leis de nossos Reis, que se referem nos mesmos actos, existem no corpo da legislação Portuguesa: (é suficiente ver o Decreto de 9 de Setembro de 1642 , Carta Patente de 11 do mesmo mês e ano e a Lei de 4 de Junho de 1824 ).

II. 

As Leis Fundamentais tendo sido estabelecidas pela Nação e pelo Rei, como fundamentos ou modificações do Contracto Social, conforme os bons princípios de justiça universal, seria absurdo dizer, que elas podiam ser mudadas à vontade somente de uma das partes contratantes; pois que isto seria admitir que uma das partes não tinha senão direitos, entretanto que a outra não linha senão deveres, o que tornaria o Contrato injusto, nulo, e ilusório.

Mas nossos Reis, nem a Nação Portuguesa, nunca entenderam isto tão absurdamente. Aos Estados de Lamego em 1143 (vulgo Cortes de Lamego) , Lourenço Viegas, em qualidade de Procurador de Afonso I., pergunta ao povo em nome do mesmo Afonso pela maneira seguinte:

«EI-Rei D. Afonso, que vós haveis elegido e proclamado ... vos fez ajuntar aqui, para saber se vós quereis que Ele seja vosso Rei.» Os povos responderam unanimemente: « que Afonso seja nosso Rei.» - Se quereis, lhes diz Viegas, que Ele seja vosso Rei; de que modo será Ele vosso Rei? &c.

Congregavit vos Rex A1phonsus, quem vos fecistis... ut . . . dicatis, si vultis quod sit ille Rex. Dixerunt omnes: idos volumus quod sitRex. Et dixit Procurator : Quomodo erit ille Rex . . . . . &c.

Continuam ainda os actos das mesmas Cortes.

D. Afonso diz em alta voz : . . . . . . «e vós me fizestes Rei, e Eu devo repartir convosco os cuidados do Estado. E pois que Eu sou Rei, façamos Leis, que estabeleçam a tranquilidade em nosso Reino:» Et dominus Rex . . . . , di. Xit : Et uras me fecistis Regem , et Socium vestrum. Siquidem me fecistis, constituamus leses, per qual terra nostra sit ira pace.

«Queremos, Senhor Rei, responderam os povos, fazer Leis, que forem mais do vosso agrado . . . »

«Queremos Rei , clamou imediatamente o Clero 3, a Nobreza, e os Procuradores do Povo 4 ; e todos convieram, que primeiramente se fizessem Leis para a sucessão do Trono, e fizeram as que se seguem : »

Volumus, Domine Rex, et placet nobis constituere leses, quas vobis bene visum fuerit ...

Vocavit citius Dominus Rex Episcopos, viros nobis, et Procuratores ; et dixerunt inter se: Faciamus in principio leves de haereditate regai ; et fecerunt istas sequentes:

O Decreto das Cortes de Lisboa de 161, começa assim:

«Temos observado (nas disposições deste Decreto) a ordem e a forma que se observou neste mesmo Reino a respeito de D. Afonso Henriques, quando foi proclamado Rei de Portugal ... » .Apesar da Bula de Inocêncio II, que lhe confirmava o título de Rei , no ano de 1142 , os Estados reunidos na Cidade de Lamego, pelos fins do ano de 1143, julgaram dever não só confirmá-Lo Rei novamente, mas lavrar e assinar um Auto desta proclamação, por que servisse de monumento para a posteridade, em como eles haviam reconhecido. por seu Rei legítimo D. Afonso Henriques.

Os Decretos destes. Estados foram sancionados pela Lei de D. João IV de 12 de Setembro de 1642.

O Manifesto autentico da Nação Portuguesa à Europa, publicado em 1141, em Português, e em Latim, a fim de poder ser mais facilmente conhecido de todas as Nações, exprime-se da maneira seguinte a respeito do direito de modificar a Constituição do Estado

«Os Povos, e os Reis (de Portugal ) só eles juntos em Cortes tinham autoridade para variar o antigo modo de sucessão » ( à Coroa.) Fol. 5.

«Agora passamos a examinar .... um outro direito irrefragável de reinar, aquele que se adquire pela aclamação unânime, e voluntária do Reino. Com efeito é certo, que quando, depois da morte do Rei, há dissidência entre os seus parentes a respeito daquele dentre si que deve ser admitido à Coroa, é ao Povo unido em Cortes que pertence decidir, e resolver as dúvidas que ocorrem.»

«E declarando (o Povo) por este acto de Cortes o seu direito manifesto, não há dúvida que D. João IV. houve o Reino pelo título mais legítimo que se pode imaginar pois que, além do direito que tinha, obteve também a declaração do Povo.» Fol. 14 e 14 verso.

Em o discurso apresentado à Corte de Roma pelo Bispo de Lamego, enviado como Embaixador de D. João IV, depois da restauração de 1640 (discurso a cuja doutrinas o Rei deu um carácter de autoridade, fazendo-o pela ordenança., de 21 de Março de 1642, imprimir autenticamente pelo impressor de sua Casa com proibição de ser impresso por outro qualquer) se lê a pág. 6 o seguinte:

«A possessão .do Reino lhe foi consignada (a D. João IV) pelo consentimento e decisão dos três Estados do Reino, certos de que a ele só pertencia o mesmo Reino.»

Poder-se-à pois duvidar ainda, que em Portugal há hum Tribunal competente para julgar, e decidir as questões sobre a sucessão à Coroa, e para fazer qualquer mudança na Constituição do Estado.

III. 

Eu não quero agora copiar aqui uma multidão de artigos, que provam que o Rei de um Estado estrangeiro e independente de Portugal não pode pretender o Trono deste Reino 5; somente, citarei o artigo do Decreto dos Estados de 

Lisboa em 1641 , porque é decisivamente o mais aplicável aos filhos do Senhor D. Joio VI, e juntamente porque sendo estes Estados de uma época assaz recente, seus resultados se ajuntam já ao sistema politico da Europa moderna; e tendo a mesma Europa admitido suas decisões como legítimas, estas decisões devem também agora ter uma força muito maior.

Parte do Capítulo 1.º apresentado pelo Estado da Nobreza nas Cortes de 1641,
e sancionado como Lei fundamental.

«Que a sucessão do Reino não possa vir nunca a Príncipe Estrangeiro, nem a Filhos seus, ainda que sejam os parentes mais chegados do Rei último possuidor. E que acontecendo Suceder o Rei deste Reino em outro algum Reino, ou Senhorio maior, seja obrigado a viver sempre neste. E tendo dois, ou mais Filhos Varões, o maior Suceda no Reino estranho, e o segundo neste de Portugal, e este seja jurado por Príncipe , e legitimo Sucessor ...»

Aqui se vê, 1.º que o Rei, se vem a ter uma Coroa estrangeira e independente da de Portugal, a pode conservar durante a sua vida debaixo da condição de residir em Portugal, 2.º que depois da sua morte, deixando muitos Filhos, não pode um só  ter as duas Coroas.

Vejamos se a primeira parte do artigo convêm ao Senhor D. João VI, e a segunda a seus Filhos.

Ninguém poderá negar que a dita determinação da Lei seria aplicável ao Senhor D. João VI, se ele tivesse adquirido a Coroa do Brasil (estrangeira e independente) pelo direito de sucessão hereditária, como adquiria o mesmo Brasil; que então poderia possui-ta enquanto vivo, e que depois de sua morte. o Senhor D. Pedro sucederia no Brasil, e o Senhor D. MIGUEI, em Portugal. Mas quem nos dirá, que a mesma disposição deve ser observada, quando uma segunda Coroa vier ao Rei de um modo, que não seja pelo direito hereditário? Quem? ... A mesma Lei.

No principio do artigo sancionado do Estado da Nobreza nas Cortes de 1641, do qual faz parte a citada disposição, está expressamente explicado o motivo da Lei: eis aqui o motivo:

«A razão de um bom Governo ensina, e a experiência tem mostrado, que ajuntando-se muitos Reinos e Senhorios diversos na Pessoa de um só Rei, não podem ser bem governados, assim como o foram, se estiveram apartados cada um debaixo de seu Príncipe: e que este deve ser natural do mesmo Reino, nascido e criado nele para conhecer seus Vassalos, e os amar como naturais.»

Isto quer dizer, que se não quer geralmente a reunião de duas Coroas na Pessoa do Rei de Portugal.

É pois uma concessão particular feita ao Rei adquirente, permitir-lhe o conservar as duas Coroas durante a sua vida, com a condição somente de residir em Portugal. Mas para seus Filhos, a determinação da Lei é absoluta: é necessário que repartam as duas Coroas na conformidade da Lei.

Esta razão da Lei não é a mesma, quando o Rei houver, ou adquirir a segunda Coroa de outra maneira, que não seja pela sucessão hereditária? Se o Rei, por exemplo, tiver adquirido outro Estado pela abdicação de outro Soberano; as duas Coroas estariam menos reunidas em sua Pessoa, e não Haveria então os mesmos inconvenientes, que a Lei quer prevenir? E se o mesmo Rei fosse quem criasse esta Coroa estrangeira; a razão , para a separação depois da sua morte, não seria sempre a mesma ? Por conseguinte, quando a Lei diz : que acontecendo suceder o Rei deste Reino em outro algum Reino, isto é no caso que o Rei seja chamado à sucessão de outra Coroa, deve considerar-se como um exemplo, e não como uma restrição da disposição da Lei ao caso único de sucessão hereditária.

O Senhor D. João VI, fazendo do Brasil um Estado separado, estrangeiro, e independente de Portugal, pelo Tratado de 29 de Agosto de 1825, e reconhecendo a D. Pedro corno Soberano deste Império, tem feito duas coisas, dois actos que podiam ser independentes um do outro, e entre os quais houve necessariamente um intervalo, durante o qual o Senhor D. João VI teve as duas Coroas de Portugal, e do Brasil, ainda que não fosse senão por um momento; e neste mesmo momento lhe foi aplicável a primeira parte do artigo citado da Lei fundamental. ( Veja-se Scolio 1.º no fim da Questão, pág. 17)

Não se considere isto como uma distinção vã, ou uma subtileza fútil; além de que umas tais distinções de tempo, muitas vezes são em jurisprudência de necessidade absoluta, não é preciso mais, que ler o 1.º artigo do dito Tratado, para nos convencermos, de que a existência de dois actos distintos, e não simultâneos, está ali real e verdadeiramente marcada. Eis aqui pois o artigo:

«Sua Majestade Fidelíssima reconhece que o Brasil está elevado, ao lugar, e dignidade de Império independente, e separado, do Reino de Portugal, e Algarves. (Primeiro acto.) - Ele reconhece Seu Muito Amado e Prezado Filho D. Pedro como Imperador, cedendo e transferindo, de plena e livre vontade, a Soberania do dito Império a Seu Filho, e Seus Sucessores legítimos. » (Segundo acto.)

Claramente se vê que as duas épocas estão muito bem distintas e separadas neste artigo: mas quando pela construção do artigo se não pudesse ver num golpe de vista, a razão não o mostraria menos. Com efeito, como poderia o Senhor D. João VI transferir a Soberania de um Império, sem Ele a ter primeiramente? Como poderia Ele reservar-se uma parte, sem ter possuído o todo; pois, que o titulo não é mais que um acidente, um acessório, um nome, a respeito da Soberania imperial?

O Senhor D. João VI foi pois Imperador do Brasil, antes que o fosse Seu Filho o Senhor D. Pedro; e isto lhe era permitido, pois que nesse tempo se achava em Lisboa, e satisfazia assim à condição da Lei Fundamental de estar em Portugal, para poder possuir. E quem dirá, que o Senhor D. João VI não teria podido ficar lá, isto é reconhecer a independência dó Brasil, e guardar o direito que Tinha à Soberania deste Estado, e que então por Sua morte seria aplicável a Seus Filhos a segunda parte do citado artigo da Lei Fundamental ? Mas se em Sua vida quis ceder a D. Pedro o direito, que a mesma Lei Fundamental devia dar a Este depois da morte de Seu Pai; este acto do Senhor D. João VI podia por ventura mudar a disposição de uma parte da Constituição nacional?

Por consequência, o Imperator do Brasil, segundo as Leis, estava excluído da sucessão ao Trono Português.

Mas pretender-se-há antes admitir, que a disposição do citado antigo é relativa à sucessão hereditária somente? Então o caso do Senhor D. Pedro; e de Seu Irmão seria não previsto pela Lei Fundamental, e seria necessário, que sobre isto se provesse legalmente: porém nós temos demonstrado, que somente os Estados da Nação tinham o direito de determinar e decidir sobre tais casos; e estes Estados não não o tem feito, pois que não se reuniram depois da morte do Senhor D. João VI por conseguinte o Imperador do Brasil não é o Rei legítimo de Portugal, nem podia mudar a Seu bel prazer a Constituição do Estado.

IV.

A existência de Portugal, como Nação independente, é uma prova constante de que a Europa reconheceu o direito, que o constituiu tal; e este direito está nas Leis Fundamentais, que fazem a Constituição deste Reino.

A Europa não reconheceu (em 1641) esta legitimidade Portuguesa sem inteiro conhecimento de causa; pois que além de que os Enviados de Portugal fizeram conhecer os direitos da Nação e do Rei em todas as Cortes da Europa, e os expuseram e manifestaram por toda parte (compreendida a Dieta de Ratisbona, na qual se pediu a liberdade do Príncipe D. Duarte, irmão do Rei, retido em prisão pelo Imperador de Alemanha); a Nação Portuguesa proclamou à Europa estes mesmos direitos por meio de um Manifesto, que fez traduzir em Latim, para ser entendido em todo o mundo.

Este Manifesto produziu o efeito de serem recebidos os Embaixadores Portugueses quase por toda a parte; fez que o Rei de Inglaterra e o Parlamento reconhecessem imediatamente a independência de Portugal (bem se vê, que naquele tempo a política Inglesa olhava mais para a justiça, do que hoje a de M. Canning) e que Luís XIII. de França escrevesse a D. João IV de Portugal nos seguintes termos: «Estamos muito contentes e satisfeitos de ter recebido a noticia do  consentimento universal, e aplauso geral com que Vossa Majestade foi recebido, e reconhecido sucessor legítimo dos antigos Reis de Portugal  ... &c.»; e finalmente fez que bem depressa se vissem chegar a Lisboa os Embaixadores de quase todas as Cortes da Europa.

A voz da justiça tem toda a segurança e certeza de se fazer respeitar, quando é dignamente proclamada; e atendida por corações justos. Veremos pois, por meio de citações do Manifesto da Nação Portuguesa, como ela conhecia muito bem o que se deve ao direito é à dignidade das Nações, que obriga a cada uma delas a obrar de tal maneira, que possa sempre justificar sua conduta na presença de todas as outras. Eis aqui o título do Manifesto:

«Manifesto do Reino; de Portugal, na qual se declara o direito, as causas, e a maneira porque se conduziu para se subtrair à obediência do Rei de Castela e obedecer à voz do Sereníssimo D. João IV do nome, e XVIII entre os verdadeiros Reis deste Reino. (Lisboa, Paulo Craesbek,  1641. Com todas as Licenças necessárias.

O Manifesto.

«Parece que o Mundo com muita justiça perguntará a razão do que se praticou em Lisboa no 1.° de Dezembro de 1640, negando a obediência a Filipe IV ... Será conveniente satisfazer a este comum desejo, manifestando as razões que para isso houveram: pois que sendo os Reinos os membros principais da República universal do mundo, que eles formam como partes componentes, é justo, e até mes mo de obrigação, que ela seja instruída do que se passa em  cada uma de suas partes ... Portugal aclamou subitamente um Rei, havendo obedecido a outro antes deste momento. Poderão perguntar: « Que direito tem ele para o fazer?» ... Se o Rei, que foi aclamado, tinha hum direito legitimo para o ser; o dever dos Vassalos era o de segui-Lo, e obedecer-Lhe ... &c.»

Creio que não se chamará isto linguagem de má fé.

Se a Europa quer pois ser justa e consequente, não tem ela sido bem injusta em nos chamar rebeldes, a mim, e a meus honrados compatriotas! Nós defendemos o Governo legitimo de nossa Pátria porque:

Legitimo,  segundo o Dicionário da Academia , é «o que tem as condições requeridas pela Lei». Um Governo não pode pois ser legitimo, se as Leis lhe são opostas; e estas Leis são as Leis Fundamentais. Nós defendemos nossas Leis Fundamentais, nossa Constituição, nosso Governo legitimo.

Rebelde, segundo o mesmo Dicionário, é aquele que desobedece a seu Soberano; «seu Soberano não é um Soberano Estrangeiro, mas aquele que o é e deve ser, conforme a Constituição da Nação: aquele que defende a Constituição legitima de sua Nação, e o Governo legitimo constituído e estabelecido por ela, não desobedece a seu Soberano, nem jamais é, nem pode ser hum Rebelde.» ( Veja-se Scolio 2.º, pág. 19.)

E por conseguinte também

EU NÃO SOU UM REBELDE;

(Sicut erat ia principio , et nunc et semper. )

 


 

Mais alguma coisa ainda depois da Questão.

SCOLIO I.

Não se trata aqui agora de uma suposição (que o Senhor D. João VI foi o Imperador do Brasil antes do Senhor D. Pedro), mas sim de uma realidade, sobre a qual é essencialmente necessário que nos fixemos, pois que não faltará quem, por não reflectir, acredite, que a primeira parte da disposição era aplicável ao Senhor D. Pedro, e que a segunda, depois de sua morte, seria aplicável a seus Filhos. O Ministro de uma grande Potência Europeu, acreditado junto de outra Potência de primeira ordem, exprimia esta opinião, dizendo: «que no momento indivisível, em que o Senhor D. João VI tinha exalado o último suspiro, o direito à sucessão do Trono Português recaiu na Pessoa do Senhor D. Pedro 6 ; que assim podia o Senhor D. Pedro ter as duas Coroas, e por este mesmo direito podia abdicar a de  Portugal em Sua Filha, para satisfazer à Lei Fundamental deste Reino, que proíbe a reunião das duas Coroas.»

Por pouca reflexão que se faça sobre este discurso, ver-se-há que é contra producentem  (como tive a honra de provar a S. Ex.ª ), e que confirma inteiramente a minha opinião; pois que considera falsamente o Senhor D. Pedro nas mesmas circunstancias, em que o Senhor D. João V. se deve considerar desde o momento em que declarou independente a Coroa do Brasil, até aquele em que a cedeu a Seu Filho, O Senhor D. João VI teve duas Coroas, e podia possuí-Ias pela Lei Fundamental; o Senhor D. Pedro teve duas Coroas, e podia possuí-las pela suposição do Ministro. Mas admitida esta suposição, que razão pode haver para que a disposição da Lei Fundamental fosse antes aplicável ao Filho, que ao Pai? Será por ventura porque faltava ao Filho a essencial condição da mesma Lei - de residir em Portugal para poder possuir? - ou é porque o Senhor D. João VI abdicou uma das Coroas, tornando Seu Filho, por esta mesma abdicação recebida, legalmente inábil para Suceder na outra?

Todavia, se a suposição do Ministro era verdadeira, não vejo porque o Senhor D. Pedro tivesse precisão de abdicar a Coroa de Portugal para satisfazer à Lei Fundamental deste Reino; pois que neste caso não era uma Coroa Estrangeira, mas sim a de Portugal mesmo, a que Ele herdava; mas não é este o caso do artigo. Porém, se Ele herdava a Coroa Portuguesa, não era como Soberano Estrangeiro, pois que a Lei muito altamente se opõe a isso - que a Coroa deste Reino não possa vir nunca a um Príncipe Estrangeiro. - Seria pois necessário admitir que o Imperador do Brasil, ao tempo da morte de Seu Pai, não era um Soberano Estrangeiro, ou não era Soberano de um Estado Estrangeiro; isto seria dizer (o que eu sentiria muito ) que o Brasil tinha sido tão nescio, que não havia respondido à voz de M. Canning, quando este, tendo agasalhado em suas entranhas o embrião ou feto informe do Liberalismo transatlântico, chamava à existência e dava à luz a América (parturiunt montes!) no meio do Parlamento Britânico, com grande admiração, de todos os néscios dos dois mundos! ... O que eu muito mais sentiria, era, que Sir Carlos Stuart teria, nesse caso, perdido todos os seus trabalhos e fadigas de fazer, fazer, e fazer ele mesmo o Tratado de independência de 29 de Agosto de 1825; pois que então este Tratado não teria servido, senão de ter profundamente desgostado, afligido, e incomodado a Sua Majestade Fidelíssima, o Senhor D. João VI. 7

 

Seria mesmo uma consequência assaz legitima da dita suposição, que o Brasil não seria, ainda hoje estrangeiro a Portugal; seguir-se-ia enfim uma série ou multidão de inconsequências, como sempre acontece, quando se pretende, de boa ou má vontade, ir a torto e a direito contra a razão, e a verdade. Talvez que a Corte, que este Ministro representava (uma daquelas que mais influíram para os negócios e desgraças de minha Pátria!...) entenda a coisa, como o seu Ministro; e por conseguinte ela tem (muito eficazmente! ...) protegido os direitos supostos do Senhor D. Pedro.

SCOLIO II.

Digamos mais: 1.º que os Portugueses (mesmo quando o Senhor D. Pedro devesse ser o seu Rei ) não tinham obrigação alguma de lhe obedecer antes de haver prestado o juramento exibido pelo Alvará de 9 de Setembro de 1642: - 2.º que depois deste Allvará, e a Lei do Senhor D. João VI de 4 de Junho de 1824, tinham ainda menos obrigação de adoptar a Carta Brasileira, dada pelo Senhor D. Pedro, ainda que tivesse prestado o dito juramento. (sempre na suposição não concedida que ele podia ser o Sucessor legitimo do Senhor D. João VI)

Penso que isto parecerá algum tanto singular e paradoxal : «Se o Senhor D. Pedro não jurou, não devia ser obedecido ; se o Senhor D. Pedro jurou, ainda menos devia ser obedecido.» - Espero não ter maior dificuldade em chegar à demonstração do proposto; vamos descobrir o mote ou o segredo do enigma.

Eis aqui o conteúdo no citado Alvará:

Os Estados (de 1641) pediram ao Rei, que o Sucessor à Coroa não pudesse subir ao Trono, sem haver primeiramente prestado um juramento: - «que convinha muito ao bem universal e particular destes Reinos, que os Reis, que neles vierem a suceder, antes de serem proclamados, jurem todos os privilégios, liberdades, as graças, e os costumes, que os Reis precedentes lhes tem concedido e jurado ... Que todos os Reis, que para o futuro sucederem nestes Reinos, antes de serem exaltados (ao Trono) façam pessoalmente o mesmo ,juramento...»

E que respondeu o Rei a esta petição? Que isso era já dantes reconhecido como uma Lei municipal, e de costume - «que o que lhe pediam estava introduzido como costume neste Reino ...» Ele o prova com seu mesmo exemplo, dizendo, que o tinha praticado, quando prestou às Cortes (de 1641), que o reconheceram, esse mesmo juramento em seu nome, e de seu Filho; que Ele queria «que todos os Reis seus sucessores façam outro tanto;» e que para isso é que Ele o ordenava, determinava, e prescrevia, etc. Que todo o Rei que o não fizer, seja amaldiçoado do Céu, da terra, e da sua Corte; e que todos os seus Vassalos possam pedir aos Reis, seus Sucessores, o juramento da confirmação de suas graças, e privilégios antes de entrar na sucessão destes Reinos; que Ele ordenava e revalidava isso como Lei feita em Cortes; que queria que fosse executada inteiramente em todas as cláusulas, que na mesma são conteúdas.»

De outra parte, o Senhor D. João VI, pela Lei de 4 de Junho de 1824, declarou a importância e força deste juramento nos seguintes termos: - «Julguei que não convinha demolir-se o nobre e respeitável edifício de nossa antiga Constituição política constante de Leis sábias, escritas, e tradicionais, a que acrescia achar-se firmada com o ,juramento, que os Senhores Reis destes Reinos prestam, e Eu mesmo o prestei, de manter os Foros, e Privilégios da Nação.» Ele diz mais ainda: - «Convencido que os deveres que contraí ... exigem que Eu respeite e conserve intactos os direitos, antigos da Monarquia ... que a Constituição Portuguesa ... está firmada no juramento ... que Eu, e todos os meus Augustos Predecessores prestámos no acto da nossa elevação ao Trono ... Ei por bem declarar em seu pleno vigor a nossa antiga Constituição política.»

Conforme estas Leis, nós (os Absolutistas) temos acreditado, e acreditamos ainda, que nenhum Português devia obedecer, mesmo a um Sucessor legítimo (in potentia), sem que tenha prestado o juramento prescrito de guardar inviolavelmente nossos direitos, e nossas prerrogativas nacionais; entretanto que nossos Despotas-Liberais sustentam, há ano e meio, que um Soberano, ou natural ou estrangeiro, pode, a seu pleno arbítrio e capricho, destruir, quando e como quiser, todos estes direitos e prerrogativas nacionais. Creio ter demonstrado, para todos aqueles que tiverem algum senso e boa fé, a primeira parte da minha proposição: vejamos agora se a segunda é uma justa consequência da primeira.

Quando mesmo o Senhor D. Pedro devesse ser o Sucessor legítimo ao Trono Português, prestou por ventura o juramento prescrito pela Constituição da Nação, e entrou legalmente no exercício da Soberania Portuguesa, obrigou-se acaso a guardar invioláveis os direitos, as prerrogativas, e a Constituição nacionais? É necessário, ou responder - Sim – ou sustentar que podia ser perjuro. Escolham estes meus Senhores Liberais (como se chamam a si mesmos); ou esforcem-se para escapar deste argumento corrupto! ... Presumo pois ter descoberto a segunda parte do enigma.

Aproveito-me desta ocasião, para fazer aqui aos amigos da Carta Anglo-Brasileira meus cumprimentos sobre sua legalidade, e na conformidade do que acabo de dizer a respeito do juramento acima referido.

1.º COROLÁRIO GERAL

LEGITIMIDADE PRETÉRITA.

Que se deveria ter feito, para proceder legitimamente em Portugal, depois da morte do Senhor D. João VI?

A Regência nomeada por este Rei (ou em seu nome) por Decreto de 6 de Março de 1826, logo depois da sua morte, devia convocar os Estados da Nação, e propor-lhes, que declarassem a quem pertencia a Coroa: eis aqui o caminho único legal. Se esta Regência o não fez, é culpável assim como todos aqueles que a desviaram de cumprir o seu dever, por todos os males, por todas as calamidades, que a minha Pátria tem sofrido desde a morte do Senhor D. João VI: ela cometeu uma usurpação dos direitos da Nação, e dos daquela Pessoa, que devia ser o legitimo Sucessor à Coroa, (O PRINCÍPE SENHOR D. MIGUEL). E, se a mesma Regência acreditava (o que é muito duvidoso!) que o Senhor D. Pedro devia ser o Sucessor legitimo, segue-se, que ela mesmo não favoreceu muito os direitos deste, que, no caso que pudesse pretender razoavelmente a Corda Portuguesa, tinha o direito de querer, que sua pretensão fosse legalizada e segura pelos Estados da Nação. 

 

2.º COROLÁRIO GERAL

LEGITIMIDADE PRESENTE

E que deveria agora fazer o Senhor D. MIGUEL, para restabelecer, além do direito, tantas ilegalidades e curar o golpe feito na legitimidade Portuguesa, na Constituição do Estado?

A resposta é muito simples: fazer aquilo que se não fez; isto é, mandar passear as duas Câmaras ilegítimas, com a Carta exótica; convocar legalmente os Estados da Nação; fazer-se ali declarar «único reconhecido herdeiro e legítimo Sucessor» (veja-se o artigo citado (a pág. 8) das Cortes de 1641); e como bom Pai da grande família com seus Vassalos e seus filhos fazerem os melhoramentos, que todos julgarem convenientes. E eis aqui tudo.

Petição justa.

Que se não esqueça também (para confusão de almas perversas!...) de me fazer ali declarar, a mim, e a meus bons compatriotas, Realistas-nacionais, não Rebeldes, mas Leais Portugueses, e Vassalos fiéis. A Legitimidade está dizendo a cada um de nós: Euge, serve bane et fidelis! e nós estamos contentes; não iremos (eu pelo menos) pedir: Quod super multa me constituant, quia super pauta f fui fidelis.

 

MAIS QUATRO QUESTÕES,

OU

COROLÁRIOS INTERROGATÓRIOS.

 

1.ª

Quem defende as Leis, os direitos, as liberdades, e a Constituição de sua pátria, defende acaso ó poder despótico?

2.ª

Quais são pois os Absolutistas, nós, ou os partidistas do Senhor D. Pedro?

3.ª

Quais são pois os Rebeldes!

4.ª

Deveríamos nós renunciar a nossos direitos, a nossas prerrogativas nacionais, a nossas liberdades, assim como à nossa dignidade, à nossa honra, à nossa independência, e aos interesses da nossa Pátria, porque M. Canning o queria, e porque os Gabinetes da Europa se não tem dado ao trabalho de examinar nossas Leis, e de reflectir sobre nossa verdadeira Constituição, antes de reconhecer, como legítima, uma usurpação?

REFLEXÕES.

Quanto são néscios e estúpidos nossos bons Liberais! (falo dos Liberais Portugueses.) Entretanto que eles falam a torto e a através de direitos do Povo e da Nação, de liberdades públicas, de limites do poder, etc. etc.; pretendem privar, e vão despojando a Nação Portuguesa de seus direitos, de suas prerrogativas, únicos Foros, que podem dar uma verdadeira eficácia à Constituição do Estado, .e dela serem os garantes. Dizei-me, Senhores Liberais, ou antes Despóticos Liberais, se, conforme vossa opinião (do dia de hoje), o Senhor D. Pedro, mesmo sem haver sido proclamado Rei, nem reconhecido pela Nação, pode alterar e mudar à Sua vontade a Constituição do Estado, fundada em actos solenes e respeitáveis, em convenções tão antigas, como a mesma Monarquia; com que direito pretendereis vós negar a mesma faculdade a qualquer Sucessor do Senhor D. Pedro (concedendo por um momento que Ele fosse Rei de Portugal), a Sua Filha, por exemplo? Outro Rei de Portugal será menos Rei, que o Senhor D. Pedro? E se imaginasse, ou lhe visse à cabeça, despedaçar vossa Carta, despedir vossas duas Câmaras e dizer: Hei por bem decretar, outorgar, e mandar jurar à Nação Portuguesa a Constituição de?... ( como o Senhor D. Pedro disse: Hei por bem decretar, dar, e mandar jurar a Carta Brasiliense); que teríeis vós a opor-lhe? Oh! Meu Deus! quanto tremo dessa Carta, dessas Câmaras e desses quatro poderes, 8 que o Sr. Carlos Stuard vos trouxe do Brasil !...

 

POST SCRIPTUM.

 

Visto que a impressão desta brochura não tem continuado com tanta pressa, como eu a  escrevi, ajuntamos-lhe ainda um post-scriptum.

Anteontem (22 de Fevereiro) soubemos que alguns Srs. Portugueses; que não pensam  politicamente, como nós, enraiveceram um pouco contra esta linguagem realista-nacional, que não falou com castanhas quentes na boca, mas diz muito distinta e muito claramente a verdade e suas provas, encarregando-se, também de respostas a objecções em forma. O Governo de Lisboa, dizem eles, tem descoberto um exorcismo contra. este flagelo da verdade palradora, proibindo por todos os meios possíveis toda a introdução de verdades no Reino. Acrescentam ainda ainda mais: - «Que se os Rebeldes Portugueses, que estão em Paris (isto é, eu e mais quatro compreendido um velho doméstico) fizessem imprimir aqui mesmo alguma coisa que lhes não agradasse mais (a estes Senhores não-Rebeldes) do que lhes há de agradar este meu post-scriptum, fariam todo o esforço pára não deixar correr estes borrões importunos

Quanto a mim, estou bem certo, que seria obrigado a responder perante as Autoridades de S. M. Cristianíssima, pelo abuso de minha pena, se por desgraça com ela ofendesse as Leis da França; mas, quanto a estes meus Senhores, que se molestam e afligem por ouvir a defesa dos direitos da minha Pátria, do meu Príncipe, e de meus Concidadãos, não me julgo obrigado a dar-lhes satisfações: contudo podem estar certos, que, se ousarem apresentar-se em combate, terei a generosidade de responder também perante eles pela minha lógica e força de minhas razões, assim como pela justiça da minha causa.

Se a nossa causa (dos Realistas Portugueses), é má, pois que razão se receiam eles (os Liberais) de nos ouvir? Se nós não podemos dizer coisa alguma, que seja boa; ou conveniente e se nossos adversários, estão tão seguros de suas armas, e de sua justiça, como parecem, quando todos os dias a torto e a direito chamam legitimo a tudo quanto, diz respeito à Carta Brasileira, seu ídolo 9 : Rei legítimo, ao Imperador do Brasil; direitos legítimos, aos que eles lhe dão; governo legítimo aquele que Ele determinou; instituições legitimas à Carta Brasileira; usurpação legítima, a que ele comete sobre os direitos de Seu Irmão, etc., etc.; sem que nos apresentem a Lei , que faça ou autorize tantas legitimidades, por que razão nos hão de fechar, a boca, em Portugal e hão de querer, que a fechem também em França? Se estes meus Senhores têm razão muito bem! de que se receiam? devem desejar adversários e contraditores; seu  triunfo seria tanto mais brilhante a quanto maior fosse a nossa confusão ... Quanto a mim, estimaria muito ouvi-los produzir suas razões, ainda que elas combatessem as minhas: que prazer não teria eu, por exemplo, em ouvir uma demonstração que me disseram ter sido feita um destes por um certo de nossos antagonistas, na qual provou, tão claro como o dia «que o ser Regente de um Reino é coisa maior que ser Rei do mesmo Reino ...» Por ventura escolheu-se a França como um País capaz de ouvir tudo sem que ali haja a permissão de rir algumas vezes, é de dizer num tempo ou noutro «isto é uma loucura?» (qui potest capere capiat; quem lhe servir a carapuça, que a ponha na cabeça.)

Creio que estes meus Senhores com toda à sua geringonça de liberdade de pensar, de liberdade de publicar suas ideias, de direitos da razão, de desprezo da autoridade, etc. etc. pendem algum tanto do lado da convincente lógica de Maomet: - ou crê, ou morre! -

Paris, 25 de Fevereiro de  1828. 

 

NOTA.

No mesmo dia (21 de Fevereiro) em que levei à Impressão o manuscrito da desta brochura, soube que acabava de imprimir-se  novo Opúsculo do Autor, de quem já falei na nota a pág. 11. É uma brochura de 40 páginas, intitulada D. MIGUEL e seus direitos, Paris, 1828, Delaforest. Eu a li com zelo. Em sua curta extensão (mais uma prova da simplicidade de um objecto comum ao Autor e a mim) ela é a mesma solidez em suas provas, a razão mesmo em seus argumentos. Esta pequena obra só é já uma demonstração superabundante de nosso propósito; mas pode também ser considerada como um complemento de meu pequeno trabalho; porque nela se aprofunda até ás raízes dos princípios, que eu não fiz mais, que indicar. Se alguém se admira de nos encontrarmos quase em tudo, e gritar ao plagiato, eu somente lhe pediria (ainda que me não julgasse desonrado de tomar as armas de um tão bom Soldado da razão, que não tenho o gosto de conhecer) que reflectisse, que nas controvérsias é ordinariamente só o privilégio da. boa fé o de haver encontro no ponto da verdade, pois que ela a procura às simplicitate cordis por isso mesmo que na boa fé, e não na prevenção é que se encontra e descobre a verdade,

FIM

 


Notas:

1. Na Gazeta official de Lisboa pouco depois da chegada da Carta Brasileira, se publicou uma refutação das razões, que os defensores da verdadeira Constituição da Nação Portuguesa alegavam contra os pretendidos direitos do Senhor D. Pedro. A mais forte razão dada nesta apologia oficial da Gazeta, era «Que D. Pedro não podia ter perdido os direitos à Coroa de Portugal por ser Imperador do Brasil, do mesmo modo que Afonso V os não havia perdido por fazer a Guerra em África, e tomar o título de Africano por memória de suas vitorias ali alcançadas.» Todo o mundo, conhecendo bem a estupidez de uma tal comparação, nos dispensará de responder a este argumento. Aquele que se aproveita de tais defesas, não tinha o escudo de Aquiles para cobrir os direitos do Senhor D. Pedro. (regressar ao texto)

2. A palavra Rei aqui significa todos os Reis de Portugal, ou antes sua realeza sucessiva, que não morre, e é sem pre a mesma; que se obriga ao pacto fundamental, e recebe ou aceita as obrigações do povo, segundo o .mesmo pacto; que sempre existe para cumprir seus deveres estipulados no mesmo pacto, e exigir do povo eficazmente o cumprimento rios seus, Para, de concerto com a outra parte contratante (o povo) , em caso de necessidade, ou de utilidade, fazer legalmente, e por burra consentimento recíproco, algumas correcções , declarações , ou mudanças em o contracto. Esta realeza pode mesmo, em certas circunstancias, não ser representada pelo Rei , corno depois da morte do Senhor D. João VI, que foi representada pela Regência. Pelo contrario, aqui entendemos por nossos Soberanos individualmente aqueles, que por Leis e Decretos leão todavia ajuntado sua sanção ás disposições consignadas em o pacto. (regressar ao texto)

3. Ainda que o texto latino não fale aqui senão de Bispos (Episcopos), esta expressão deve entender-se pelos representantes de todo o Clero; pois que no princípio do acto das Cortes, na enumeração dos assistentes, são designados não somente os Bispos, mas o resto do Clero: «Et multitudo ibi erat ... de clericis». (regressar ao texto)

4. Procuratores em latim (ainda. hoje se diz em Português Procuradores das Cortes e Vilas.) São também designados no princípio do acto, primeiramente em geral «Viros ... procurantes bonam partem per suas civitates; e depois especificados.» Per Coimbram, per Vimaranes, per Lamecum ... &c. (regressar ao texto)

5. Esta questão tem sido vitoriosamente discutida por outra pena, que pela sua erudição profunda, por siga lógica nervosa, e pelo seu estilo correcto e enérgico bem se vê não ser como a pena, que escreve esta brochura , pena de um mancebo que fala um pouco a língua Francesa, e que, apressado por circunstancias, publica este Opúsculo de três dias (de carnaval): falo do Livro Exame da Constituição de D. Pedro, e dos direitos de D. MIGUEL, dedicado aos fiéis Portugueses, Paris, Delaforest, 1827. A Legitimidade Portuguesa deve ainda ao Autor da dita Obra uma brochura não menos importante A Inglaterra e D. MIGUE, Paris, mesmo Livreiro e ano. (regressar ao texto)

6. Isto é, que a Lei Fundamental não tinha podido alcançar industriosamente esse direito, antes de se aferrar à Pessoa do Senhor D. Pedro, gritando = te teneo! (eu já te possuo! ) Nosso bom direito aplainava já sobre o Oceano tomando o rumo da América, quando a Lei Fundamental conheceu, que se tinha escapulido sem permissão do Palácio da Bemposta tendo-se soltado da Augusta Pessoa do Senhor D. João VI. no momento de sua morte, de sorte que nunca mais foi possível à dita Lei o alcança-lo!  (regressar ao texto)

7. Sabemos quem conserva uma Carta do Senhor D. João VI, escrita  de seu próprio. punho quando acabava de reconhecer a independência do Brasil, na qual declara com quanto pesar e repugnância, havia reconhecido esta independência, impelido pelas importunações Inglesas. Quando o Senhor D. João VI escrevia esta Carta, o Sr. Carlos Stuard partia de Lisboa para a América, levando o fruto de sua quase extorsão. (regressar ao texto)

8. Nossa boa Carta, dada à luz em Portugal pelo Marquês de Palmela com três poderes somente, legislativo, executivo, e judiciário, foi enviada ao Brasil, para que o Senhor D. Pedro fosse seu Padrinho, baptizando-a com o nome de Lei Fundamental dada à Monarquia Portuguesa. Mas como! facile est inventis addere (é muito fácil ajuntar a uma loucura outra loucura), voltou da América com um quarto poder (o poder moderador) que se lhe enxertou no Brasil. (Vejam-se as Cartas historicas e políticas sobre Portugal, pág. 211. Paris, 1827.) Não será pois de espantar, se a Carta Brasileira vai coxeando: uma mesa de quatro pés facilmente coxeia, entretanto que jamais acontece o mesmo a uma tripeça. ( Eu ainda de boa vontade tornaria a ver nossa Carta no Brasil; e não duvido, que voltasse enriquecida com um quinto poder!...) (regressar ao texto)

9. Ídolo, ao qual sacrificam a honra, a dignidade, a independência, a glória nacional, e os interesses de sua Pátria. (regressar ao texto)

Fonte:

António Ribeiro Saraiva,

Eu não sou um Rebelde; ou a questão de Portugal em toda a sua simplicidade, Offerecida aos Políticos Imparciais, e aos homens de boa fé,

Lisboa, Na Nova Impressão Silviana, 1828.

A ver também:

Outros documentos políticos
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