Escravos em transporte |
Decreto
de abolição da escravatura
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"O infame tráfico dos negros é certamente uma nódoa indelével na história das Nações modernas (...). Emendar pois o mal feito, impedir que mais se não faça, é dever da honra portuguesa, e é do interesse da Coroa de vossa majestade"
Como escreveu Maria Manuela Lucas, "Sá da Bandeira, [o protagonista do] projecto setembrista de reedificação do império, [acabou] por encontrar graves obstáculos ao pretender passar à concretização do seu plano. Em simultâneo com as constantes exigências da Inglaterra, [enfrentou], logo a partir de 1836, quando foi decretada a abolição do tráfico de escravos, não só a forte resistência dos negreiros africanos como, de uma maneira geral, a oposição de todos os agentes envolvidos nas malhas do comércio ilegal. A chamada "burguesia colonial" era detentora de um elevado grau de autonomia, que se acentuou ao longo do segundo quartel do século XIX, em virtude da instabilidade política então vivida em Portugal e até da própria legislação liberal de descentralização administrativa." Na verdade, a escravatura no império português foi coisa que se manteve quase indefinidamente. SECRETARIA
DE ESTADO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS. SENHORA! A
civilização da África tem sido nestes últimos tempos o pensamento querido
dos sábios e dos filantropos, e não menos o desvelado cuidado dos principais
governos que, no antigo e no novo Continente, marcham à testa do progresso, e
promovem o melhoramento da espécie humana; enquanto Portugal, que durante séculos
havia trabalhado nesta grande obra, hoje, em vez de a promover, lhe põe obstáculos. O
primeiro título que os nossos grandes reis, augustos avós de V. M.,
acrescentaram ao de Rei de Portugal, foi o de - além mar em África,
e o de Senhores de Guiné. Empunhadas pelas mãos de nossos
navegadores, dirigidas pela atrevida ciência de nossos astrónomos, as Quinas
Portuguesas, que desta extremidade da Europa saíram para conquistar e
civilizar, primeiro foram mostrar-se nos mares de Ceuta, logo, passado o
tremendo cabo Bojador, não tardaram a ganhar as férteis regiões que rega o
Senegal, o Gâmbia, e o Zaire; donde, descendo e dobrando o Cabo Tormentório,
passaram a descobrir a costa oriental da imensa península Africana, em cujo
litoral fundaram feitorias, construíram fortes, e conquistaram povos. Sobre
vários feitos de África como em tantos outros, os Portugueses têm sido
caluniados por historiadores modernos, que representaram nossos guerreiros e
navegadores traficando com a espada na mão dos haveres e das vidas das Nações
descobertas. E todavia, não há um só documento em toda a primeira época de
nossos descobrimentos, que não prove que o principal, e quase único intuito
do governo português era a civilização dos povos pelo meio do Evangelho: O
comércio foi secundário, posto que meio civilizador também; e a dominação
foi uma necessidade consecutiva, não um objecto. Os
erros de doutrina religiosa, e o vício das medidas políticas, eram do século,
não dos homens. A
Índia primeiro, depois o Brasil fez-nos deixar a África, nosso mais natural
campo de trabalhos. Mas a colonização do Brasil, e a exploração de suas
minas; e bem depressa o interesse de todas as outras potências que houveram o
seu quinhão da América, foram os maiores inimigos da civilização da África,
que nós sós, e com tanto sacrifício de vidas e fazendas havíamos começado. O
infame tráfico dos negros é certamente uma nódoa indelével na história
das Nações modernas; mas não fomos nós os principais, nem os únicos, nem
os piores réus. Cúmplices, que depois nos arguiram tanto, pecaram mais, e
mais feiamente. Emendar pois o mal feito, impedir que mais se não faça, é
dever da honra portuguesa, e é do interesse da Coroa de vossa majestade,
porque os Domínios que possuímos naquela parte do Mundo são ainda os mais
vastos, importantes e valiosos que nenhuma Nação Europeia possui na África
Austral. Para
os avaliarmos não devemos só considerar o que actualmente são, mas o de que
são susceptíveis. O estado em que se acham é devido não só ao mau Governo
que tem tido a Metrópole, mas a este ter prestado a sua atenção quase
exclusivamente ao Brasil. Os
naturais da África foram aprisionados e transportados além do Atlântico
para tornarem rico um imenso país cujos habitantes se recusavam à civilização.
Lê-se numa memória antiga, que houve tempo em que na ilha de S. Tomé
existiram dezassete engenhos de açúcar, que o governo de Portugal mandou
destruir para não prejudicarem a cultura da cana que naquele tempo promovia
no Brasil! Em
nossas províncias africanas existem ricas minas de ouro, cobre, ferro, e
pedras preciosas: ali podemos cultivar tudo quanto se cultiva na América:
possuímos terras da maior fertilidade nas ilhas de Cabo Verde, em Guiné,
Angola e Moçambique: grandes rios navegáveis fertilizam algumas das nossas
províncias, e facilitam o seu comércio; naqueles vastos territórios
poderemos cultivar em grande a cana do açúcar, o arroz, anil, algodão café
e cacau; numa palavra todos os géneros chamados coloniais, o todas as plantas
das Molucas, e de Ceilão, que produzem as especiarias; em tal abundância,
que não somente bastem ao consumo de Portugal, mas que possam ser exportados
em muito grandes quantidades para os outros mercados da Europa, e por menores
preços que os da América visto que o cultivador Africano não será obrigado
a buscar, e a comprar trabalhadores, transportados da outra banda do Atlântico,
como acontece ao cultivador brasileiro, que paga por alto preço, aumentado
ainda pelo risco do contrabando, os escravos que emprega. Promovamos
na África a colonização dos Europeus, o desenvolvimento da sua indústria,
o emprego de seus capitais; e numa curta série de anos tiraremos os grandes
resultados que outrora ora obtivemos das nossas colónias. Mas
para isto é necessário que reformemos inteiramente as nossas leis coloniais. Se
pelo resultado se pode julgar o sistema duma Legislação, nenhuma poderá ser
pior do que a das nossas possessões: séculos têm decorrido depois que
se acham no domínio português, e pouco diferentes estão em civilização
do que eram no tempo da conquista, enquanto, como contraste, a vizinha Colónia
do Cabo de Boa Esperança em muito menos tempo tem crescido rapidamente em
população branca, e em riqueza. A
glória de continuar a grande empresa começada pelo senhor D. João II estava
reservada a vossa majestade. A civilização de África de que tantas nações
poderosas têm desesperado, é mais possível à rainha de Portugal, que em
suas mãos tem as chave das principais portas por onde ela pode entrar e cuja
autoridade é obedecida em vários pontos do interior daquele vasto
continente, que se acham situados a mais de duzentas léguas do mar. E assim
como foi possível aos soberanos de Portugal abrir estradas para a civilização,
que nenhum outro príncipe ousou fazer cometer, ser-lhes-á também possível
aclimatizar, e fazer prosperar naquelas regiões esta planta benéfica. Como
preliminar indispensável de todas as providências, que para este grande fim,
de acordo com as Cortes Gerais da Nação, vossa majestade não deixará de
dar em sua alta sabedoria, religião, e humanidade, os seus secretários de
Estado têm hoje a honra de propor a vossa majestade, no seguinte projecto de
decreto, a inteira e completa abolição do tráfico da escravatura nos domínios
portugueses. Secretaria
de Estado dos Negócios Estrangeiros, em 10 de Dezembro de 1836. =
(Assinados) Visconde de Sá da Bandeira. =
António Manuel Lopes Vieira de Castro. =
Manuel da Silva Passos.
Tomando
em consideração o Relatório dos secretários de Estado das diferentes
Repartições, Hei por bem Decretar o seguinte: Artigo
1.º
Fica
proibida a exportação de escravos, seja por mar ou por terra, em todos os
Domínios Portugueses, sem excepção, quer sejam situados ao norte, quer ao
sul do equador, desde o dia em que na Capital de cada um dos ditos Domínios
for publicado o presente Decreto. Art.
2.º
E
do mesmo modo proibida a importação de escravos feita por mar, sob qualquer
pretexto que se pretenda fazer. §
único. Todo o escravo que for importado par terra deverá ser competentemente
manifestado à sua chegada ao Território Português. Art.
3.º
É
exceptuada das regras estabelecidas nos Artigos 1.º, e 2.º a exportação e
importação dos escravos feita por um Colono, quer nacional, quer
estrangeiro, que de uma parte dos Domínios Portugueses em África for
estabelecer-se em outra parte dos mesmos Domínios no Continente, ou Ilhas
Africanas. §.
único. É do mesmo modo exceptuada da regra estabelecida no Artigo 2.º a
importação de escravos por mar feita por um Colono, quer nacional, quer
estrangeiro, que de qualquer país não sujeito à Minha Coroa vier
estabelecer-se em algum dos Domínios dela em África. (...) Art.
25.º
O
presente Decreto será publicado na forma do costume pelos Governadores dos
Domínios Ultramarinos, logo que por eles for recebido; mas dando além disso
um exemplar dele a cada uma das Câmaras Municipais respectivas Alfândegas, e
aos Juizes de Direito. §.
único. Pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros serão remetidos
exemplares do presente Decreto às Legações, e Agências Consulares de
Portugal em todos os países Estrangeiros. Os
Secretários de Estado das diferentes Repartições assim o tenham entendido e
façam executar. Palácio das Necessidades, em dez de Dezembro de mil,
oitocentos trinta e seis.
=
RAINHA.
=
visconde de Sá da Bandeira. =
António Manuel Lopes Vieira de Castro. = Manuel da Silva Passos. Relação
dos objectos, que sendo achados a bordo de qualquer Navio, se devem considerar
como indícios de, que ele se destina ao tráfico de escravos, e o tornam
sujeito às disposições do Decreto de 10 de Dezembro de 1836, de que esta
mesma Relação faz parte. 1.º
Escotilhas com grades libertas, em vez de serem fechadas segundo é prática
nos Navios mercantes. 2.º
Repartimentos, Coberta corrida, ou separações em maior numero do que é
costume, ou necessário nos Navios que fazem o Comércio lícito. 3.º
Tábuas aparelhadas para formar uma segunda Coberta, conforme praticam os
Navios de escravatura. 4.º
Gargalheiras, algemas, anjinhos, ou Cadeias. 5.º
Maior quantidade de água em pipas ou tanques, do que a necessária para o
consumo da equipagem de um Navio mercante. 6.º
Uma quantidade extraordinária de pipas ou barris para conter líquidos, uma
vez que o Capitão não possa apresentar Certidão da Alfândega onde
despachou, mostrando que os donos do Navio prestaram fiança , e que essas
pipas ou barris são destinados para azeite de palma ou de peixe, ou para
qualquer outro Comércio lícito. 7.º
Maior quantidade de celhas, gamelas, ou bandejas para rancho, do que as necessárias
para uso da equipagem de um Navio mercante. 8.º
Uma Caldeira de maior dimensão do que a usual, e maior do que aliás seria
necessário para uso da equipagem; ou diversas Caldeiras em maior número do
que as necessárias para este efeito. 9.º
Uma quantidade extraordinária de arroz, feijão, carne e peixe salgado,
farinha de pão, mandioca, milho, ou farinhas de qualquer espécie além da
que posa ser necessária para o sustento da equipagem, quando qualquer destes
objectos não faça parte da carga, e como tal se ache no Manifesto. Secretaria
de Estado dos Negócios Estrangeiros em 10 de Dezembro pie 1836. =
(Assinado) =
Visconde de Sá da Bandeira.
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