DAS MEMÓRIAS DO 4.º CONDE DE MAFRA
[ABERTURA DA TEMPORADA LÍRICA 29 de Outubro de 1878.] O dia de anos D'el-rei D. Fernando era havia muito tempo a data escolhida para a inauguração da época lírica no Teatro de S. Carlos com uma récita de gala. E que belo espectáculo era uma dessas récitas!.Vi-o pela 1.ª vez nesse ano. Enchente à cunha nos camarotes e plateias. Nesse tempo havia a plateia superior à frente e a geral atrás. Um lugar para a primeira custava um quartinho ou fossem 1.200 réis antigos, para a segunda sete tostões. À entrada da Família Real a orquestra tocava o hino e todas as senhoras e homens se punham de pé sem exceptuar o Latino Coelho sempre bem educado. Por isso lhe chamavam jacobino da Real Câmara. Os músicos, menos os tocadores de violoncelo, erguiam-se. O regente, de casaca, fazia frente à retaguarda e ficava de braços caídos. O hino nacional não precisava dirigido. O chamado rabecão-guia, nesse tempo a cargo do notável contra-pontista Cunha e Silva e colocado junto ao Maestro, até esse se virava para o camarote real voltando as costas aos executantes, porque o hino da carta e o hino privativo D'el-rei D. Luís - tocavam-se ambos - não careciam de ser guiados. Mal acabava de soar o último compasso o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa de casaca e faixa azul e branca assentando sobre uma barriga tremenda, erguia o chapéu para dar vivas correspondidos por toda a gente. (1) Começava depois o espectáculo. No camarote de gala as Pessoas Reais sentadas. tinham por detrás de cada poltrona um dignitário de pé. Lembro-me de ver meu Pai de farda chamada rica e grã-cruz, também de pé é com as mãos encostadas ás costas da cadeira real. No camarote real dos dias simples estavam as damas da Rainha com os tais vestidos chamados. fardas. Em frente a Senhora Condessa de Edla num camarote propriedade do Augusto Esposo. (2) Não era costume aparecerem os rapazotes e muito menos os rapazinhos nas récitas de gala, consideradas cerimónias da Corte e especialmente nas duas primeiras ordens de camarotes. O aparecimento dum menino era um escândalo, quase um crime de lesa etiqueta, mas o Daupias, não se importava com isso e levava-me para sua frisa n.º 10. Meu Pai fechava os olhos, mas quando os abria gostava de me ver. Num intervalo não resisti à tentação de ir ao corredor da 1.ª ordem espreitar para o salão traseiro ao camarote grande, mas veio de lá um áulico de fardalhão e comendas, indignado - e com razão - de me ver ali e mandou-me embora. Como eu recalcitrasse ameaçou-me com um puxão de orelhas. Fez bem em não realizar a ameaça porque teria levado um pontapé numa canela. Era a minha defesa quando os mais fortes me agrediam e foi-me ensinada pelo guarda-portão Bernardo que não se cansava de me repetir: «um bom pontapé nas canelas deixa marca para sempre». Pelo que me lembra e por aquilo que tenho ouvido dizer, fui com certeza um menino por vezes desagradável, mas havia no entanto quem me quisesse bem. E não guardo o menor rancor aos que comigo implicaram e por vezes tão rudemente... «Perdono á tutti» como o Rigoleto. O que não posso é esquecer porque ainda não morri nem tão pouco tenho por enquanto os miolos inteiramente amolecidos. * * * A etiqueta mandava que nas récitas de gala não houvesse manifestações de agrado ou desagrado – nem palmas nem pateada. Por isso aos artistas agradava o debute nessas noites. Temiam o público de Lisboa famoso em apreciações manifestadas com os pés. A notabilíssima cantora Borghi Mamo impôs uma vez a sua estreia em S. Carlos numa noite de gala com medo das botas e sapatos dos entendedores lisboetas. Chegou a haver no nosso teatro lírico verdadeiras batalhas degenerando em pancadaria rija corpo a corpo. No tempo da contralto Pasqua e da soprano De Réske, ambas elas notabilíssimas artistas, deram-se na plateia refregas de bordoada com intervenção da polícia, porque os admiradores duma pateavam a outra. Numa dessas refregas foi derrubado e moído com pisadelas o tranquilo Conde de Mesquitela (mais tarde Duque de Albuquerque) que nada tinha com o caso e era já um velho por sinal bondoso e pacífico.
(1) José Gregório da Rosa Araújo se chamou o popular e benemérito presidente da Câmara Municipal de Lisboa nessa época. Era filho de Manuel José da Silva Araújo, natural de Famalicão e de D. Eulália Rosa da Silva (lisbonense). Foi ele quem teve a ideia de substituir o Passeio Publico pela actual Avenida da Liberdade, mas parece que aos alfacinhas lhes deu de repente um ataque de saudades do velho recinto gradeado, de belas sombras e recordações, chegando a haver protestos e até motins contra o inteligente projecto. Foi necessário a guarda municipal proteger os operários que principiaram a demolição das grades em 24 de Agosto de 1879. O próprio Presidente teve de ir para casa escoltado pela cavalaria. Os trabalhos foram dirigidos pelo engenheiro António Maria de Avelar. O primeiro enterro que teve licença de passar pelo centro da Avenida da Liberdade foi o do próprio José Gregório da Rosa Araújo (Janeiro de 1893). Os candeeiros da iluminação pública estavam todos cobertos de crepe. Rosa Araújo, disforme no físico, era todavia, o dono dum formoso coração e duma alma bem formada. Mãos largas para tudo e para todos, deu cabo duma boa fortuna com a maldita politica e com a prática do bem. Foi dedicadíssimo a El-Rei D. Luís que muito o distinguiu. Tenho notícia de correspondência curiosíssima entre o Poder Moderador e o presidente do Município. O pai de Rosa Araújo fundou em 1840 na então travessa de São Nicolau, hoje rua, uma confeitaria que passados anos se mudava para defronte, onde está ainda hoje e com o mesmo nome. Era da porta dessa confeitaria que o velho Araújo chamava os rapazinhos para lhes dar um rebuçado dizendo-lhes: «toma lá um cócó». Daí lhe veio a alcunha que passou para o filho benemérito e para uns pastéis de ovos envolvidos em massa folhada papirácia. Durante muitos anos os famosos e deliciosos pastéis de ovos, vulgo pastéis de cocó, foram exclusivo da confeitaria, Rosa Araújo mas hoje fazem-se em varias casas de Lisboa e numa do Porto. Até os há em Madrid iguais aos de cá. Falo-os um pasteleiro português chamado Martinho e aos pastéis chamam-lhes lá Glorias de Portugal. Estas informações e outras ainda mais interessantes, mas de carácter privado, me foram dadas pelo meu velho e bom amigo Isidro Mendes da Silva que durante muitos anos foi empregado, e amigo dedicado dos Araújo pai e filhos e por fim proprietário da casa. (voltar) (2) Este camarote é no fim de contas uma tribuna grande (ocupando o espaço de dois camarotes) que duma residência particular, encravada no edifício, deita para a sala da Ópera. Por detrás dessa tribuna há duas salas e mais quartos com janelas para o ar livre e uma escada de pedra conduzindo a um vasto rés-do-chão com portão para a rua Serpa Pinto e onde podem recolher carros. O camarote com os anexos pertenceu primitivamente à família Quintela e por morte do Conde de Farrobo, membro dessa família, foi comprado por El-Rei D. Fernando que o deixou a sua Esposa. Esta Senhora vendeu-o à Senhora Condessa de Penha Longa, passando por morte desta para seu sobrinho e herdeiro o actual Visconde dos Olivais, meu velho amigo e também avó dalguns dos meus netos. Actualmente o camarote grande está dividido em dois pequenos. (voltar)
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