O LEVIATÃ, DE HOBBES
CAPÍTULO XIX
das
diversas espécies de governo por instituição
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A diferença entre os governos consiste na diferença do soberano, ou pessoa representante de todos os membros da multidão. Dado que a soberania ou reside em um homem ou em uma assembleia de mais de um, e que em tal assembleia ou todos têm o direito de participar, ou nem todos, mas apenas certos homens distinguidos dos restantes, toma-se evidente que só pode haver três espécies de governo. Porque o representante é necessariamente um homem ou mais de um, e caso seja mais de um a assembleia será de todos ou apenas de uma parte. Quando o representante é um só homem, o governo chama-se uma monarquia. Quando é uma assembleia de todos os que se uniram, é uma democracia, ou governo popular. Quando é uma assembleia apenas de uma parte, chama-se-lhe uma aristocracia. Não pode haver outras espécies de governo, porque o poder soberano inteiro (que já mostrei ser indivisível) tem que pertencer a um ou mais homens, ou a todos.
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Apenas três as formas do Estado |
Encontramos outros nomes de espécies de governo, como tirania e
oligarquia, nos livros de história e de política. Mas não se trata de nomes
de outras formas de governo, e sim das mesmas formas quando são detestadas.
Pois os que estão descontentes com uma monarquia chamam-lhe tirania e aqueles
a quem desagrada uma aristocracia chamam-lhe oligarquia. Do mesmo modo, os que
se sentem prejudicados por uma democracia chamam-lhe anarquia (o que significa
ausência de governo), embora, creio eu, ninguém pense que a ausência de
governo é uma nova espécie de governo. Pela mesma razão, também não devem
as pessoas pensar que o governo é de uma espécie quando gostam dele, e de
uma espécie diferente quando o detestam ou quando são oprimidos pelos
governantes.
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Tirania e oligarquia apenas nomes diferentes
da monarquia e da aristocracia |
É evidente que os homens que se encontrarem numa situação de absoluta
liberdade poderão, se lhes aprouver, conferir a um só homem a autoridade de
representar todos eles, ou então conferir essa autoridade a qualquer
assembleia. Poderão portanto, se tal considerarem conveniente, submeter-se a
um monarca de maneira tão absoluta como a qualquer outro representante.
Quando já estiver instituído um poder soberano, portanto, só será possível
haver outro representante das mesmas pessoas para determinados fins
particulares, definidos pelo próprio soberano. Caso contrário,
instituir-se-iam dois soberanos, tendo cada um a sua pessoa representada por
dois actores, os quais se oporiam um ao outro, e assim necessariamente
dividiriam esse poder que, para que o povo possa viver em paz, tem que ser
indivisível. Assim, a multidão seria levada a uma situação de guerra,
contrariamente ao fim para que é instituída toda e qualquer soberania.
Portanto, do mesmo modo que seria absurdo supor que uma assembleia soberana,
ao convidar o povo dos seus domínios a enviar os seus deputados, com poder
para dar a conhecer as suas opiniões e desejos, estaria assim considerando
esses deputados, e não os membros da própria assembleia, como absolutos
representantes do povo, assim também seria absurdo supor o mesmo de um
monarca. E não compreendo como uma verdade tão evidente pode ultimamente ter
sido tão pouco reconhecida. Como é possível que numa monarquia aquele que
detém a soberania através de uma descendência de seiscentos anos, que é o
único a ser chamado soberano, que recebe de todos os seus súbditos o título
de Majestade, e é inquestionavelmente considerado por todos como seu rei,
apesar de tudo isso jamais seja considerado seu representante, sendo esta
palavra tomada, sem que ninguém o contradiga, como o título daqueles que,
por ordem do rei, foram designados pelo povo para apresentar as suas petições
e (caso orei o permitisse) para exprimir as suas opiniões? Isto pode servir
de advertência para aqueles que seio os verdadeiros e absolutos
representantes do povo, a fim de ensinarem a todos a natureza do seu cargo, e
tomarem cuidado com a maneira como admitem a existência de qualquer outra
representação geral, em qualquer ocasião que seja, se pretenderem
corresponder à confiança neles depositada.
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Os representantes subordinados são
perigosos |
A diferença entre essas três espécies
de governo não reside numa diferença de poder, mas numa diferença de
conveniência, isto é, de capacidade para garantir a paz e a segurança do
povo, fim para o qual foram instituídas. Comparando a monarquia com as
outras duas, impõem-se várias observações. Em primeiro lugar, seja quem
for que seja portador do povo, ou membro da assembleia que dela é
portadora, é também portador da sua própria pessoa natural. Embora tenha
o cuidado, na sua pessoa política, de promover o interesse comum, terá
mais ainda, ou não terá menos cuidado de promover o seu próprio bem
pessoal, assim como o da sua família, seus parentes e amigos. E, na maior
parte dos casos, se por acaso houver conflito entre o interesse público e o
interesse pessoal preferirá o interesse pessoal, pois em geral as paixões
humanas são mais fortes do que a razão. De onde se segue que, quanto mais
intimamente unidos estiverem o interesse público e o interesse pessoal,
mais se beneficiará o interesse público. Ora, na monarquia o interesse
pessoal é o mesmo que o interesse público. A riqueza, o poder e a honra de
um monarca provêm unicamente da riqueza, da força e da reputação dos
seus súbditos. Porque nenhum rei pode ser rico ou glorioso, ou pode ter
segurança, se acaso os seus súbditos forem pobres, ou desprezíveis, ou
demasiado fracos, por carência ou dissensão, para manter uma guerra contra
os seus inimigos. Ao passo que numa democracia ou numa aristocracia a
propriedade pública contribui menos para a fortuna pessoal de alguém que
seja corrupto ou ambicioso do que, muitas vezes, uma decisão pérfida, uma
acção traiçoeira ou uma guerra civil. Em segundo lugar, um monarca recebe
conselhos de quem lhe apraz, e quando e onde lhe apraz. Em consequência,
tem a possibilidade de ouvir as pessoas versadas na matéria sobre a qual
está deliberando, seja qual for a categoria ou a qualidade dessas pessoas,
e com a antecedência que quiser em relação ao momento da acção, assim
como com o segredo que quiser. Pelo contrário, quando uma assembleia
soberana precisa de conselhos, só são admitidas as pessoas que desde início
a tal têm direito, as quais na sua maioria são mais versadas na aquisição
de riquezas do que na de conhecimentos, e darão o seu conselho em longos
discursos, que podem levar os homens à acção, e geralmente o fazem, mas não
contribuem para orientar essa acção. Porque o entendimento, submetido à
chama das paixões, jamais é iluminado, mas sempre ofuscado. E nunca há
lugar nem tempo onde uma assembleia possa receber conselhos em sigilo,
devido à sua própria multidão. Em terceiro lugar, as resoluções de
um monarca estão sujeitas a uma única inconstância, que é a da natureza
humana, ao passo que nas assembleias, além da natureza, verifica-se a
inconstância do número. Porque a ausência de uns poucos, que poderiam
manter firme a resolução, uma vez tomada (ausência que pode ocorrer por
segurança, por negligência ou por impedimentos pessoais), ou a diligente
aparição de uns poucos da opinião contrária, podem desfazer hoje tudo o
que ontem ficou decidido. Em quinto lugar, numa monarquia existe
o inconveniente de qualquer súbdito poder ser, pelo poder de um só homem,
e com o fim de enriquecer um favorito ou um adulador, privado de tudo quanto
possui. O que, confesso é um grande e inevitável inconveniente. Mas o
mesmo pode também acontecer quando o poder soberano reside numa assembleia,
pois o seu poder é o mesmo, e os seus membros encontram-se tão sujeitos
aos maus conselhos, ou a serem seduzidos por oradores, como um monarca por
aduladores; e, tornando-se aduladores uns dos outros, servem mutuamente à
cobiça e à ambição uns dos outros..E enquanto os favoritos de um monarca
são poucos, e ele tem para favorecer apenas os seus parentes, os favoritos
de uma assembleia são muitos, e os parentes são em muito maior número do
que os de um monarca. Além do mais, não há favorito de um monarca que não
seja tão capaz de ajudar os seus amigos como de prejudicar os seus
inimigos, ao passo que os oradores, ou seja, os favoritos das assembleias
soberanas, embora possuam grande poder para prejudicar, pouco têm para
ajudar. Porque acusar exige menos eloquência (assim é a natureza do homem)
do que desculpar, e a condenação parece-se mais com a justiça do que com
a absolvição: Em sexto lugar, há na monarquia o
inconveniente de ser possível a soberania ser herdada por uma criança, ou
por alguém incapaz de distinguir entre o bem e o mal. O inconveniente
reside no facto de ser necessário que o uso do poder fique nas mãos de um
outro homem, ou nas de uma assembleia, que deverá governar pelo seu direito
e em seu nome, como curador e protector da sua pessoa e autoridade. Mas
dizer que é inconveniente pôr o uso do poder soberano nas mãos de um
homem ou de uma assembleia é dizer que todo o governo é mais inconveniente
do que a confusão e a guerra civil. E todo o perigo que se pode pretender
existir só virá, portanto, das lutas entre aqueles que, por causa de um
cargo de tamanha honra e proveito, se tornarão competidores. Para ver
claramente que este inconveniente não se deve à forma de governo a que
chamamos monarquia, basta lembrar que o monarca anterior pode indicar o
tutor do infante seu sucessor, quer expressamente por testamento, quer
tacitamente, não se opondo ao costume que neste caso é normal. Os
inconvenientes que se poderão verificar não deverão ser atribuídos a
monarquia, nessa circunstância, mas à ambição e injustiça dos súbditos,
que são as mesmas em todas as espécies de governo onde o povo não é
competentemente instruído quanto aos seus deveres e quanto aos direitos da
soberania. No caso de o monarca antecedente não haver tomado quaisquer
medidas quanto a essa tutoria, basta a lei de natureza para fornecer uma
regra suficiente: que o tutor seja aquele que por natureza tenha maior
interesse na preservação da autoridade do infante, e a quem menos
beneficie a sua morte, ou a diminuição dessa autoridade. Dado que por
natureza todo o homem procura o seu próprio interesse e benefício, colocar
o infante nas mãos de quem possa beneficiar-se com a sua destruição ou
prejuízo não é tutoria, mas traição. Portanto, se forem tomadas
suficientes precauções contra qualquer justa querela a respeito do governo
de um menor de idade, se surgir qualquer disputa que venha perturbar a
tranquilidade pública, ela não deve ser atribuída à forma da monarquia,
mas à ambição dos súbditos e à ignorância do seu dever. Por outro
lado, não há qualquer grande Estado cuja soberania resida numa grande
assembleia que não se encontre, quanto às consultas da paz e da guerra e
quanto à feitura das leis, na mesma situação de um governo pertencente a
uma criança. Porque do mesmo modo que à criança falta julgamento para
discordar dos conselhos que lhe dão, precisando portanto de pedir a opinião
daquele ou daqueles a quem foi confiada, assim também a uma assembleia
falta liberdade para discordar do conselho da maioria, seja ele bom ou mau.
E do mesmo modo que uma criança tem necessidade de um tutor ou protector,
para preservar a sua pessoa e autoridade, assim também (nos grandes
Estados) a soberana assembleia, por ocasião de todos os grandes perigos e
perturbações, tem necessidade de custodes libertatis, ou seja, de
ditadores e protectores da sua autoridade. Que são o equivalente de
monarcas temporários, aos quais ela pode entregar, por um tempo
determinado, o completo exercício do seu poder. E tem acontecido mais
frequentemente ela ser por eles privada do poder (ao fim desse tempo) do que
os infantes serem privados do mesmo pelos seus protectores, regentes ou
quaisquer outros tutores. limitados também não são soberanos,
mas ministros dos que têm o poder soberano. E aquelas províncias que se
encontram Submetidas a uma democracia ou aristocracia de um outro Estado não
são democrática ou aristocraticamente governadas, e sim monarquicamente. Em primeiro lugar, com respeito ao
monarca electivo, cujo poder está limitado à duração da sua vida, como
acontece actualmente em muitas regiões da cristandade, ou a certos anos ou
meses, como no caso do poder dos ditadores entre os romanos, se ele tiver o
direito de designar o seu sucessor não será mais electivo, mas hereditário.
Mas se ele não tiver o direito de escolher ó seu sucessor, nesse caso
haverá algum outro homem, ou assembleia, que após a sua morte poderá
indicar um novo monarca, pois caso contrário o Estado morreria e se
dissolveria com ele, voltando à condição de guerra. Se for sabido quem
terá o poder de conceder a soberania após a sua morte, será também
sabido que já antes a soberania lhe pertencia. Porque ninguém tem o
direito de dar aquilo que não tem o direito de possuir, e guardar para si
mesmo se assim lhe aprouver. E se não houver ninguém com o poder de
conceder a soberania, após a morte daquele que foi eleito em primeiro
lugar, nesse caso este tem o poder, ou melhor, é obrigado pela lei de
natureza a garantir, mediante a escolha do seu sucessor, que aqueles que lhe
confiaram o governo não voltem a cair na miserável condição de guerra
civil. Consequentemente, ele foi, quando eleito, designado como soberano
absoluto. Em segundo lugar, o rei cujo poder é
limitado não é superior àquele ou aqueles que têm o direito de o
limitar. E aquele que não é superior não é supremo, isto é, não é
soberano. Portanto, a soberania fica sempre naquela assembleia que tem o
direito de o limitar, e em consequência o governo não é monarquia, mas
democracia ou aristocracia. Conforme acontecia antigamente em Esparta, onde
os reis tinham o privilégio de comandar os seus exércitos, mas a soberania
residia nos éforos.
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Comparação da monarquia com as soberanas
assembleias |
Dado que a matéria de todas estas
formas de governo é mortal, de modo tal que não apenas os monarcas morrem,
mas também assembleias inteiras, é necessário para a conservação da paz
entre os homens que, do mesmo modo que foram tomadas medidas para a criação
de um homem artificial, também sejam tomadas medidas para uma eternidade
artificial da vida. Sem a qual os homens que são governados por uma
assembleia voltarão à condição de guerra em cada geração, e com os que
são governados por um só homem o mesmo acontecerá assim que morrer o seu
governante. Esta eternidade artificial é o que se chama direito de sucessão. Não existe qualquer forma perfeita de
governo em que a decisão da sucessão não se encontre nas mãos do próprio
soberano. Porque se esse direito pertencer a qualquer outro homem, ou a
qualquer assembleia particular, ele pertence a um súbdito, e pode ser tomado
pelo soberano a seu bel-prazer, e por consequência o direito pertence a ele
próprio. Se o direito não pertencer a nenhuma pessoa em especial, e estiver
na dependência de uma nova escolha, neste caso o Estado encontra-se
dissolvido, e o direito pertence a quem dele se puder apoderar,
contrariamente à intenção dos que instituíram o Estado, tendo em vista
uma segurança perpétua e não apenas temporária. Numa democracia é impossível que a
assembleia inteira venha a faltar, a não ser que falte também a multidão
que deverá ser governada. Portanto, as questões relativas ao direito de
sucessão não podem ter lugar algum nessa forma de governo.
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O direito de sucessão |
Com respeito ao direito de sucessão, a maior dificuldade ocorre no caso
da monarquia. E a dificuldade surge do facto de, à primeira vista, não ser
evidente quem deve designar o sucessor, nem muitas vezes quem foi que ele
designou. Porque em ambos estes casos é necessária maior precisão de
raciocínio do que geralmente se tem o costume de aplicar. Quanto ao problema
de saber quem deve designar o sucessor de um monarca que é detentor da sobe
soberana autoridade, ou seja, quem
deve determinar o direito de herança (dado que os monarcas electivos não têm
a propriedade, mas apenas o uso do poder soberano), deve-se admitir que ou
aquele que está no poder tem o direito de decidir a sucessão ou esse
direito volta para a multidão dissolvida. Porque a morte daquele que tem a
propriedade do poder soberano deixa a multidão destituída de qualquer
soberano isto é, sem qualquer representante no qual possa ser unida e
tomar-se capaz de praticar qualquer espécie de acção. Ela fica, portanto,
incapaz de proceder à eleição de um novo monarca, pois cada um tem igual
direito de se submeter a quem considerar mais capaz de o proteger, ou então,
sé puder, de se proteger a si mesmo com a sua própria espada, o que
equivale a um regresso à confusão e à condição de guerra de todos os
homens contra todos os homens, contrariamente ao fim para que a monarquia foi
instituída. Toma-se assim evidente que, pela instituição de uma monarquia,
a escolha do sucessor é sempre deixada ao juízo e vontade do possessor
actual.
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O monarca actual tem o direito de dispor da
sucessão |
Considera-se que há palavras expressas ou testamento quando tal é
declarado em vida do soberano, viva coce ou por escrito, como os primeiros
imperadores de Roma declaravam quem deviam ser os seus herdeiros. Porque a
palavra «herdeiro» não significa por si mesma os filhos ou parentes mais
próximos de um homem, mas seja quem for que de qualquer modo este último
declarar que deverá suceder-lhe nas suas propriedades. Portanto, se um
monarca declarar expressamente que uma determinada pessoa deverá ser sua
herdeira, quer oralmente quer por escrito, nesse caso essa pessoa será,
imediatamente após o falecimento do seu predecessor, investida no direito de
ser monarca.
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A sucessão passa por palavras expressas |
Mas na ausência de testamento e palavras expressas é preciso guiar-se
por outros sinais naturais da vontade, um dos quais é o costume. Portanto,
quando o costume é que o parente mais próximo seja o sucessor absoluto,
também nesse caso é o parente mais próximo quem tem direito à sucessão,
visto que, se fosse diferente a vontade do que detinha o poder, facilmente
ele poderia assim ter declarado quando em vida. De maneira semelhante, quando
o costume é que o sucessor seja o parente masculino mais próximo, também
nesse caso o direito de sucessão pertence ao parente masculino mais próximo,
pela mesma razão. E o mesmo seria se o costume fosse dar preferência ao
parente feminino. Porque seja qual for o costume que um homem tenha a
possibilidade de controlar através de uma palavra, e não o faz, está-se
perante um sinal natural de que ele quer que esse costume seja aplicado.
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Ou por não controlar um costume; |
Mas quando não há costume ou testamento anterior, deve-se entender,
primeiro, que a vontade do monarca é que o governo continue sendo monárquico,
dado que aprovou essa forma de governo em si mesmo. Segundo, que o seu próprio
filho, homem ou mulher, seja preferido a qualquer outro, dado que se supõe
que os homens tendem por natureza a favorecer mais os seus próprios filhos
do que os filhos dos outros homens; e, de entre os seus filhos, mais os do
sexo masculino que os do feminino, porque os homens são naturalmente mais
capazes do que as mulheres para as acções que implicam esforço e perigo.
Terceiro, caso falte a sua própria descendência, mais um irmão do que um
estranho, e mesmo assim o de sangue mais próximo de preferência ao mais
remoto, dado que se supõe que o parente mais chegado é também o mais
chegado ao afecto, e é evidente que sempre se recebe, por reflexo, mais
honra devido à grandeza do parente mais próximo.
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Ou pela presunção de afeição natural |
Mas sendo legítimo que um monarca decida a sua sucessão por palavras de
contrato ou testamento, alguém poderá talvez objectar um grave
inconveniente: que ele pode vender ou dar a um estrangeiro o seu direito de
governar. O que, dado que os estrangeiros (isto é, os homens que não estão
habituados a viver sob o mesmo governo e não falam a mesma língua)
geralmente dão pouco valor aos outros, pode redundar na opressão dos súbditos.
O que é sem dúvida um grande inconveniente, mas que não deriva
necessariamente da sujeição ao governo de um estrangeiro, e sim da falta de
habilidade dos governantes que ignoram as verdadeiras regras da política.
Assim, os romanos, depois de terem subjugado muitas nações, a fim de
tornarem o seu governo mais aceitável, procuraram eliminar essa causa de
ressentimento, tanto quanto consideraram necessário, concedendo às vezes a
nações inteiras, e às vezes aos homens mais importantes das nações que
conquistaram, não apenas os privilégios, mas também o nome de romanos. E a
muitos deles deram um lugar no Senado, assim como cargos públicos, inclusive
na cidade de Roma. E era isto que o nosso muito sábio monarca, o rei Jaime,
visava ao esforçar-se por realizar a união dos dois domínios da Inglaterra
e da Escócia. Se tal tivesse conseguido, é muito provável que tivesse
evitado as guerras civis, que levaram à miséria ambos esses reinos, na
situação actual. Portanto, não constitui injúria feita ao povo que um
monarca decida por testamento a sua sucessão apesar de que, por culpa de
muitos príncipes, tal haja sido às vezes considerado inconveniente. Em
favor da legitimidade de uma tal decisão há também um outro argumento: que
sejam quais forem os inconvenientes que possam derivar da entrega de um reino
a um estrangeiro, o mesmo pode também acontecer devido ao casamento com um
estrangeiro, dado que o direito de sucessão pode acabar por recair nele.
Todavia, isto é considerado legítimo por todos os homens.
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Dispor da sucessão mesmo de um rei de outra
nação não é ilegitimo |
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