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O Faceira
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Chut! Entrem devagarinho.
Tenho o prazer de lhes apresentar o elegante
português de 1720. É aquilo que ali está, assentado ao toucador vestido dum
pelicé branco com mais pregas que um roquete de cónego, arrepiando
se, pintando se, polvilhando-se fazendo momos e trejeitos diante dum
espelhinho de espeque, e cantando em falsete, que afidalgava muito, os
últimos versos da comédia:
Son amantes y guapos
Los portugueses...
É aquilo. Levantou se agora da cama, espevitou
as janelas das vizinhas, e está a preparar-se para deslumbrara cidade. É o
homem da moda, o namorador de profissão, o irresistível, o fatal. Nunca saiu
de Lisboa. Mais lisboeta, só uma alface; mais ribeirinho, só um bote da
Trafaria. Mas por que mandou vir de Paris, como o rei uma cabeleira de
mostachos que lhe custou dez moedas, já todo ele se pica de vestir
frança,
de falar frança, de namorar frança. Chamam lhe uns o turina, outros o
serolico; agora chasquinho de peruca, logo narciso à
francesa; mas o seu
verdadeiro nome, o nome que ele ambiciona, o nome por que ele se mata, o
título que vale para ele uma costela de oiro de fidalguia, é faceira, apenas
faceira, faceira tout court. Ser faceira, no primeiro quartel do século 18,
é a aspiração das aspirações. O faceira realiza o supra-sumo, a
quinta-essência, o tríplice-extracto da elegância portuguesa de 1700. É o
Brummel da Rua Nova dos Ferros. É o pschutteux do tempo de D. João V. Não
tem definição É uma caricatura. Vejam como ele trejeita, como se acarranca,
como faz boquinhas de jarro diante do espelho. Está - ele próprio o diz no
seu calão - a compor a farçola. Pintou-se, tomou o seu bochecho de água de
rosas; tocou os dentes com verniz; arrepiou os cabelos de susto, mais
eriçados que se visse lobo, e vai encaixar a cabeleira postiça, a sua
magnífica cabeleira de França, encaracolada como um bote de berbigões,
riçada, frisada e polvilhada pelo cabeleireiro dos faceiras, - o ilustre
Pedro António, dos Remolares. Reparem como ele puxa de mergulho pelo
bor-de-fronte da peruca, e lhe faz com a faca o recorte dos pós, e a polvilha
de refresco core a sua borla de arminhos, e sacode a cabeça, contente como um
macho de liteira fidalga, volteando-se, trasvolteando-se, mirando de esguelha,
olhando de cara, cantando sempre, em voz de tiple, o estribilho querido dos
faceiras:
Son amantes y guapos Los portugueses; Pero son mas que vanos Algunas
veces...
O senhor rei D. João V tinha vindo estrangeirar a corte. Decretara
as cabeleiras de França, as camisas de França, as mulheres de França. O
faceira quis ser, antes de tudo, galante como um francês. Viu na Gazeta de
Lisboa que Monsieur de Ville Neuve, à Cordoaria Velha, dava lições de
francês aos faceiras, - e daí a pouco, com olhos dormidos e boca de
melancolia, afagando distraído os mostachos da peruca, a espadinha
caranguejeira a luzir entre as pernas, já se cuidou francês porque soube
dizer allons!, mon Dieu!, ma charmante!, porque um mestre de dança lhe
ensinou duas cortesias com trocadilhos de pernas, e porque o alfaiate lhe
disse, ao receber o cruzado da molhadura, que a casaca de Sua Senhoria tinha
sido cortada pelos moldes que D. Luís da Cunha mandara de Londres ao rei.
Todo ele queria alar-se, adelgaçar-se, aframengar-se, fazer, segundo a sua
própria linguagem, cara de quem-tudo-lhe fede, para que cuidasse o bairro
inteiro, ao vê-lo bamboleado pela Rua Nova e pela Calcetaria, que Sua Mercê
chegara naquela hora de França. Mas uma hereditariedade pé-de-boi de frades
patudos e de fidalgos arrieiros lesava-lhe corno chumbo em cala meneio, em
cada passo, em cada gesto; um sangue crasso de inquisidor empastava-se-lhe nas
veias, e o faceira, estrangeirado, afinado, amaneirado à força - dava a
impressão dum elefante dançando um minuete. Deitara-se na Madragoa, -
acordara em Versalhes. 0 seu ridículo provinha do salto brusco, da
transição violenta da velha moda chamorra para a nova moda francesa. Era
risível - por que era um parvenu. Polido à bruta, civilizado de cor, cuidava
que para se ser frança era preciso em vez de andar, dançar; em vez de falar,
ganir; e lá ia pelas ruas, aos pulos como uma pega, o chapéu no sovaco, o
quitó doirado entre as pernas, perseguido dos michos, dos garotos, dos
mochilas negros, dos mariolas de capote, que riam à socapa, e o mimavam, e o
desesperavam, e lhe guinchavam das esquinas:
- Serolico, berolico, quem te deu
tamanho bico?
Vejam a graça com que ele se levanta agora da tripeça do
toucador, e tira o pelicé, - sempre com o Credo na boca, não desmanche algum
bucre da cabeleira ou algum melindre da pintura. Ata a sua gravatinha de
garrote, à corsária, com volta de renda na ponta; ajusta, sobre os bofes da
camisa, a vestia de cetim cor de pensamento: tira das costas duma cadeira de
bacalhaus a sua casaquinha de arregaçar, de riço verde, com algibeiras de
pastrano e mangas curtis armadas em arame; enverga-a em três tempos e dois
suspiros: primeiro um braço, depois o outro, em seguida uma upa e dois ais
para ajustar a pescoceira; e, num abrir e fechar de olhos, aí o tem, com
peito de lombriga e pés de perdiz, a bailar diante do espelho como o boneco
do carro dos tanoeiros, mirando-se, remirando-se, dando trincos com os dedos e
estalinhos com a língua, fazendo cortesias a todos os móveis e a si mesmo,
falando à toa para encrespar a boca e ensaiar o falsete:
- Mon Dieu! Mon Dieu!
Sempre foi el-rei para Salvaterra?
Mas o momento supremo vem agora. É o
momento do lenço, do chapéu e do quito. O faceira sai para namorar; e é com
o quito, com o chapéu e com o lenço que faceiras e bandalhos, casquilhos e
peraltas namoram nos serões e na rua, nos conventos e no Paço. São, diz o
ritual dos bandarras, os três alcoviteiros das distâncias, as três iscas da
namoratória. São os paramentos dessa grande missa de amor que se cantou em
Portugal durante todo o século XVIII. São as três grandes armas do faceira
na conquista das Filis e das Nises, das Tisbes e das Clóris, - caídas, como
cordeiros de sacrifício, diante dum chapéu que abana ou dum lenço que voa,
dum olho que pisca ou dum espadim que reluz. Vejam a devoção com que ele
toma do cabide o seu chapéu de três cantos e o traz na mão em jeito de
bacia das almas: reparem no requebro com que colhe o quitó de nascer, esse
pequenino quitó que é mais uma jóia do que uma espada, e o encaixa num
boldrié que lembra um arreio de mula de coche; não percam a delícia com que
ele aspira o seu lenço fino de holanda e o mete, como um floco de neve, no
punho dourado do espadim. Aquele lenço aquela espada, aquele chapéu, são a
voz dos seus anseios, a eloquência dos gestos. Tem-nos consigo: ilumina-se,
resplandece. Está completo o faceira. Está pronta Sua Mercê. É gritar pelo
negrinho da casa que lhe abra a porta, e abalar escada abaixo, em pé de
dança e ar de desprezilho, como um macaco que descesse les trois marches de
marbre rose. É o amor que o chama. É o vento que o leva. Pensa ele: onde
haverá por toda Lisboa quem lhe resista, frança ou chula, dama ou regateira
- das casas do Mocambo às hortas de Valverde, de Cata-que-farás aos arcos do
Rossio? E enquanto, rua adiante, aos pulinhos, a sua casaca de riço verde
reluz ao sol como uma chicória enorme, um papagaio brejeiro grita-lhe da
janela:
- Serolico, berolico, quem te deu tamanho bico?
Júlio Dantas
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