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O Faceira bufarinheiro |
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É
dia de procissão. O sol esplende. O alecrim e o mirto juncam as ruas.
Armam‑se de damasco todas as casas. Todas as janelas se abrem. Não fica
fechada uma rótula, uma adufa, um postigo. Não há fresta, nem lumieira, nem
gelosia, onde não espreite, não fareje, não assome, toucada de amarelo,
mosqueada de sinais, pingada de jóias., uma cabeça de mulher. A Lisboa de
todo o ano, silenciosa, embiocada, aferrolhada, morta, – revive, renasce,
cascalha de risos, empoeira-se de oiro, pinta-se de colchas da Índia, abre,
floresce, desabrocha, como uma grande roseira, em milhares de caras bonitas.
É a aleluia das janelas. É o Lausperene da formosura. Nesse dia, o faceira,
o casquilho, o farsola namorador está como o peixe na água.
Espaneja‑se, arregala-se, sorri. Pode passar revista a todas as
“meninas bandarras” da cidade. Pode, à vontade, «namorar de bufarinheiro».
O
que era, na Lisboa da primeira metade do século XVIII, o “namoro de
bufarinheiro”? Um grande passeio solene pela cidade, com acompanhamento de
piscações de olho, de mordeduras de beiço, de cortesias “d'aba
beijada”. Chamavam-lhe assim, por que o faceira namorador ia pelo meio da
rua, de carinha no ar e chapéu na mão, olhando as janelas “como um
bufarinheiro que apregoa”. Não era, designadamente, o namoro para uma ou
para outra, para esta ou para aquela; era o galanteio para todas, – era um
jubileu de amor. Em dia de procissão não havia “frança” bonitinha que não
recebesse, atiradas da rua como uma flor, a sua mordedura de beiço, o seu
olho piscado, a sua cortesia em Gloria
Patri. Não ficava faceira, não ficava galante, por mais jarra, que não
apanhasse também à lambugem do chão, caídas dalguma janela como fruta
madura, uma mirada de olhos, um trejeito de boca, um aceno de leque. Se
pegava, era barro; se não pegava, era graça. E o “bufarinheiro” lá ia,
aos pulinhos, de nariz no ar, a beber janelas, a engolir cortinas, olhando
agora à direita, mirando logo à esquerda, entre um enxame de faceirinhas com
gravata de garrote e chapéu “à Anastácia”, que namoravam como ele, que
bufarinhavam como ele, que olhavam, que cortejavam, que rompiam em ais de
espanto para estes olhos, para aquele toucado, para aquela mãozinha, sempre
em tiple, sempre em falsete:
-
Ai, como é linda!
-
Ai, o prazer de orelhas furadas
-
Ai, a boquinha de “ai Jesus”!
-
Madamita, me alegro!
-
Olha o desdénsinho!
-
O melindre!
E
elas, vendo-se adoradas, sentindo-se comidas com os olhos, sorriam lá de
cima, faziam momos, olhavam em alvo, brincavam com o broche da testa,
escondiam o focinhito, trejeiteavam com o leque, – ou então, mais buliçosas,
debruçavam-se, espeitoravam-se, penduravam-se das colchas vermelhas,
cochichavam, riam de esfusiote, estendiam o abanico, apontavam ora este ora
aquele, ora um ora outro, o dos “braços de arame” e o da “casaca de
mosquito”, o do “chapéu de assobio” e o dos “calções de mamar”, -
e doidas, risonhas, bêbedas de vento, afogueadas de sol, tontas de liberdade,
sem verem que já lá vinha para a Sé o coche doirado do senhor Patriarca,
espreitavam, segredavam, riam das janelas:
-
Ai, mana, aquele casaca!
-
E o outro; como vai frança!
-
Olha aquele dos olhinhos de carocha!
-
Mira, minha mana, o casaquinha de enjoo!
-
Ai, Jesus, a barriga do frade!
-
Chama-se a parteira, mana, que ele já vai para tôda a hora i
E
o povo miúdo, a mafra baixa, que enxameava, que gritava, que tairocava na
areia das ruas, que se esgalgava para as janelas, que pasmava na Rua Nova
diante dos arcos de pedra armados de panos de Arrás, – fregonas,
alfamistas, regateiras, mariolas, fandangos, chocas de manada e cruz-diabos
das funções, ansiosos por ver o senhor rei, e a senhora rainha, e as basílicas,
e as bandeiras dos ofícios flutuando ao vento, e o rei David, de grandes
barbas, a dançar atrás do pálio, – assistia indiferente ao namoro dos
faceiras, deixava-os bufarinhar à vontade, meter bufarinhando ao Arco dos
Pregos, seguir bufarinhando pela Rua Nova, galgar bufarinhando os Ourives do
Ouro, afunilar-se bufarinhando ainda pela rua dos Escudeiros, espadanar,
bufarinhando sempre pelo terreiro do Rossio. Só os garotos e os michos lhes
iam na colada, seguindo os ranchos de faceiras, macaqueando-os, imitando-os na
piscar do olho, no morder do lenço, nas cortesias para as janelas, tão
variadas e tão características do namoro de bufarinheiro, – a cortesia
“de mergulho”, rápida, sacudida, afável; a cortesia em Gloria
Patri, profunda, respeitosa; a cortesia “d'aba-beijada”, pérola das
cortesias, em que o joelho esquerdo se dobrava, o pé direito recuava
escarvando como mula de alquilér, o busto se encolhia em mea-culpa, e, na impossibilidade de beijar na face a bandarrinha
cortejada, se beijava de assobio a aba do chapéu. E enquanto o faceira parava
no Rossio a tomar o vento, fazendo beicinho, arregaçando o quitó, afagando
os mostachos da cabeleira, emborcando-se para os coches, para as seges, para
os florões, para as cadeirinhas que passavam – que a tudo isto obrigava o
namoro bufarinhado – os michos, os negrinhos, os saltarelos, os palmilhas
suadas guinchavam-lhe, cantavam-lhe, ganiam-lhe nas costas um “minuete
maroto”:
Olha o
faceira
Com seu
requeijão,
Vem ao
Rossio
Comê-lo
com pão...
A procissão passava. O sol ardia. Vinha o rei, a pé; os meninos-órfãos a
cavalo; cónegos de mitra que pareciam bispos; monsenhores vermelhos que
lembravam cardeais; o Patriarca dormitando entre flabelos; e no couce do palio
de nove panos, que arfava como uma asa enorme faúlhante de oiro, – as
chacotas, as folias, as danas de farta-velhacos, o Manuel Trapo e os mochatins,
a Marisápoles e Juan Rana, bailando, dessalgando-se, abanando saracoteios,
sapateando fandangos, como se a própria alma do povo fosse, dançando, atrás
daquele palio. O enxame dos jarretas, dos bromas, dos casaquinhas, das maranhôas,
dispersava-se, formigava, bezoava; as bandarras janeleiras, pouco a pouco,
recolhiam-se para almoçar o doce dos seus bofetes, entre o frade confessor e
a mulata dengosa; rescendia mais, depois de pisado, o alecrim das ruas; – e
o faceira, ao fim de três horas de procissão e de bufarinheiro, a cabeça
ourada, a casaca escorrida, os braços de arame amolgados das ombradas, o
pescoço dorido de tanto olhar as janelas, calcorreava para casa, debaixo da
raçada crua do sol, deslumbrado, em êxtase, como se a imagem rósea das onze
mil virgens lhe passasse, revoando, por diante dos olhos.
Nisto,
ao entrar numa viela torta do Bairro Alto, o “França” sente que lhe
repuxam a testa, que lhe arrepiam a nuca; estala-lhe, retesado, o cabelo do
topete; vê passar no chão a sombra de qualquer coisa que voa, – e, quando
leva a mão à cabeça, gritam-lhe de cima
-
Mata a galinhola! Mata a galinhola!
Um
garoto, duma água-furtada, tinha-lhe pescado a cabeleira.
Júlio Dantas
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