Carta de Lázaro Luís de 1563
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Carta de Lázaro Luís de1563, vendo-se a África Ocidental e uma representação do Castelo da Mina, no Golfo da Guiné

 

A Expansão portuguesa no século XV 

Parte 1

 


 Ver o currículo do Autor João Silva de Sousa  

 

Intróito

 

No século XIII, a humanidade não se conhece a si mesma. O Planeta é um conjunto de pequenos universos fechados que desconhecem a maior parte das terras e dos mares.

Sob o ponto de vista cosmográfico, conhecimentos hoje tão banais como a esfericidade da terra eram apenas aceites por uma parte das pessoas mais cultas da época.

Enquanto os Genoveses, desde muito cedo, começaram a abrir rotas no Mediterrâneo para Oriente, outros “Italianos”, os Catalães e os Portugueses começavam a progredir para Ocidente.

Entre 1329 e 1336, nós, quer por iniciativa da Coroa fosse por resolução do almirantado, organizámos uma primeira expedição que atingiu o arquipélago das Canárias, visitando, pelo menos, Lanzarote e Fuerteventura com as pequenas ilhas que as envolviam. As provas deste 1,º movimento em que interviemos estão abundantemente comprovadas, em termos do século em que ocorreram1.

Em aditamento, tenhamos em conta que, em 1345, como forma de protesto contra a concessão de Eugénio VI [1342-1352], D. Afonso IV alegava que2:

“vendo nós que as mencionadas ilhas [crismadas em Fortuna, ou Afortunadas] estavam mais perto de nós que de nenhum outro príncipe, e que éramos nós quem mais facilmente as podia subjugar, demos a este caso a nossa atenção; e desejando pôr em efeito esse cuidado, mandámos gentes nossas com alguns navios para explorarem as condições daquela terra, as quais, tendo chegado às ditas ilhas, tomaram pela força assim homens como animais e outras coisas que, com grande alvoroço, trouxeram a nossos reinos.”3

 

Nova expedição tomou lugar, em 1341, sob as ordens de D. Afonso IV. Foi aos Genoveses que coube o mérito principal. No entanto, estas viagens marcaram o começo da acção oficial dos Portugueses no Mar Oceano.

Ainda antes, e dos princípios da nossa monarquia em diante, foram vários os tipos de vasos de mar que, capitaneados pelos Portugueses, se dirigiam para a actividade piscatória para o Mar do Norte, costas da Escandinávia, muito provavelmente acostando ao Canadá e a América do Norte e, ao Sul, à costa Africana, pelo Atlântico, de Norte a Sul, não esquecendo o Algarve e o Norte de África. Os marinheiros não regressavam com notícias das terras por onde passavam, aportavam, onde pescavam… e o termo “descoberta” não pôde ser usado, com a mesma propriedade, como quando, a partir das Canárias, se regressava com indicações concretas da localização das mesmas, com as descrições das existências e do que era, entretanto, dado ver e descrever ao marinheiro.

De iniciativa estatal ou particular, multiplicam-se as viagens. Até 1443, quem quer que o desejasse podia empreender viagens de pirataria, de comércio, ou de exploração geográfica a Marrocos ou ainda à costa atlântica da África: o “Estado” cobrava o quinto das mercadorias, desde cedo um direito real, inalienável e imprescritível do rei.

Podemos dizer que os principais motivos que inspiraram os dirigentes portugueses (Reis, Príncipes, Nobres, Mercadores) foram o desejo de se apoderarem do ouro da Guiné e a procura de especiarias orientais. Outro facto relevante consistiu em ser Portugal um reino unido durante todo o século XV, livre da guerra civil, na quase totalidade da centúria. Pelo contrário, durante quase todo o século, os demais países europeus ocidentais estavam convulsionados por guerras civis, ou com o estrangeiro, como a luta ainda feroz contra os Mouros, que se verificava em Castela, apenas concluída em 1492, com a tomada do Palácio de Alhambra e do Reino de Granada, e a Guerra dos Cem Anos entre Franceses e Ingleses, abrandadas as dissidências em 1453.

Com a chegada ao Golfo da Guiné, aumentaram as dificuldades de navegação e de contacto com os nativos. Por um lado, havia que aprender os meios de comunicação mais directos, além de nos encontrarmos em presença de civilizações organizadas, de influência muçulmana.

Estas sociedades regulamentadas, armadas de flechas envenenadas e de outras artimanhas, dispunham de diversos meios de defesa e de ataque. O clima inóspito com paisagens exóticas trazia também múltiplas ciladas.

Para nós, a expansão representava a continuação da luta contra os mouros. Saliente-se ainda o facto de Portugal beneficiar de uma situação geográfica que lhe facilitou a experiência marítima, além de estar politicamente unificado com fronteiras definidas há mais de um século e com recursos naturais e humanos para as empresas em vista e que podiam ir do mero reconhecimento à luta acesa, passando pelo comércio consentido.

*

*          *

Em termos globais, Portugal e a Europa estavam no século XV completamente isolados do resto do mundo. Com o decorrer do tempo, saímos desse isolamento e transformámo-nos no motor da expansão europeia.

De facto, todo este processo representou uma transformação na mentalidade ocidental. A Europa medieval encontra-se, no princípio do século XV, dominada pelo princípio da territorialidade e cada centro urbano vive sobre si mesmo.

Apesar dos múltiplos contactos comerciais, com outras áreas económicas, o conhecimento do que se passa nos demais continentes, é quase sempre escasso e incorrecto.

Funcionários régios, embaixadores, peregrinos, mercadores, os estudantes universitários eram os indivíduos que se deslocavam entre os núcleos habitacionais.

A visão do mundo e os hábitos mentais dos habitantes de várias áreas mostravam-se inadequados para compreender as crenças e os modos de vida dos outros.

À medida que as cidades se iam desenvolvendo, do séc. XIII em diante, gera-se uma intensificação progressiva dos contactos entre elas. Aqui, a corte do monarca, os clérigos (sobretudo os cónegos) e os universitários, ainda os mercadores… multiplicam também os contactos entre si. São ligações regulares que se estabelecem através dos comerciantes das cidades aragonesas e das Republicas Italianas com o mundo islâmico e, por intermédio deste, com o mundo oriental e africano.

Contudo, a população campesina e a trabalhadora das cidades, não fazem a mínima ideia do que se passa para além do horizonte das muralhas da sua cidade e mesmo da sua aldeia.

Para o homem europeu prevalece a ideia da compartimentação do mundo, formado a partir do centro, onde o sujeito habita e que só pode atingir um raio limitado, se ele não se deslocar para lá do âmbito territorial dominado pela respectiva comunidade.

O trânsito de peregrinos, clérigos, mercadores e embaixadores permitiu constituir um arsenal de informação que se foi acumulando ao longo de séculos, embora o facto de eles viajarem quase só dentro da Cristandade permitiu compreender por que é que, no final do século XIV, se conhecia ainda tão mal o resto do globo. Os relatos impediram também uma descrição objectiva dos seus costumes, levando, por vezes, a distorções ou interpretações erradas.

A visão limitada e hierática do mundo representou, por vezes, um cenário clerical e teológico que correspondeu a uma tentativa de compreensão global do mundo. Embora a sua fórmula exacta não fosse partilhada por todos os sectores da sociedade medieval, não deixou de considerar-se como extremamente significativa dos pressupostos que presidiam a uma concepção do mundo, tipicamente medieval e que gozava do prestígio do saber clerical, o mais amplo, o mais coerente e o mais respeitado de todos os saberes medievais.

Um exemplo flagrante é a famosa carta de Ebstorf, desenhada em meados do século XIII e guardada, durante séculos, no mosteiro feminino que lhe deu o nome. Trata-se de um exemplo de um mappa-mundi (uma carta geográfica europeia medieval, semelhante ao mapa Hereford, feito por Gervase of Ebstorf, que era possível ser o mesmo que Gervase de Tilbury4. O mapa foi encontrado num convento em Ebstorf, no Norte da Alemanha, em 18435. No centro está Jerusalém e há um texto em volta do mapa, o qual inclui descrições de animais, a criação do mundo, definições de palavras e uma explicação de como este se acha dividido em três partes. O mapa incorpora quer a história pagã, quer bíblica.

Mapa de Ebstorf

Mapa de Ebstorf

Esta carta pode ler-se da seguinte maneira: a área cristã coincide, do ponto de vista clerical europeu, com a área ocupada pela igreja católica, a única a quem Deus confiou um papel salvador nos destinos de toda a humanidade, a única que é protegida por si. Toda esta porção de terra onde reina a verdadeira ordem social, ou seja, onde os homens se sujeitam a uma autoridade legítima, cujo poder vem de Deus e que, através dele, podem procurar a salvação eterna. O seu autor pressupunha a existência de vários deuses, um para cada religião, quando, Deus é uno. A Sua unicidade invocada pelas religiões admite, por isso mesmo, a existência de um só Deus para todo o Universo.

Fora deste espaço, reina o pecado, a desordem social, a subversão, o caos, onde até a própria natureza se encontra também desordenada. Aqui, os homens são cruéis, não cumprem regras, são selvagens, desprovidos de fé encontrando-se fora da sua vida moral. Também neste espaço não dominado pela igreja cristã existem mais animais ferozes do que no espaço civilizado: os monstros aparecem por toda a parte, onde é mais comum desencadearem-se tempestades e cataclismos inesperados.

Neste mapa, encontramos ainda perto das fronteiras da Cristandade, os lugares sagrados da Palestina, santificados pela presença do Salvador.

Apesar da desordem cósmica que prevalece para lá do mundo cristão, Deus preside a tudo o que existe sobre a Terra. Por este facto, a sua figura é apresentada de braços abertos.

Como pode constatar-se ainda no mesmo mapa, o centro do seu corpo está na cidade de Jerusalém, onde se situa o seu sepulcro; a cabeça ocupa o ponto mais afastado do Extremo Oriente, junto ao paraíso terrestre; a mão esquerda está sob o aro oceânico a Norte e a mão direita sob o mesmo aro a Sul.

Os pés mergulham no Oceano Atlântico, para além da Península Ibérica.

A sobreposição da figura de Cristo sobre o orbe terrestre significa que nada do que existe à face da terra lhe é alheio e que tudo acaba por concorrer para a sua glória e para o cumprimento do destino que Ele quer para a humanidade.

Tudo isto se ensina nas escolas monásticas e das catedrais, numa síntese de cultura antiga com a cultura cristã.

Na interpretação destas ideias, associa-se uma visão simultânea do espaço e do tempo, do papel da Igreja na História e da sua implantação no mundo terrestre. Deste modo, considera-se que tudo tem um lugar próprio e uma função determinada na ordem estabelecida por Deus, prevalecendo a visão teológica do mundo.
 

1. Veja-se A. H. de Oliveira Marques, “A Expansão no Atlântico”, in A Expansão Quatrocentista, coord. de A. H. de Oliveira Marques, in Nova História da Expansão Portuguesa, dir. de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Vol. II, Lisboa, Editorial Estampa, 1998, Parte 1. pp.11 e ss. Veja-se p. 36.

2. Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua História, publ. e prefac.  por João Martins da Silva Marques, Vol. I, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1944, doc. n.º 74, pp. 86-88 e n.º 75, pp. 88-90; Monumenta Henricina, dir., organiz. e notas críticas de A. J. Dias Dinis, Vol. I, Coimbra, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960, doc. 97, pp. 231-234.

3. Com efeito, desde então, as ilhas Canárias passaram de mão em mão, ora eram de Portugal, ora de Castela, tendo apenas definitivamente pertencido ao nosso Reino vizinho, com o Tratado de Paz de 1479.

4. Gervase of Tilbury, Otia Imperialia, Oxford, Oxford Medieval Texts, 2002, p. XXXIV. Ver Wikipedia, the free encyclopediae.

5. B. Bildhauer, “Blood, Jews and Monsters”, in The Monstruous Middle-Ages, ed. por B. Bildhauer e R. Mills, Cardiff, 2003, p. 77.

 

 

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