Augusto Fuschini

Augusto Fuschini em 1893

 

 

Augusto Fuschini na Câmara dos Deputados

 

Discurso proferido na Câmara dos Deputados em 17 de janeiro de 1890 após o Ultimato
do governo britânico do dia 11 e a nomeação pelo rei D. Carlos no dia 14 de um novo governo.  

 

 

Augusto Fuschini faz a análise da resposta e da atuação do governo português, após o Ultimato do governo britânico de 11 de janeiro de 1890. E defende, consistentemente, como já defendera anteriormente e defenderá no futuro, que o governo devia ter-se apoiado nas instituições representativas, apelando à população por meio das Cortes e não ao rei por meio do Conselho de Estado.

Para Fuschini, o governo progressista de José Luciano de Castro, no poder desde 1886, devia ter-se apoiado em instituições já aqui apelidadas de democráticas - com alguma razão, já que a aplicação da lei eleitoral de 1884 tinha aberto as eleições ao maior numero de votantes que o país conhecerá até 1975 (cerca de 70%). A democratização da vida política portuguesa, que Fuschini apoiou desde a promulgação, por Fontes Pereira de Melo, da nova lei eleitoral e do 2.º Ato Adicional à Carta Constitucional, realizado em princípios de 1885, será preconizada até ao fim da sua vida política. O que o afastou decididamente do grupo inteletual da chamada Geração de 70, em que pontificavam Oliveira Martins, Eça de Queirós e António Cândido, proponentes de um aumento significativo dos poderes do rei e do governo, como será tentado pôr-se em prática pelo governo de João Franco, a partir de 1906. Para Fuschini, a solução encontrada pelo monarca, de nomear um governo da oposição dirigido por António Serpa Pimentel, o chefe do partido regenerador após a morte de Fontes Pereira de Melo, só iria prejudicar qualquer resposta digna e capaz ao ultraje britânico.

 

 

«O governo transacto ... apenas pensou em o cobrir, na sua responsabilidade moral, com o voto do conselho de Estado. Pois cobria-o melhor, bem melhor, se viesse ao parlamento, e perante os representantes do país, perante o próprio país, em sessão pública, dissesse francamente o que havia e concluísse»

 

 

Senhor presidente, nas crises angustiosas da pátria, é dever do todos os partidos e de todos os homens políticos, qualquer que seja a importância da sua esfera do acção, apresentar ao país sinceramente as suas opiniões e, sobretudo, desenvolver os alvitres, segundo os quais, a estes partidos e a estes homens, parece que podem evitar se futuras dificuldades e perigos.

A câmara compreende, perfeitamente, que um dever de delicadeza, se outro não existisse, me obrigou a não tomar a palavra antes que, na câmara dos dignos pares, falasse o sr. Barjona de Freitas.

Sobre este ilustre estadista quiseram fazer pesar grave acusação; era, pois, justo, que a sua voz eloquente a repelisse, provando a falsidade das asserções.

A câmara ouviu a explicação do sr. Barjona do Freitas; não me cumpre neste momento, pois, senão desenvolver as minhas opiniões e seguir na esteira das ideias apresentadas por s. exa., que são não só as suas pessoais, mas as do partido a que preside. Vou recapitular em breves palavras as opiniões de s. exa.

A declaração de s. exa. foi expressa.

Só fosse consultado em qualquer corporação acerca do ultimato do governo inglês teria respondido condicionalmente, teria aconselhado a cedência condicional. Cederia perante a força; mas com a condição expressa de que os nossos direitos seriam apreciados por alguns dos meios definidos no direito internacional, não excluindo a arbitragem, e no caso da Inglaterra proceder por outra forma, reocuparia, se fosse governo, os pontos, que tivesse sido obrigado a abandonar perante o ultimato. A resposta foi clara e terminante.

Senhor presidente, observo à câmara dos ilustres deputados e ao país, que o conselho de Estado foi consultado sobre um facto, de que não tinha a menor responsabilidade.

É possível, é mesmo provável, que se outro governo, com outros processos de administração colonial, com outro plano de política internacional, tivesse presidido aos destinos do país, é provável, repito, que se não tivesse dado o caso do ultimato.

Observo, pois, à câmara que a consulta se verificou sobre as consequências de actos e factos, de que o ilustre estadista não tinha a menor responsabilidade, factos e actos que, porventura, se não teriam realizado se outra tivesse sido a política internacional do governo português.

Depois disto o sr. Barjona de Freitas dirigiu uma pergunta ao governo, e acrescentou que lhe dava a liberdade de julgar da conveniência de responder ou não, porque unicamente desejava, pela sua parte, como eu desejo igualmente, que ficasse bem expresso nos anais parlamentares, que essa pergunta se fizera, quer o governo respondesse, quer não.

A pergunta foi a seguinte: no caso do governo inglês não aceitar um processo qualquer regular para definir e apreciar os direitos portugueses, no caso de deixar subsistir apenas a força, o governo está resolvido a reocupar os pontos, que abandona agora?

Esta pergunta era perfeitamente lógica. As opiniões manifestadas pelo sr. Barjona de Freitas foram claras. Se as suas ideias predominassem no governo actual, não havia que duvidar. Ou a questão se discute por processos quaisquer regulares, que permitam a sustentação pacífica dos nossos direitos, ou se resolve pela força e, nesse caso, á força responderemos nós com aquela que tivermos.
O governo entendeu nada dever responder. Não posso fazer outra pergunta, e não espero ser mais feliz do que o sr. Barjona de Freitas. Contento-me com o silêncio do governo, salvo o direito que me assiste de, mais tarde, apreciar o plano do governo e a realização dele, em relação ao assunto que se ventila.

Isto posto, resta-me, apenas, no meu dever de deputado da nação portuguesa, apreciar o comportamento do governo transacto, e sobretudo dizer como nós (neste caso, mais rigorosamente, diria eu) entendemos que a questão devia ter sido prevista e as suas consequências, porventura, evitadas.

É hábito meu constante, e sê-lo-á toda a minha vida política, longa ou curta que deva ser, não criticar actos alheios sem definir, claramente, qual teria sido a minha linha de comportamento, se me houvesse cabido a realização dos problemas.

Por outra forma, compreende a câmara, a obra é de pura crítica; ora a crítica, nas graves questões de administração pública, deve preceder de perto a afirmação de princípios e sistemas.

É indispensável que os partidos sejam ou não numerosos, em nome dos seus princípios, e não do número dos seus adeptos, saibam sempre, em todas as condições fáceis ou difíceis da vida do país, afirmar qual seria a regra do seu proceder, se tivessem a responsabilidade do poder.

Senhor presidente, recebido pelo governo português o ultimato do governo inglês, o que lhe cumpria fazer? Não aceitar a imposição do prazo e exigir vinte e quatro horas para responder, declarando ao governo inglês que carecia de consultar o parlamento.

Senhor presidente, sendo Portugal um país parlamentar e estando reunido o parlamento, não devia o governo aceitar o prazo de quatro horas, mas exigir aquele, o menor que fosse, em que pudesse reunir e consultar as câmaras legislativas.

Senhor presidente, quando subo a esta tribuna, ponho de parte qualquer pensamento político, para me entregar unicamente ao exame justo e cientifico das questões, para proceder com o critério mais seguro e elevado, de que posso dispor.

Sinceramente afirmo, pois, que não me parece que uma nação parlamentar por excelência, que tem dado tantos exemplos de bom parlamentarismo, pudesse replicar negativamente a outra nação que pretende, tão legitimamente e em assunto da tamanha gravidade, consultar os corpos legislativos, que aliás estão reunidos.

Não se tratava de iludir o ultimato; apenas, note a câmara, de prorrogar por algumas horas o prazo de resposta, que a própria Inglaterra havia admitido.

Esta exigência pela nossa parte não só era justíssima, mas chamaria sobre nós, no caso de recusa, maior simpatia universal, dando por outro lado força ao governo perante a opinião do país.

Não era, pois, provável, repito, que tão pequena, como justa, condição fosse repelida por uma nação parlamentar; mas se o fosse, eu, como governo, seria intransigente.

Depois o governo tinha, a meu ver, um processo seguro para alcançar a prorrogação do prazo; para isto bastava-lhe a simples declaração de que, no caso de insistência, se demitiria imediatamente. Então a Inglaterra ficaria diante de um país sem governo constituído.

Eis o que, a meu ver, faria um governo sinceramente respeitador das garantias e liberdades parlamentares. Reunidas imediatamente as câmaras, passando por sobre a formalidade da eleição presidencial e diante dos legítimos representantes do país, em sessão publica, o governo poria a questão com a maior serenidade de animo e aguardaria o veredicto nacional.

Senhor presidente, o governo o que fez?

Aceitou o prazo de quatro horas e consultou o conselho de Estado.

O que podia fazer esta corporação nestas condições e apertada pelo prazo de quatro horas? O que podia fazer um punhado de homens, por maior que seja a sua importância e a sua competência? Assumir as graves responsabilidades das consequências, que a rejeição do statu quo ante podia trazer ao país?

Sim! Tomaria alguém a responsabilidade dos factos, que deviam seguir-se à rejeição das condições do ultimato?

Senhor presidente, não me considero nem dos homens mais enérgicos, nem dos mais fracos do meu país, mas diante das dificuldades da vida tenho sempre sentido em mim essa força de reacção, que dá elevado caracter à individualidade humana.

Do íntimo da minha consciência digo e afirmo que, desde que o conselho de Estado foi consultado nestas condições, não podia ter resolvido por maneira diferente.

Resta saber se o voto dele foi a cedência condicional, como acabo de indicar; só assim, foi procedeu regularissimamente e foi tão bom patriota, quanto o podia ser.

Mas por que não procedeu o governo por esta forma? Seria fraqueza, seria timidez, seria erro involuntário?

Não sei; para apreciar os factos são necessários elementos que ainda são desconhecidos; talvez para os apreciar bem seja indispensável ocupar uma daquelas cadeiras, pois só em tal caso se podem conhecer todos os pormenores, desde os documentos escritos até às palavras trocadas entre os agentes diplomáticos estrangeiros e o nosso governo; mas, por timidez, fraqueza, ou erro, não devia nunca o governo ter praticado semelhante acto.

E porque é que o praticou? Porque é que, infelizmente, qualquer governo que ali se sentasse, ou pelo menos a maior parte deles, praticaria acto igual?

Porque não há confiança nas instituições democráticas do país; porque o respeito pelo sistema parlamentar tem sido posto de parte por todos os governos, que se têm sentado naquelas cadeiras.

A um e um, e sucessivamente, têm eles demonstrado que consideram o parlamentarismo em Portugal como verdadeira ficção.
Querem um exemplo frisante, actual, manifesto?

São passados apenas alguns dias sobre esta questão, talvez a mais grave na nossa história parlamentar; discutiu-se apenas o assunto na câmara dos dignos pares; ventilou-se ligeiramente na câmara dos deputados. Três dias são decorridos, o país está em sobressalto, agita-se com violência a opinião... pois estão vazios os bancos dos ministros!

O ministro mais novo, não o menos talentoso, assiste, apenas, a esta sessão; os outros ministros, os mais experientes, o dos negócios estrangeiros, o mais importante neste momento angustioso, quando pesa grave crise sobre o país, estão ausentes, ocupados (quem sabe?) a esta hora em resolver a difícil questão de nomear governadores civis para os diferentes distritos do país.

Eis o que havemos feito do parlamentarismo! Eis como educámos e dirigimos a opinião pública!

Ah! sr. Júlio de Vilhena! Quando a voz eloquente de v. exa. se levantou há dias, nesta casa, e, com amargura, essencialmente patriótica, v. exa. lembrou de que outrora havia apelado para o país, para estabelecermos na nossa África as estações civilizadoras e a sua voz, quase profética, não tinha encontrado eco, v. exa. foi o verdadeiro patriota, porque o patriotismo não se manifesta por simples frases.

Não é patriota quem não fala, em qualquer circunstância, a verdade ao país; não é estadista quem sobre os negócios não possui um plano grave e meditado, quem não segue pertinazmente esse plano, na ideia do prever futuras dificuldades nacionais ou internacionais, e que, dia a dia, momento a momento, não emprega esforços para evitar complicações que, uma vez realizadas, são dificílimas de superar. (Apoiados.)

Não sei se estou de acordo com o ilustre deputado na sua política colonial, mas é certo que as suas estações civilizadoras, como s. exa. as pensou, se se realizassem, nós tínhamos nelas argumento mais valioso, embora valiosos sejam ainda os que temos, para afirmar a nossa soberania na parte da África, aonde a Inglaterra nos contesta!

O país não respondeu ao seu apelo! Porquê? Porque foi imprevidente. O previdente era o ilustre deputado; o patriota foi s. exa., dizendo-lhe hoje a sua falta, para que outras e outras se evitem.

Não condeno por forma alguma as manifestações de um sentimento sincero e digno. Qualquer que seja a manifestação de uma ideia, de um sentimento, quando é justa a ideia, quando é verdadeiro o sentimento, para mim é sempre respeitável.

Aos homens públicos, aos estadistas, aqueles que, como nós, têm a responsabilidade da governação do país, exijo, porém, mais do que a simples manifestação, mais ou menos patriótica, mais ou menos retórica, de um sentimento digno e de uma paixão nobre; a esses peço ideias e planos, pertinácia e tenacidade na realização do que eles entendem que devemos discutir no parlamento e difundir na opinião pública.

É, pois, no respeito pelas instituições parlamentares, na consulta da opinião pública, no estudo das questões e na energia da sustentação dos planos e opiniões, que vejo nos homens públicos o verdadeiro e útil patriotismo. Eis o que infelizmente pouco se pratica.

O norte dos governos, em Portugal, é o Poder Moderador. O governo transacto, progressista, como todos os de outras procedências políticas, sempre com os olhos nesse norte, apenas pensou em o cobrir, na sua responsabilidade moral, com o voto do conselho de Estado. Pois cobria-o melhor, bem melhor, se viesse ao parlamento, e perante os representantes do país, perante o próprio país, em sessão pública, dissesse francamente o que havia e concluísse: 

- tomem os representantes legítimos da nação a responsabilidade da resolução, porque são os únicos que a podem tomar e nós, ministros, estamos prontos a realizar serena, enérgica e imperturbavelmente aquilo que o país, representado pelo parlamento, resolver.

Senhor presidente, se um dia se fizer a história do parlamentarismo em Portugal, de cinquenta anos de vida parlamentar, há-de definir-se entre outras esta causa importante da imperfeição deste regime entre nós.

Em Portugal quase ninguém põe os olhos em baixo, no povo, todos olham para cima, para o rei; parece entre nós ainda vivo o sabeísmo; em regra adoramos o sol que nasce e tudo que luz!

Venha um governo, que saiba bem retemperar-se na opinião do país; que saiba concitá-la, se estiver adormecida ou indiferente; que se sinta sem vontade do lisonjear; que não sacrifique os seus princípios a simples interesses momentâneos; que julgue, e não tenha pejo em o confessar, que a única força do país, a única soberania da nação é a soberania popular; venha esse governo, que há-de subir necessariamente o nível parlamentar, e não havemos de ter o desgosto e a responsabilidade de um ato daquela ordem, sem que nós, representantes do país, pudéssemos dizer uma só palavra, expressar uma simples opinião!

Senhor presidente, não basta estudar em si o facto, vamos a ver se investigámos as origens donde derivou esta ultima atitude bélica da Inglaterra.

Assim apreciaremos a responsabilidade dos erros do governo transacto e dos que o precederam, se erros há e se responsabilidades existem.

Senhor presidente, durante largos anos a política colonial portuguesa, se realmente a frouxa administração colonial, que nós temos sustentado num largo período assim se pode chamar, foi influenciada pela Inglaterra. Digo influenciada, para não dizer, que sobre nós pesou durante largo período o jugo inglês, quer na política nacional, quer na própria política nacional e internacional.

Não discutirei, neste momento, se esta política iniciada há largos anos, há séculos, se esta política inglesa teve razão de ser nalgum período histórico; o que me proponho demonstrar à câmara, é que previsões muito fundadas e factos claríssimos nos indicavam, que tal política se havia tornado inútil, ou, para melhor dizer nociva, para o país.

O último ministério, reconhecendo esta verdade, tentou sacudir este jugo inglês e aproximou-se, quanto lhe foi possível, da Alemanha, quer na política colonial quer na política financeira.

Adversário, como o fui sempre, da política inglesa, este afastamento da Inglaterra pareceu-me um primeiro passo sensato; devo, porém, dizer francamente à câmara, que julguei por outro lado errada a aproximação da nossa política da política alemã.

Foi sempre minha opinião, e continuo a tê-la, que qualquer ligação com a Alemanha seria efémera e perigosa.

Supus sempre, e as minhas previsões não falharam, que, mais cedo ou mais tarde, a Alemanha, se entenderia com a Inglaterra e que essa tal ou qual protecção, amizade se quiserem, que nas questões africanas nos dispensava, seria letra morta.

Não foi necessário muito tempo, para que o facto mais claro, mais evidente, viesse afirmar a todos nós a verdade deste receio. Lembra-se a câmara e o país de que há meses, em Spithead, se juntava uma enorme esquadra inglesa, à qual passou solene revista o neto da Rainha Vitória, o imperador da Alemanha.

Quem tivesse vista para ver e prudência para julgar daquele facto, deveria imediatamente presumir, que um acordo secreto havia ligado as duas coroas para um efeito qualquer de política europeia, talvez, mas a que podia não ser estranho o predomínio colonial na Africa daqueles dois impérios.

Não e desconhecida a ambição daquelas duas potências em relação à aquisição de novas colónias, e como as suas vistas estão de há muito fixadas no sul da África.

De resto, compreende a câmara, esta interpretação, que dou à entrevista da velha imperatriz e do jovem imperador, podia ser por outros argumentos, perfeita e claramente defendida; não a via, senão quem a não quisesse ver.

Ora senhor presidente, as imprevidências pagam-se.

O governo português tinha tal tendência para a grande potência alemã que, francamente, permitiu, o que a meu ver governo algum devia jamais permitir (estou em ocasião de dizer verdades e continuarei a dizê-las, custe o que custar) permitiu, digo, que o capacete de coronel de um corpo alemão pudesse substituir por momentos a coroa real portuguesa, não se lembrando que o capacete do ulano, tão inconvenientemente aceitado por Afonso XII, não tinha salvado a Espanha da questão gravíssima das Carolinas.

Era fácil de prever o resultado do acordo secreto, que em Spithead se manifestou pela maior demonstração espectaculosa de força naval, que a Inglaterra jamais deu aos olhos de qualquer soberano. Não era difícil supor, qual seria a conclusão. O leopardo inglês, que encolhera as garras, enquanto a águia negra da Prússia o vigiava, sentiu-se forte e caiu sobre a presa com a fome de longo jejum.

Era de esperar. E, incúria (sempre incúria do governo!) para lhe aguçar o apetite tinha ainda o mercantilíssimo inglês. O governo incauto, ou confiando muito na simpatia alemã, não viu que, impelindo as tendências dominadoras e absorventes, caracteres da raça inglesa, e arrastando o próprio governo inglês, o egoísmo monstruoso, hoje como sempre, a respeito de Portugal, como da Irlanda, das classes ricas inglesas havia tomado conta do negócio.

O milhão inglês foi mais adiante e não teve pudor, ele e a dinastia, de associar um membro da família reinante a um ato de expoliação!
Factos insignificantes pareciam ser estes, mas um previdente, um estadista que ali se sentar (indicando as cadeiras do poder) deve imediatamente desconfiar de pequenos factos, quando se puser em jogo o egoísmo das classes ricas inglesas.

De resto, senhor presidente, era também para considerar o caso de estar no poder um ministério conservador, presidido por um homem medíocre que se chama Salisbury. Por toda a parte os conservadores são os mesmos e se os há piores, são os ingleses.

Afirmo, quase sem receio de errar, se o velho liberal Gladstone estivesse no poder, o governo inglês não teria praticado um acto de fraqueza, e a imperatriz das Índias não haveria ligado o seu nome ao bando de burgueses capitaneados pelo duque de Fife. (Uma voz: - Apoiado.)


Todavia, as indicações eram claras; o nosso país, que não pode lutar com os colossos de mar e terra, precisa proceder com habilidade.
Há alguém regularmente inteligente, conhecendo a história moderna e contemporânea, a organização política da Europa, o chamado equilíbrio europeu atual, que não saiba que os países pequenos correm grave risco, perigam no seu domínio colonial, se a têm, e até na sua autonomia? Ninguém.

O que devia, pois, ter preparado o governo?

Em primeiro lugar o desenvolvimento das nossas forças terrestres e marítimas, quanto o comportassem os nossos recursos financeiros; mas, certamente, isto não bastava.

Há muito tempo, a meu ver, nós devíamos ter cuidado na organização do exército e da marinha; mas desiludam-se: é impossível atingirmos, isolados, força, que possa resistir a 60 colossos de ferro e a 100000 marinheiros excelentes, que a Inglaterra possui para tripular uma esquadra monstruosa.

Devíamos ter preparado, quanto possível, alianças sólidas, para não ficarmos isolados nesta Europa armada em guerra até aos dentes.
O que fez o governo transacto e os que o precederam? Dormiram sobre os louros de fáceis glórias alcançados na África, não se lembrando que, cessando a acção da Alemanha, havia de vir a revindicta por parte da Inglaterra; e quando viesse nos achava inermes.
(Interrupção.)

Compreendo, perfeitamente, que a certos espíritos perspicazes estas ideias pareçam ou ridiculamente comezinhas ou extraordinárias; não sou, porém, obrigado senão a dizer o que sei e como sei. Responsável pela minha consciência sou-o; pela minha inteligência não o posso ser.

Quando os meus constituintes me entregaram o mandato de deputado disseram-me: 

- responsabilizamos-te absolutamente pelos teus atos, que eles sejam dignos e honrados, e pelas tuas opiniões, que deverão ser sinceras e apresentadas no parlamento com decoro.

O que eles me não disseram foi: que me obrigavam a ser um Tayllerand, um homem de génio; porque a isso não me podia comprometer, principalmente num país, em que quase se nasce financeiro e estadista. (Apoiados.)

Afirmo, pois, no ano da graça de 1890, perante o país: que suponho perigoso o isolamento, em que nos encontramos na Europa; afirmo perante o país que neste isolamento me parece haver perigo para o nosso domínio colonial e até, no caso de conflagração europeia, para a própria autonomia nacional.

Houve tempo em que o direito e a justiça alguma cousa valiam. O direito internacional, essa mesma opinião pública universal, que continha os estados fortes nos limites da justiça, que era a grande força dos fracos, desapareceram desde que Bismarck pronunciou o terrível lema la force prime le droit [a força supera o direito].

O direito internacional tem hoje a sua primeira página escrita pela força das armas, pelos exércitos e pelas esquadras.

Bismarck, embora eu o considere um dos maiores vultos deste século, faz-me, pelas suas ideias e pelos seus processos, a impressão terrível de um grande barão feudal, nascido por engano no princípio do século 19; na sua frase o grande estadista traduziu livremente o grito de Brennus vae victis. Ai, dos vencidos! Ai, dos pequenos!

De resto as alianças não se fazem por simpatias de testas coroadas, ou por simples interesses dinásticos, mas por afinidades de raça, de interesses económicos e políticos.

A Itália cometeu esta falta, que rudemente está pagando. Fujamos-lhe nós com a experiência dos outros e com a história.

Se a Inglaterra é a nossa infiel aliada, a nossa inimiga na África, é preciso encontrar na Europa os inimigos naturais dos ingleses; ora estes inimigos de raça, de história e de interesses políticos e económicos são a França e a Espanha.

A França, émula secular da Inglaterra, ameaçada no Egito; a Espanha com a chaga sempre viva de Gibraltar.

Se os políticos do meu país tivessem sido previdentes (houve um que o foi, o sr. conde de Casal Ribeiro) há muito que se teria preparado, ao menos para a defesa, uma aliança com a França e a Espanha.

Desiluda-se, não direi à câmara, que é muito ilustrada, e tem em si tão grandes talentos, que nunca se iludem, desiluda-se o país, as alianças solidamente estabelecidas, longe de diminuírem a autonomia dos povos, contribuem poderosamente para a fortalecer e garantir.

São as alianças nas relações internacionais dos povos o mesmo, que as associações nas relações sociais dos indivíduos.

A associação engrandece a esfera da ação individual, não diminui a autonomia dos cidadãos.

As alianças bem-feitas são, por outro lado, o mais enérgico impedimento contra a absorção das pequenas nacionalidades; patriotas foram aqueles que em 1865 previram, quase profeticamente o estado atual do equilíbrio europeu e aconselharam ao país, com sinceridade, as alianças dos povos irmãos; não patriotas foram aqueles que contrariaram estas alianças, como representando a união ibérica e, com o hino de 1640, expuseram o país a passar hoje por uma afronta.

Circunstância singular! Por condições particulares das três nações citadas, quem pode ser o forte para a celebração desta aliança? Exactamente o fraco Portugal.

O sr. Barros e Cunha: - Apoiado.

O Orador: - V. exa. deu-me um apoiado isolado, de grande valor. Agradeço-o.

Não estou fazendo um discurso nem mesmo um programa, afasto de mim qualquer responsabilidade futura. Que a câmara me releve, pois, certas reservas nesta parte; um simples golpe de vista sobre o estado da Europa central, o conhecimento, que todos nós temos, da tendência da Espanha para a aliança connosco são suficientes para esclarecer a minha afirmação.

É fácil, e difícil de resolver este problema? Não sei. Não sou ministro, não sou diplomata, não ando nas chancelarias. Fácil ou difícil, tal devia ter sido, tal deve ser o empenho dos nossos governos e o trabalho dos nossos diplomatas.

Sei que estas três potências têm interesses comuns de raça, e até de unidade nacional; porque a França, ameaçada ainda, sangra na Alsácia e Lorena e a Espanha sangra em Gibraltar.

Enquanto a Gibraltar inglesa existir, a Espanha há-de ser inimiga figadal da Inglaterra e nós, convenientemente armados e fortificados, daríamos uma força enorme à Espanha para ela poder, em ocasião oportuna, arrancar aquela joia da mão dos ingleses.

Estas opiniões, que exponho à câmara, não são novas. Se alguém neste país tem paciência de folhear os anais parlamentares, onde jamais deixo de publicar as ideias que apresento nesta tribuna, verá que, tratando-se de algumas questões financeiras, eu disse que nós havíamos de aproximar-nos sucessivamente da Espanha, até fazermos com ela uma aliança intima, que principalmente, dizia eu nesse momento, seria económica e pautal.

Perguntará a câmara porque não desenvolvi nesse momento as minhas opiniões? Por uma razão simples.

Em primeiro lugar, porque não tinha chegado o momento em que a consciência pública, legitimamente irritada, manifestasse o desejo, ou melhor afirmasse o direito, do conhecer a opinião de cada um de nós; em segundo lugar, porque estou habituado a lutar; mas se a luta com indivíduos é fácil, e difícil lutar com a corrente da opinião, que sustenta, há cinquenta anos a esta parte, que a aliança com a Espanha é para nós a absorção.

Foi preciso que um momento de angustiosa crise levantasse a população de Lisboa e de todo o país, que se fizessem manifestações por todas as formas legítimas, para que Portugal revelasse o seu bom senso e por toda a parte se ouça dizer: é preciso não ficarmos isolados.

É, pois, indispensável aproveitar esta oportunidade e entrar num caminho seguro, pondo de parte repugnâncias históricas de ligações com a Espanha, pelo receio, infundado, da fusão ibérica, e com a França, porque esse país se rege por instituições diferentes das nossas.

Que nos importam as instituições dos outros povos?

Respeite a Franca as nossas instituições, e nós respeitaremos as que regem a França. Acima das instituições está o povo e os seus legítimos interesses.

Que a França seja republicana, como Portugal e monárquico. As instituições correspondem aos interesses dos povos e segundo esses interesses mudam o se transformam.

Senhor presidente, termino a minha exposição, afirmando que é a sincera expressão da minha convicção pensada e tenaz. Afirmo que o nosso país, por mais desenvolvida que tivesse a sua força, armado que estivesse do primeiro ao último cidadão válido o com a marinha mais potente, não podia resistir à coligação das potências do norte e à pressão de Inglaterra, se as nações da raça latina não se ligarem contra a política absorvente e dominadora das nações germânicas. (Apoiados.)

O assunto, que se discute, é tão grave que não vou, certamente, neste momento descer á minúscula questão de apreciar a constituição do ministério, que se senta naquelas cadeiras; mas como, no caso sujeito, sobre as ideias, que acabo de desenvolver, a ação deste ministério é dominante, permita-me a câmara que, em simples palavras, dê a minha opinião acerca do ministério atual.

Tive a honra de trabalhar ao lado de dois homens, que se sentam nas cadeiras do governo, o sr. Lopo Vaz e o sr. Hintze Ribeiro. É escusado dizer que os conheço de perto, sei o valor que eles têm. Tive a honra de apoiar, sendo deputado da maioria, o sr. Serpa Pimentel. Escusado é também dizer à câmara que reconheço o valor de s. exa. Durante quatro ou cinco anos vi lutar, ao meu lado na oposição, os três ministros, os srs. Arroio, Franco Castelo Branco e Arouca. Escusado é também dizer à câmara que reconheço em s. exas. o maior talento. Mas talento, competência e todas as qualidades, que podem possuir os srs. ministros, não me dão a menor confiança política em s. exas. Vou dizer à câmara as minhas razões. Dos atuais membros do gabinete o único espirito essencialmente liberal é (parece incrível!) o sr. Serpa Pimentel. O resto do ministério, a meu ver, é constituído, repito, por homens de elevadas qualidades, mas essencialmente conservadores, alguns já encarnados, cristalizados nestes princípios, outros com tendências pronunciadas para eles.

Não é necessário ter acompanhado por largo tempo os discursos dos srs. Arouca, Castelo Branco e Arroio, para ver nas suas doutrinas, mais ou menos desenvolvido o germe, o embrião de bons e robustos conservadores.

Ora para mim os princípios dos partidos conservadores são nocivos à causa pública. Por toda a parte, os seus erros e os ataques aos direitos e às liberdades democráticas os caracterizam como inimigos acirrados da evolução liberal das sociedades modernas.

O exemplo bem vivo e bem duro desta asserção acabam de no-lo dar os conservadores ingleses. Não posso, pois, ter confiança alguma nos conservadores deste ministério. Repito à câmara, o liberal, o whig desta situação é o sr. presidente do conselho; conhecemo-lo de longa data. O projecto mais arrojado, mais democrata, mais socialista, sobre impostos foi da iniciativa do sr. presidente do conselho.
Não cuido, porem, que s. exa. tenha força para fazer vingar as suas ideias no meio político e ministerial, em que por circunstancias especiais se acha imerso.

As questões de alianças, as questões internacionais, como as entendo benéficas para o país, não as pode resolver senão um ministério essencialmente liberal e avançado.

O ministério atual há-de continuar precisamente as tradições conservadoras do ministério precedente; essa política de vacilações e de exclusiva simpatia pelas potências regidas pela forma monárquica tradicional.

Deus sabe se lhe acontecerá o mesmo que ao ministério progressista! Se, confiado na simpatia das potências da Europa central, julgará vencer com esta simpatia e com as notas diplomáticas as esquadras da Inglaterra!

Estimarei imenso enganar-me; em todo o caso repito a frase do sr. Barjona de Freitas: "nas questões internacionais estou ao lado do governo". Tenho sido sempre cauteloso sobre este ponto.

Há dez anos, quase sucessivamente, tenho assento nesta câmara. Jamais fiz perguntas intempestivas sobre questões internacionais. Pelo contrário, mais de uma vez disse que os assuntos internacionais não podem ser tratados ligeiramente. Não se podem entregar ao arbítrio de qualquer jovem e fogoso deputado, que se lembre de pedir a palavra, as questões mais árduas e difíceis da política internacional de uma nação pequena.

Desejo, pois, que o governo siga o caminho, que lhe tracei, porque me parece o único que poderá evitar ao país futuras dificuldades; quem sabe se mais graves do que a que atravessamos!

Estou, portanto, ao lado do governo, sem paixão, sem animosidade para lhe dar a força única de que posso dispor: a minha palavra, se alguma cousa vale.

Entendo ser este o verdadeiro patriotismo. Fui e vou na esteira do sr. Júlio de Vilhena.

Quando s. exa. se levantou aqui, antes de ontem, e magoado se queixou de que o seu previdente plano das estações civilizadoras fora recebido com indiferença pelo país, foi-lhe, em resposta, vibrada uma frase de efeito. Todavia, a prudência e a justiça estavam dali, e daqui havia apenas retórica.

O parlamento não é uma sala de conferências, em que as discussões e resoluções têm pequena influência nos destinos da nação.
O patriotismo no parlamento deve revestir as formas mais positivas e serenas, embora deva atingir a mais elevada essência.

Felizmente, sr. presidente, os sentimentos elevados da alma humana, entre os quais avulta o amor pátrio, não são peculiares a uma classe, a um partido, a um grupo de cidadãos.

O coração humano é igual. Em qualquer parte onde pulse um coração português, é justa a indignação pela afronta recebida, mais ainda, é legítimo o propósito de vingança.

Acho generosas todas as manifestações ordeiras da grande alma popular, justa reacção contra o inaudito acto da força de uma potência, que se dizia aliada e amiga.

Apraz-me sinceramente ver a mocidade portuguesa elevar bem alto o entusiasmo público, embora num ou noutro rasgo patriótico a paixão toque as raias da fantasia.

São nobres todas as paixões que têm por origem um sentimento verdadeiro; são legítimos os que derivam dos direitos ofendidos e da justiça menoscabada.

O parlamento, porém, a reunião dos legisladores deve ser gravo e sereno; as paixões violentas não cabem, certamente, aonde devem apenas imperar o grave raciocínio e a fria resolução dos negócios públicos.

Quando a nação olha para nós e nos pede a nossa opinião decisiva, o nosso dever é pensar maduramente, discutir serenamente e, grupando-nos em volta do governo nacional, dar ao mundo uma prova de energia moral e da prudência das nossas decisões.

A paixão, se por um lado é má conselheira, por outro esgota rapidamente a força de vontade, que é a origem de todas as resistências sérias.

Senhor presidente, esta serenidade não exclui o propósito da desforra. Como os indivíduos, os povos devem vingar-se dos atos injustos, de que foram vitimas. A vingança, porém, deve ser serena e pertinazmente preparada.

Senhor presidente, se um escultor de génio quisesse dar forma à vingança, representá-la-ia com fisionomia enérgica, serena, quase sorridente...

É necessário que as forças vivas das paixões justas se concentrem bem no fundo da alma portuguesa, para que um dia, mais cedo ou mais tarde, possamos castigar a violência do governo inglês.

Com juízo, com prudência, aliando-nos solidamente com os melhores elementos da nossa raça, conservaremos a nossa autonomia e a integridade nacional.

Senhor presidente, o país que atenda a isto e, com a enorme força da sua opinião sensata e bem dirigida, que impila os governos tímidos para medidas enérgicas e producentes.

A Inglaterra precisa de severa lição.

E há de tê-la. Creia o país, no dia em que possamos contribuir para lhe arrancar Gibraltar, a Inglaterra terá perdido uma parte da sua grandeza.

Tenho dito.



Notas

 

1.

Fonte:

Diário da Câmara dos Senhores Deputados, 27ª legislatura, sessão n.º 11, de 17 de janeiro de 1890, págs. 68-73.

Ligações:

A ler:

  • Rui Ramos, A Segunda Fundação (1890-1926), 6.º vol. da História de Portugal dirigida por José Mattoso, Lisboa, Editorial Estampa, 1998.

 

 

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