Almada Negreiros, 1930

Auto retrato de Almada Negreiros

CONFERÊNCIA REALIZADA EM 9 DE JUNHO DE 1932 EM LISBOA, NO TEATRO ALMEIDA GARRETT, ACTUAL D. MARIA II,
ESCRITA EM ABRIL DESSE ANO.

 

Discurso proferido por Almada Negreiros em Lisboa no Teatro D. Maria II, a convite de Amélia Rey Colaço, e repetido em Coimbra, no salão nobre da Associação Académica, a convite da revista «Presença»,  pouco tempo depois da sua chegada a Lisboa, regressado de Espanha, onde tinha vivido desde 1927.

 

No texto desta conferência Almada critica aqueles que dizem que «o individualismo morreu e que o colectivismo ganhou», afirmando que «isolar o que seja  do próprio conjunto a que pertence tudo é fazer disso mesmo uma direcção proibida.»

Para Almada, como nota José Augusto França esta é a originalidade da tese apresentada, «a colectividade é também um indivíduo, mas é um indivíduo colectivo, na verdade colectivo e indivíduo;» é que «a colectividade é o indivíduo imortal ... o modelo invariável para os nossos actos individuais.»

Almada Negreiros, nacionalista convicto, perto por isso do Sidonismo, do Nacional-Sindicalismo, do Salazarismo, mas sempre com um olhar crítico e distante, que lhe permitia dizer que «na minha atitude pessoal, eu sou apolítico voluntário,»  exprime esperança na nova situação política «nacionalista» que se definia em Portugal, e que via com bons olhos.

 

DIRECÇÃO ÚNICA

a
José Luís Durán de Cottes

 

Capa de Direcção Única

Capa do livro 

Minhas Senhoras e meus Senhores:

Direcção Única são as duas palavras postas ao lado uma da outra para indicar o único caminho por onde deve seguir toda a gente.

E, para que não haja confusões possíveis, encontramos pelas esquinas e encruzilhadas uns discos pintados de encarnado, servindo de fundo e chamariz a umas letras brancas que dizem claramente, para quem quer que seja, e até para os cegos e para os analfabetos: direcção proibida.

Ora, as direcções proibidas não nos interessam absolutamente nada.

Não quer isto dizer que vamos desprezar esses discos das direcções proibidas e desobedecer às suas ordens dadas tão visível e intimativamente para todos sem excepção. Não senhor, não é nada disso.

Pelo contrário: até lhes agradecemos de todo o coração a esses avisos tão bem postos aí nos seus lugares, que ninguém pode vir depois com desculpas de não ter sido avisado a tempo.

A nós não nos interessam as direcções proibidas pela simples razão de que só nos importa a direcção única.

Temos todo o nosso tempo muito certinho muito bem contado, e é o justo para podermos seguir em linha recta pela direcção única.

Se nos enganássemos e fôssemos por qualquer descuido ou capricho nosso por alguma das muitíssimas direcções proibidas que nos aparecem a cada passo, a cada esquina, a cada momento, em todas as encruzilhadas, arriscávamo-nos a não chegar a horas ao fim da nossa viagem, que é como quem diz, ao fim destas linhas que V. Ex.as tão amáveis, estão escutando com tanta atenção.

Mundus a Domino constitutus est.
Mundo autem condito, homo factus 
est.
Viro Admus, mulieri Eva nomen
fuit.

Sulpício Severo

A direcção única não é assim uma coisa tão recente como toda a gente o pode imaginar à primeira vista. Muitíssimo antes de haver automóveis, carruagens e carroças, muitíssimo antes mesmo de ter sido inventada a própria roda, já havia no mundo a direcção única.

Ela data já daquele dia memorável em que Deus, depois de ter criado o Mundo, deu a alternativa ao Homem.

Mas entre Deus e o Homem há uma diferença dos diabos.

Entregou Deus ao Homem o nosso planeta inteirinho, com todas as suas maravilhas, com todo o esplendor de todas as suas múltiplas fortunas, e ao confiar-lhe desta maneira todas as riquezas da terra, disse-lhe:

- Toma para ti, tudo isto tem uma direcção única.

E levou ao máximo a sua lealdade de Deus para com o Homem, avisando-o como bom e verdadeiro amigo, de que havia também direcções proibidas e, por conseguinte, que tivesse muito cuidadinho com elas.

Mas contemos exactamente como as coisas se passaram:

Comecemos exactamente pelo princípio. Pois ao princípio não havia nada. Mas mesmo o que se chama nada. E sete dias depois já estava feito tudo. Mas mesmo o que se chama tudo.

E tudo isto que levou sete dias a fazer foi tudo feito expressamente para uma pessoa só.

Foi esta, minhas senhoras e meus senhores, a primeira vez que uma pessoa se viu sozinha neste mundo.

Era um homem. Um pobre homem.

Fazia dó vê-lo ali sozinho, metido no meio de todas as riquezas do mundo. Tudo aquilo só para ele e para mais ninguém. Pois se havia só ele em todo o mundo!

Há-de haver muita gente a quem faça inveja uma situação tão desafogada como esta, contudo foi esta a primeira desgraça humana que houve no Mundo. Todas as riquezas da Terra não eram o bastante para que ele não caísse na tristeza do isolamento, na angústia da solidão, nesse inferno – verdadeiro ao ar livre.

Mas Deus reparou logo nessa sua falta e emendou a mão.

Logo que apanhou o homem a dormir, viu que lhe tinha posto uma costela a mais. E é que não lhe fazia mesmo falta nenhuma como se provou logo a seguir. E vai Deus tirou-lha.

Neste momento o homem acordou e pronto, já estava acompanhado!

Já eram duas as pessoas que havia em todo o mundo!

Não eram completamente iguais uma à outra. Havia umas pequenas diferenças. Enfim, há palavras para dizer exactamente essas diferenças: homem e mulher.

Duas pessoas, duas!

Feitas ambas para se pertencerem uma à outra, para que não se aborrecessem para aí sozinhos, para que não andasse cada um perdido no mundo sem saber o que fazer com todas as riquezas da Terra.

E então Deus disse com os seus botões.

Não há dúvida! Eu não tinha criado o mundo para uma pessoa só. Tinha-me esquecido disso mesmo. Os seres isolados não participam da vida. São seres isolados. Fora do conjunto. Longe de tudo. A parte da própria vida.

E já estamos no dia oito do mundo. E quando em todo o mundo não há senão duas pessoas, a que estas são precisamente um homem e uma mulher, não há perigo de haver engano: foram feitos um para o outro.

Mas Deus, que vê muito mais longe que as pessoas, não havia maneira de se esquecer daquele horroroso espectáculo que oferece uma pessoa quando está sozinha neste mundo, e então tomou as suas precauções para que aquilo não se tornasse a repetir. E fez então a mulher para que fossem duas pessoas e uma única combinação entre elas.

Pensava, é claro; também nos outros homens e nas outras mulheres que viessem depois destes dois. E as suas contas estavam lindamente feitas:

Uma mulher e um homem são duas pessoas, mas só são dois quando não têm nada que ver um com o outro. Por conseguinte é mais verdadeiro dizer que os dois são uma coisa só, única, um par.

Foi esta a condição que Deus pôs a todos os que entrassem no Paraíso Terrestre para gozarem todas as riquezas da Terra: que viessem aos pares, que fossem sempre juntinhos os dois, como os pombinhos, como as cegonhas, como os elefantes, como os cavalos, como os burros, ambos ao mesmo tempo por toda a parte, sem ter cada um nada que pensar em si-próprio, sendo-lhes apenas consentido pensarem nos dois ao mesmo tempo. Numa palavra: a direcção única.

A direcção única era os dois ao mesmo tempo. E as direcções proibidas cada um para seu lado.

E repetimos: queria Deus com estas advertências fazer todo o possível para apagar de vez na face da terra aquele espectáculo horroroso de ver uma pessoa isolada no meio do mundo. Cortou-lhe o coração aquilo e agora tomava as suas medidas para que não tornasse a repetir-se per omnia secula seculorum. Ámen.

Mas como dizemos, tomava apenas as suas medidas, as suas, e eles que fizessem como lhes parecesse melhor.

E assim foi que Deus fez o homem e a mulher semelhantes um ao outro, mas de caracteres opostos, antagónicos; de naturezas independentíssimas cada um deles, acérrimos disputadores da igualdade no par, inimigos do sexo alheio mas irresistivelmente atraídos um pelo outro, inseparáveis de verdade, e condenados para sempre à fatalidade da sua única unidade comum.

Por outras palavras, fez Deus do homem e da mulher dois animais selvagens que não podem ser domados isoladamente. Fez o isolamento ainda pior -do que era, tornou a solidão ainda mais amarga do que devia ser e indicou a direcção única da colaboração entre ambos: 1+1=1.

Mas por causa das dúvidas, e não estando completamente seguro dos resultados por causa deles, não fossem eles estragar-lhe a sua obra, (Deus sabe muito bem e que faz), arranjou as coisas de tal maneira que a Humanidade se multiplicasse e continuasse pelos séculos ainda mesmo naqueles casos em que não fosse possível o entendimento entre a mulher e o homem.

Isto é, a direcção única haveria de ser eternamente a mesma, ainda que em toda a História da Humanidade não se fizessem senão disparates.

Tudo o que se está contando passou-se nos primeiros dias do mundo à sombra de uma árvore. E daqui vem porem agora todas as culpas à árvore. Chamam-lhe a árvore do bem e do mal. Pois sim, agora chamem-lhe nomes! É desta maldita mania que temos de pôr sempre a culpa aos outros. E quando, como nesse dia não há mais ninguém a quem se possa pôr as culpas, pomo-Ias ao que está mais à mão, – à árvore!

Mas a verdade do que se passou é a seguinte:

O par... Ah! agora me lembro de como se chamavam os dois: Adão e Eva!

Pois este par andou por toda a terra, pelas cinco partes do mundo, o qual por esse tempo era todo conhecido e não tinha ainda nenhum pedaço por descobrir; conheceu e gozou todas as maravilhas, todas as fortunas,

todas as riquezas, todas as infinitas felicidades que Deus deitou ao Mundo, até que um dia, dia maldito na História do nosso planeta, depois de já terem feito o que lhes estava permitido fazer, já não tinham mais novidades do que aquelas que eram as proibidas.

Oh curiosidade! Oh apetite!

E claro está também fizeram o que era proibido.

Dizem que foi ela quem começou, mas fosse qual fosse, isso é secundário, o importante é que acabaram os dois.

E então foi o diabo!

Desde esse momento escangalhou-se tudo. Tudo! E foi-se por água abaixo a primeira colaboração que se fazia no mundo.

Cada um para seu lado, cada um no seu isolamento, cada qual na sua solidão. Exactamente como se em vez de um houvesse dois mundos iguais e uma pessoa só para cada mundo.

Era o castigo de Deus. Cumpria-se pontualmente naquele instante em que eles saíram da direcção única e meteram por outras proibidas.

Desde esse mesmo instante todas as coisas deste mundo perderam o seu único sentido e ficaram com vários, um único bom e todos os outros maus, dificílimo de distinguir os maus do bom, parecidíssimos todos, uma trapalhada.

Foi este o pecado mais original que se fez no mundo até hoje. Tão original que aqueles que não puseram para aí nem prego nem estopa também pagam as mesmíssimas favas que os verdadeiros culpados.

E agora sim que não é mania pormos as culpas aos outros. Foi por culpa deles! por culpa desses dois curiosos de direcções proibidas! por causa dessa senhora e desse cavalheiro! por culpa desses dois caloiros da humanidade, nunca mais ninguém soube no mundo até hoje como se fazem as coisas espontaneamente.

E porque já não sabemos fazer as coisas ao natural, não temos mais remédio agora do que aprendermos a fazê-las com técnica.

O que V. Ex.as acabam de ouvir é nem mais nem menos do que a maneira como começa a História do Mundo. Estamos seguros de que absolutamente nenhum dos mortais ignora estas coisas. Por isso mesmo as escolhemos. Para que a novidade não fique pela anedota mas sim no seu verdadeiro e único sentido.

Tão-pouco aqui cabem as opiniões. A maneira como começou o mundo e a humanidade é uma, e não chegam até lá as opiniões particulares de quem quer que seja, inclusive as dos sábios.

A maioria das pessoas julga que a novidade está no material que se emprega para o que seja, quando afinal o material empregado não serve senão de veículo para pôr a claro o sentido único e puro dessa novidade.

Por isso escolhemos esta história conhecida de todos. E também porque ela não consente nenhuma espécie de divergência nos comentários. De modo que estamos obrigados, quer o queiramos ou não, e encontrar aqui o seu verdadeiro e único sentido que está arrecadado na História, ou seja, neste caso, a própria experiência da Humanidade.

Pedimos a V. Ex.as a fineza de repararem em que a História da Humanidade começa exactamente por um fracasso, o fracasso da primeira colaboração entre pessoas.

Ao primeiro homem e à primeira mulher não lhes bastou terem por sua conta todo o Paraíso Terrestre, completo. Ainda quiseram mais do que ter tudo. Ah! não há dúvida nenhuma de que ambos eram muito humanos!

Por outro lado, ele tinha lá as suas ideias, suas dele, e ela tinha as dela, suas dela. Pagavam-se na mesma moeda.

Mas ideias que eram de ambos ao mesmo tempo, essas que eram as únicas dos dois, essas que eram a própria direcção única, foram-se pelas direcções particulares, pelas direcções proibidas. Palavra de honra que até parece que eram portugueses!

E os seus filhos lá saíram também aos pais.

Caim e Abel não querem nada a meias. Ou tudo para Caim, ou tudo para Abel.

E, continuem reparando V. Ex.as o fracasso da colaboração entre pessoas prossegue na História da Humanidade, de pais para filhos, é hereditário o fracasso, e vai de mal para pior, porque Caim já não pode aguentar tamanho desentendimento com o mano e tem de matar Abel.

E se o não mata, seria Abel quem mataria Caim. O essencial era que desaparecesse um deles. Não importa qual dos dois. O insuportável é que haja dois. Dois estorvam-se um ao outro, é necessário que fique só um. Não importa qual deles.

A humanidade não compreende isto de que cada um seja como é, a não ser o próprio que assim o pensa, mas este quer por força que todos sejam como ele.

E aqui temos uma família desgraçada: o pai e a mãe não se entendem, os filhos saem aos pais, e com esta desgraçada família começou a Humanidade.

Começou e continuou e ainda cá estamos na mesma, graças a todas civilizações que nos fizeram andar vestidos cada uma da sua maneira e graças a Deus também.

E agora vamos lá a saber uma coisa:

O que diriam V. Ex.as se lhes disséssemos que esta família nunca existiu?

E sabeis porque não existiu? Porque é um símbolo.

Como quereis que a humanidade tenha podido guardar até os nomes próprios do primeiro homem e da primeira mulher que viram este mundo? Não vedes que isto tudo é feito com a imaginação e a tradição oral? metade sonhado e metade vivido! Isto é, um símbolo. Uma criação da Arte. Poesia pura. Verdade por cima da realidade. Tragédia autêntica. A tragédia do Mundo. A própria tragédia em pessoa. A própria tragédia humana:

A impossibilidade de pôr a vontade de cada um onde há outras, onde estão todas as vontades do Mundo.

Adão e Eva, e Abel e Caim, ainda não morreram, estão ainda aqui neste mundo, são os nossos nomes próprios, minhas senhoras e meus senhores.

Na humanidade há pelo menos todas as maneiras de ser, de modo que o humanamente lógico é deixar viver todas as maneiras de ser.

Respeitemos a própria realidade. Não raciocinemos contra o próprio raciocínio:

A individualidade é um fenómeno espontâneo, sem intervenção do Homem, é o próprio papel da natureza.

Ao passo que o do Homem é o que vem precisamente depois do da natureza e consiste em fazer relacionar-se entre si tudo o que é de verdade independente e oposto.

Isto é, como se houvesse dois mundos metidos um no outro e ocupando o mesmo espaço do que um único: no primeiro mundo, o da natureza, a vida é natural; e no segundo mundo, o da humanidade, a vida é social.

E tanto no mundo natural como no social a vida é unânime, feita de todas as coisas e não sobeja nenhuma. E fora dessa unanimidade não há vida possível; não há senão, isolamento, solidão, pior do que a própria morte, e morte antes de morte, e morte em vida.

Não é nossa pretensão assustar V. Ex.as com palavras tão antipáticas a pensamentos tão desusados como estes sobre a morte, a desgraça, a tragédia, o isolamento, a solidão; já sabemos de antemão que V. Ex.as não querem saber de desgraças a que dão o cavaquinho pelas tardes bem passadas, pelas boas piadas, pelas pessoas divertidas, ou por qualquer outra morfina que sem ser a autêntica morfina tenha o mesmo efeito que a morfina; nós já sabíamos isto tudo, mas, francamente, é um espectáculo que não nos agrada, que não vai com o nosso feitio, esse de entrarmos nós também para a bicha das pessoas que estão à espera de que lhes chegue a vez de irem buscar mais lenha para se queimarem.

Fomos instados pelas mais cavalheirescas pessoas da nossa terra para que trouxéssemos aqui à nossa gente alegria a rodos, coragem aos potes, tanks de felicidade, transatlânticos de entusiasmo, e a nossa resposta foi esta:

Alegria sim. Faremos todo o possível. Mas que não confundam a alegria com o riso. O riso é a expressão das caveiras. E a alegria é para os vivos, a coisa mais séria da vida!

Alegria é saber muito bem por onde se vai, é ter a certeza de que o caminho é o bom, que a direcção é a única.

Rogamos portanto, a V. Ex.as que não vejam na palavra tragédia nada de trágico, desanimador, irremediável, fatal, pelo contrário, é na própria tragédia que está toda a claridade do Mundo.

Hoje, neste admirável século XX, herança legítima de todos os mais séculos da História, já não ficou por nenhuma parte nenhum mistério com o qual se possa ainda meter medo do papão aos mais meninos. Hoje a claridade é tal que cada palavra retoma o seu sentido único, cada valor da terra regressa íntegro de todas as espécies da fantasia à sua própria essência, tudo o que é falso dura apenas a própria falsidade, tudo o que é provisório serve apenas para isso mesmo, o que é natural é natural, o que é sobrenatural é sobrenatural, as coisas são o que são, tudo é do seu verdadeiro tamanho, a própria Terra descobriu por fim os seus próprios limites, e a tragédia parece-nos maior do que nunca porque o é de verdade, porque a claridade jamais foi tamanha como hoje e mostra-nos completamente nua, sem disfarce, sem hipocrisias, sem mistério e grande tragédia que afoga a humanidade.

Hoje, neste admirável século XX, trágico e alegre, a claridade é tanta que podemos ver a imensidade da nossa própria tragédia em toda a sua extensão e domínios, e ainda nos fica muita para tapar com ela de uma vez para sempre todas as direcções proibidas, e depois sobra ainda o bastante para irmos abrindo o novo caminho da direcção única.

Avisa-se o público de que estão espalhados por aí uns restos podres que ficaram de ontem, podres e fedorentos, intrujando os nossos sentidos porque à sombra têm a fosforescência dos fogos-fátuos, mas é que são fogos-fátuos, não é mistério nenhum, e ao vir a claridade foi-se-lhes logo aquela luzinha mentirosa. Juramos que estão podres. De resto, cheiram que tresandam!

Referimo-nos lealmente neste momento e alguns sábios (assim lhes chamam ainda os da sua laia) a que vêm a público com uma autoridade, que ninguém sabe como a têm nem quem lha deu, e dizem frases importantes e definitivas como estas:

O individualismo morreu.

Estamos na época colectivista.

Ora muito bem. Analisemos: Se eles dissessem: O indivíduo não existe isso já era outro cantar, e estava certo, diziam uma grande verdade. Mas dizer: o individualismo morreu é aceitar como definitivo, para sempre, esse facto. Ou então, para fazer valer melhor apenas o que eles querem como seja, isto é, a vitória do colectivismo.

Ora, isto é falso. Nem o individualismo morreu nem o colectivismo ganhou. Nem o individualismo pode morrer nunca nem o colectivismo pode jamais sair vencedor por esmagamento do individualismo.

Aqueles que tão falsamente se julgam iluminados para cantar em público o colectivismo como única solução, das duas uma: ou não sabem o que dizem ou então sabem-no muito bem. Se não o sabem são míopes, e se o sabem são de recear.

Como se houvesse hoje alguma solução separada de qualquer outra! Tudo são problemas determinados, cada problema tem a sua solução, mas a única, essa que o mundo inteiro unanimemente busca hoje nas cinco partes, é a de cada problema relacionada com as de todos e a de qualquer outro.

É supinamente cómodo resolver uma complicação como o fazem os simplistas, excluindo todas as outras complicações que não sejam aquela. Mas isso é do que nós já estamos fartos. É a isso mesmo o que se chama uma direcção proibida. E a direcção única é precisamente levar o que está por resolver. O indivíduo, a família e a colectividade, não são três caminhos diferentes, são um único sentido, a direcção única. Se uma pessoa se mete apenas por uma dessas três direcções: O individualismo, a família ou o colectivismo, pode quando muito ser prestável a qualquer das três mas ficará exactamente na terceira parte do seu próprio caminho neste mundo. Isolar o que seja do próprio conjunto a que pertence tudo é fazer disso mesmo uma direcção proibida.

Não se pode separar absolutamente nada do que quer que seja. Todas as coisas se relacionam entre si. A própria claridade só é claridade porque existe de verdade a tragédia. Senão não fazia falta nenhuma a claridade e estaríamos todos no Paraíso Terrestre.

Mas vêm os simplistas, todos arranhados de ciência, e querem logo a todo o custo que a direcção única caiba por força pelo cu de uma agulha. Ora a direcção é única porque é para todos. E a única coisa que é comum a toda a humanidade é a própria vida, é o próprio mundo, não cabe pelo cu de uma agulha.

Não aleijemos a pobre humanidade mais do que ela já está com tantas sacudidelas da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para cima. Do individualismo para o colectivismo e do colectivismo para o individualismo. Não sejamos tão crianças que queiramos levantar ao ar e esfera pretendendo agarrá-la apenas pelo hemisfério da direita ou apenas pelo da esquerda, ou apenas pelo hemisfério superior, porque a única maneira de agarrá-la bem tão-pouco é pôr-lhe as mãos por baixo, nem ainda abraçando-a com os dois braços e os dedos metidos uns nos outros para não deixar escapar as mãos e com o próprio peito do lado de cá e ajudar também; a única maneira de equilibrar a esfera no ar é deixá-la estar no ar como a pôs Deus Nosso Senhor, às voltas à roda do sol, como a lua à roda de nós e assegurada contra todos os riscos dos disparates da humanidade.

Não temos mais remédio do que ir aprender tecnicamente como funcionam estas coisas tão naturais!

O Mundo da Natureza é o modelo dos modelos de todas as maquinarias, porque não havemos então de acertar também o mundo social no seu próprio funcionamento como todas as outras máquinas do mundo?

Actualmente comemora-se no mundo inteiro o centenário da morte de um homem, o qual todos os povos das cinco partes são unânimes em considerar o mais universal dos Europeus. Chamava-se Goethe.

Fixem bem V. Ex.as estes dois títulos máximos de Goethe: Europeu e Universal.

As suas duas obras principais, se é que alguma pode ser a preferida ou separada da própria vida do autor, são o Werther e o Fausto.

Goethe é um génio. Ninguém se arrisca a perder uma reputação de crítico ao afirmá-lo. Está assente que o é.

E então vejamos a obra mais conhecida do génio no Werther e no Fausto.

Goethe não conhece senão o indivíduo. Para ele o indivíduo é o próprio espelho da humanidade inteira.

Ao terminar o Werther faz suicidar-se o indivíduo e ponto final.

Depois vem o Fausto. Como é natural, Fausto segue o caminho oposto ao do suicida. Canta a coragem de viver, canta a acção, sempre a acção, sempre a coragem de viver. É o primeiro Fausto.

Trinta e sete anos depois outra vez o Fausto, outra vez a acção, outra vez a coragem de viver.

Fausto é uma obra genial.

Mas afinal talvez Werther tivesse tido mais razão em suicidar-se do que Fausto em teimar ir tanto para diante.

Em resumo, dois desgraçados: Werther e Fausto. E um génio: Goethe.

Bem feitas as contas serão três os desgraçados. Mas um deles, o autor, falou pelos três, falou por toda a gente. No seu século tão grande, tão elevado, tão luminoso, tão invejável, o indivíduo era afinal tão desgraçado como em qualquer outra idade da História menos esclarecida do que aquela.

O génio no-lo revela na sua obra e com a sua própria vida.

Mas não se espantam V. Ex.as com estas coisas. Isto já não é nenhuma novidade para nós. É a eterna tragédia dos filhos de Adão e Eva. Desde o princípio do mundo que estamos todos condenados à maior das desgraças humanas: o nosso próprio isolamento, a nossa própria solidão. Seja qual for o século em que fale o génio, todos os génios coincidem no mesmo. E quanto mais a Terra se vai enchendo de gente, quanto mais a Humanidade se multiplica, maior se vai tornando ainda a solidão de cada um dos seus indivíduos.

E hoje? Vejam aí com os seus olhos: coitadinho do Charlot que não pára de vagabundear!

Goethe, apesar da fama do seu nome em vida, apesar da sua vida de grande senhor; Goethe a quem o próprio Napoleão disse: vous êtes un homme, monsieur Goethe! apesar da sua própria natureza dotadíssima, privilegiada, excepcional, robustíssima, completa, genial; apesar de tudo, a sua vida é um desastre. Um desastre completo, levado até ao fim. Goethe morreu velho. Um desastre heróico levado dignamente até à última, e com aquela verticalidade exclusiva do próprio Goethe.

Ao filho de Goethe chamavam-lhe «o filho da criada». O filho do génio é o filho da criada. Nunca ninguém lhe chamou o filho do génio!

O génio continuava efectivamente sozinho.

E já não é a primeira vez que o homem está sozinho no mundo.

Por esse tempo nascia na Europa o Romantismo e era como uma libertação de todos os indivíduos, de todos aqueles que tinham legitimamente a sua vida para vivê-la, a hora dos Prometeus desencadeados.

E é curioso, isto só o podemos ver nós hoje, depois de passado um século, o Romantismo nascia na Europa ao mesmo tempo que na mesma Europa Goethe acabava de pôr nessa mesma esquina do Romantismo o disco encarnado com as letras em branco: direcção proibida.

Era o mesmíssimo beco sem saída onde Werther se tinha suicidado e donde Fausto não tinha podido sair, onde o ideal e a acção individuais estavam sepultadas para sempre.

Nenhum outro homem mais próximo de nós foi mais justo e mais preciso do que Goethe pondo toda a claridade no caos da nossa própria tragédia humana de isolados, de sozinhos. É o verdadeiro génio. Aquele que viu mais e melhor. E então todos à uma quiseram ver também, todos quiseram ver com os próprios olhos como o génio, a entraram todos um por um, naquela direcção proibida que já tinha sido tapada para sempre pelo próprio Goethe. E todos ficaram românticos. Uns passaram a chamar-se Werther e outros Fausto. Uns suicidaram-se e aqueles que não se mataram ficaram sem uma gota de esperança. Sinceros todos.

Goethe não tinha deixado ali por onde sair o indivíduo. Ele tinha, na verdade, falado de uma maneira diferente daquela que o ouviram.

E depois ainda veio Nietzsche e quis também ele sozinho chegar até ao Homem! e mais para lá também até ao Super-Homem, mas quem sabe? se calhar é capaz de lá ter chegado. Nós é que já nunca mais soubemos nada dele. O pobre Nietzsche, de repente, pôs-se a falar sozinho com a sua loucura.

Não vos assustais com esta Humanidade onde aqueles que não são anónimos, e precisamente os mais conhecidos, são suicidas, desesperados, sozinhos ou loucos?!

Não! não vos assusteis, porque temos que ir ainda mais para diante. E se é a alegria o que vós lealmente quereis e pedis, tende confiança que é por aqui o caminho e já lá chegaremos se Deus Nosso Senhor quiser.

Falámos já muito de Goethe. Mas ele disse tantas coisas que sabe de cada um de nós, que não é demais toda a nossa curiosidade a seu respeito.

E na verdade, o seu génio não se limitou a pôr direcções proibidas pelas esquinas e encruzilhadas. Além disso, e aqui precisamente é que ele foi o génio, também marcou e magistralmente a direcção única.

Permitam V. Ex.as uma pequena observação antes de seguirmos o nosso pensamento deste momento.

A direcção única não é uma solução, é infinitamente melhor do que uma solução, é uma direcção, e a única.

Quanto mais aflita está a Humanidade mais se desespera à procura de soluções. Até se podia inventar este rifão: buscas solução estás cheiinho de aflição.

Ora aqui não é nenhuma agência de empregar a amigos e parentes e trata-se nem mais nem menos do que colocar a toda a gente, seja quem for, nos seus devidos postos neste mundo. Por isso mesmo a direcção é única, porque é para todos, o que é, aliás, como Deus manda.

A diferença entre solução e direcção será esta: a solução é sempre um remédio passageiro para disfarçar a desgraça, ao passo que a direcção é a própria dignidade posta nas mãos do desgraçado para que deixe de o ser, e a direcção única é a garantia perpétua dessa dignidade.

E foi o que fez Goethe: Descobriu a direcção única. Artista, na verdadeira acepção da palavra; Artista é aquele que precede a própria ciência. Por isso Goethe afastou-se de quantas realidades irrealizáveis onde costumam habitar instaladas as gentes. E impassível, desde cima, assistiu ao desenrolar da tragédia. E viu o mundo inteiro por cima de todas as cabeças, e viu a Europa toda e com cada um dos seus pedaços, e viu cada indivíduo da Humanidade como um pequenino astro tonto que nem sabe sequer ir na parábola da sua própria trajectória, e viu que de todos os seres deste mundo o único que errava o seu fim era o Homem, o dono da Terra! e viu que era na Humanidade que estavam os únicos seres deste mundo que não cumpriam com o seu próprio destino, e finalmente viu! Viu com os seus próprios olhos o que ninguém tinha visto antes dele. Viu pela humanidade inteira, viu por toda a Europa e viu por cada indivíduo. E compreendeu o mundo, e concebeu uma Europa, e para todos os indivíduos da Terra abriu de par em par a direcção única.

Goethe, o génio, é universal, europeu e alemão.

Goethe, o indivíduo Goethe, também pertence a essas três unidades, humana, europeia e alemã, as quais três são uma única, a dele.

Nós os Portugueses pertencemos à Humanidade, à Europa e a Portugal. Não somos três coisas distintas, senão uma única, inteira, e nossa.

Cada indivíduo não pode chegar até si mesmo senão através dessas três unidades a que pertence: o mundo, aquela das cinco partes do mundo onde está a sua terra, e a sua terra.

A terra de cada indivíduo não está limitada pelas legítimas fronteiras físicas e políticas do seu próprio território, é além disso um pedaço determinado de uma quinta parte do mundo inteiro.

E o indivíduo está tão longe de si mesmo que para chegar até si tem primeiro que dar a sua volta ao mundo, completa, até ao ponto de partida.

E todo aquele que queira encontrar dentro de si mesmo a sua própria personalidade, ficará romanticamente sozinho no meio das multidões, na mais terrível solidão de todos os tempos, uma solidão onde o próprio deserto está cheio de arranha-céus e as ruas inundadas de gente!

O indivíduo nunca pertenceu a si mesmo. Pertence em absoluto à sua colectividade. E a sua colectividade é a sua própria Terra e mais aquela das cinco partes do mundo onde está a sua terra e mais o mundo inteiro também.

Mas que não se julgue por estas palavras que o indivíduo há-de servir apenas de instrumento à sua própria colectividade. Não! nem vice-versa tão-pouco. É um jogo simultâneo da colectividade para os seus indivíduos e de cada indivíduo para a sua colectividade.

E se hoje o indivíduo não existe, isto é, se não tem nem pode ter acção própria, não é tal, de maneira nenhuma, porque a colectividade lhe tenha usurpado também o seu lugar, é apenas porque ninguém está capacitado da obediência que deve a si próprio, é apenas por ignorância do que, justamente, ninguém devia ignorar: o seu próprio destino neste mundo.

O destino não é coisa que se saiba pelas sinas, nem obra do acaso, nem artes para adivinhos ou leitores de palmas de mão, nem nada que se modifique com caprichos da fatalidade. O destino de cada indivíduo neste mundo está por cima do seu próprio caso pessoal.

O único procedimento para conhecer o destino de cada qual é este: Vai-se buscar uma esfera terrestre. Faz-se dar voltas ao mundo, e quando passe diante de nós aquela das cinco partes em que se divide a geografia, e que nos parece a mais bonita, procura-se aí com o dedo aquela terra que conhecemos como ninguém e onde entendemos tudo o que lá se diz e pronto, deixa-se ficar o dedo aí. É o dedo do Destino, e nós julgamos que é com o nosso dedo que indicamos no mapa.

E há seis milhões e meio de indivíduos que puseram o dedo no mesmo sítio. Seis milhões e meio de pessoas cujo destino é o mesmo.

E no mapa, exactamente nesse sítio, está escrito: Portugal.

E por cima de Portugal há um grande E, a primeira letra de uma palavra que começa em Portugal e que vai subindo para o Norte sempre em grandes letras, seis grandes letras, seis grandes letras que iluminam as cinco partes do mundo, seis grandes letras que juntam os povos mais independentes do mundo, até onde acaba a Rússia, que é debaixo das seis grandes letras da Europa, aquela terra dos indivíduos que ficam mais longe de Portugal.

E aqui é o destino único de seis milhões e meio de indivíduos neste mundo, aqui na Europa, aqui na Península Ibérica, aqui no sul e aqui no Ocidente da principal das cinco partes da Terra.

«A Europa é a mãe de numerosos filhos. E Goethe, o europeu, quem nos abre os olhos, para que tenhamos a consciência uns dos outros, para que tenhamos vergonha de nos caluniarmos e de nos odiarmos.

Para fazer uma Europa, é necessário uma Alemanha, um Portugal, uma França, uma Espanha, uma Inglaterra, uma Suíça, uma Itália e o resto. Será necessário também uma Ásia, duas Américas, uma África, uma Austrália, negros, vermelhos e amarelos para fazer, um dia, o mundo.

Goethe, poderoso alemão, não pretende que a Europa seja alemã, nem que a França ou a China o venham a ser alguma vez. Para que a Europa seja verdadeiramente ela mesma, é necessário que a Alemanha seja o mais alemã possível, a França o mais francesa que possa, a Espanha o mais espanhola, Portugal o mais português, Inglaterra a mais inglesa, e qualquer outra terra o mais ela própria porque apenas nos seus superlativos, nos seus máximos, nos seus cúmulos é viável o acordo, a colaboração entre os povos independentes e bem contornados pelas fronteiras invulneráveis.» (Goethe, Andres Suares.)

 

§ § §

 

A colectividade é, qualitativa e quantitativamente, o conjunto de todos os indivíduos que a formam. Mas que não nos sirva de atrapalhação tanta gente junta. Pelo contrário: já cá estamos, finalmente, no nosso caminho.

A colectividade, apesar de ser o conjunto de todos os seus indivíduos, funciona exactamente como um indivíduo a mais. Assim como se no mundo houvesse toda a gente que existe e mais uma pessoa: esta pessoa seria exactamente todos num só. A colectividade é também um indivíduo, um indivíduo como qualquer outro, mas é o indivíduo colectivo, na verdade colectivo e indivíduo. Com a vantagem sobre qualquer outro de não estar sujeito, como nós, às vacilações de um organismo mortal. A colectividade é o indivíduo imortal. Feito da mesma massa humana que qualquer de nós, os indivíduos mortais.

Já cá temos, por conseguinte, o modelo invariável para os nossos actos individuais: a colectividade.

Senão reparem V. Ex.as em como é feito o nosso próprio corpo:

Está formado por vários órgãos, distintos uns dos outros, e nenhum deles com vida própria, ou melhor, dependente cada um deles da vida total e unânime do nosso organismo individual, isto é, da unidade da qual faz apenas parte.

Pois o indivíduo no mundo é exactamente como um dos nossos órgãos no nosso próprio corpo. Nós não temos vida própria. Dependemos da vida total e unânime do organismo colectivo, e de cuja unidade fazemos apenas parte; o que não é pouco nem muito, senão o justo para cada um de nós.

O indivíduo e a colectividade são as duas únicas expressões humanas do mundo social como o homem e a mulher são as duas únicas expressões humanas do mundo natural.

E assim como a mulher e o homem estão condenados à fatalidade da sua única unidade comum, também acontece o mesmo, paralelamente, no mundo social com a colectividade e o indivíduo.

São unicamente quatro as expressões da humanidade: o homem, a mulher, a colectividade e o indivíduo. Cada uma delas separadamente é o próprio isolamento, a autêntica solidão, a direcção proibida. E todas as quatro juntas são exactamente a direcção única.

Agora, neste momento, entramos decididamente no mundo social: a colectividade e o indivíduo.

Este assunto é de uma actualidade desesperadora. Ou melhor, sejamos ainda mais claros, é o único assunto que preocupa o mundo inteiro.

Artistas e cientistas, trabalhadores e desempregados, temos todos os olhos fixos nessas duas palavras que fazem estremecer hoje o mundo de alto a baixo: colectividade, indivíduo.

O indivíduo não existe. É um resto que ficou ainda de ontem. Já não há nada mais do que o espaço que ele ontem ocupava no seu lugar. E a colectividade? Também. É um resto que ficou ainda de ontem. Já não existe nada mais do que o lugar que ela ontem ocupava.

Não é só o indivíduo que não existe, hoje também não existe a colectividade. São apenas dois restos que ficaram de ontem.

Não existe nenhum deles por causa do outro. São inseparáveis de verdade.

Acabou-se o mundo antigo. Fica para a História. Hoje nasce o mundo outra vez, desde o princípio. Não há absolutamente nada. Temos de fazer tudo outra vez: a colectividade e o indivíduo. Esses dois valores iguais, recíprocos, que dependem um do outro a que isoladamente se suicidam por suas próprias mãos.

E é esta, minhas senhoras e meus senhores, a grande tragédia da unidade: Não há indivíduos porque não existe a colectividade e não há colectividade porque não existem os indivíduos.

O mundo inteiro está sozinho. Cada pessoa vive isolada no meio das multidões. As multidões são formadas por indivíduos, por numerosíssimos indivíduos isolados uns dos outros.

As palavras caem perdidas no chão.

Sozinhos todos. Ninguém se entende. A humanidade inteira está reduzida à solidão de cada um dos seus indivíduos.

O mundo inteiro está dividido em tantos mundozinhos individuais, pequeníssimos, microscópicos, quantos sãos os seus habitantes.

Mas aquele mundo da colaboração de todos, o único mundo real afinal de contas, esse, já não existe. Veio cada qual roubar-lhe o seu pedacito e o mundo ficou feito em migalhas, reduzido a grãos de areia, pó, nada!

Vós, indivíduos das cidades, e dos campos, vós, indivíduos de todas as partes e que fazeis parte de todas as multidões, respondei todos um por um:

Com quem comunicas tu?

Não to perguntamos com quem tratas todos os dias, nem com quem falas, nem com quem vives, nem com quem dormes. Perguntamos-te unicamente com quem to entendes?

Com ninguém!

Estás tão sozinho no meio de toda a gente ou ainda mais do que se não houvesse no mundo mais ninguém do que tu.

E ainda não sabes de memória tudo quanto possa dizer-to toda a gente? Ainda não sabes de cor as várias opiniões do mundo inteiro?

Ainda não sabes de cor a salteado todas as notícias de todos os jornais que se publicam diariamente, pela manhã, à tarde e à noite, nas cinco partes da terra?

Ainda não sabes de memória todas as novidades da última hora que nos traz a cada instante a rádio de todos os lados do mundo?

E as que dirá amanhã, a depois de amanhã, a daqui a um ano a sempre, sempre a mesma notícia para quem ainda não a saiba, sempre a mesma cantilena a buzinar-nos os ouvidos:

S. O. S. perdidos, desencontrados, sozinhos! S. O. S. estamos todos desencontrados, estamos todos sozinhos, perdidos todos! S. O. S. sozinhos! S. O. S. desencontrados! S. O. S. perdidos! S. O. S. sós! S. O. S. sós! S. O. S.

S. O. S. é o sinal internacional de telegrafia a pedir socorro.

Está formado pelas três iniciais da frase inglesa: «Save Our Soules», que quer dizer em português: «Salvai Nossas Almas».

Estas três letras S. O. S. são as mesmas com que se escreve em português o plural de indivíduo isolado: Sós.

Nós, que somos portugueses, somos por isso mesmo aqueles que menos podemos alegar a ignorância dos valores recíprocos da colectividade e o indivíduo.

Na História de Portugal, a primeira e a segunda dinastias são em todo o mundo um modelo exemplar da formação a funcionamento da colectividade. Na primeira dinastia funda-se a fixa-se a colectividade portuguesa. São estes os primeiros passos do indivíduo: Tornar fixa na terra a sua própria colectividade.

Nessa dinastia temos como expressão máxima do indivíduo da colectividade a El-Rei Dom Dinis, o primeiro português que já pode começar a cuidar em conjunto das nossas coisas colectivas. E o facto de fixar os quilómetros de areias com o pinhal de Leiria é o símbolo da vontade e constância de uma colectividade que quer manter invariável através dos séculos o seu próprio e único perfil geográfico.

Símbolo imponente da realidade feita pelo povo que chega até aos dias de hoje, o decano das gentes da Europa nas suas fronteiras primitivas.

Na segunda dinastia, a colectividade portuguesa é para o mundo inteiro a própria maravilha da máquina social. Cada indivíduo da nossa terra tem o seu lugar determinado na nossa colectividade. E um deles chamar-se-á Vasco da Gama, a ainda antes mesmo de ter realmente chegado a este mundo, já estava destinado pelos interesses comuns da colectividade portuguesa, para vir a ser o maior marinheiro do mundo!

E não era outra diferente desta a razão por que houve gente também na Grécia Antiga. Era a de que havia uma Grécia Antiga. Era a de que havia uma Grécia, uma colectividade que criava os seus próprios indivíduos.

Felizes os tempos em que em Portugal cada português podia ter o seu próprio valor, porque a colectividade portuguesa também tinha o seu, a estava à altura de si-mesma, e não se prejudicava a si-própria nem aos seus indivíduos!

Felizes os tempos em que Portugal tinha a direcção única a era esta a única maneira como cabiam aqui todos os mais diferentes dos Portugueses!

Hoje o mundo é do seu verdadeiro tamanho. Nem uma polegada a menos nem uma ilusão a mais.

Das cinco partes da Terra todos regressam aos territórios das suas próprias colectividades. O mundo está o mesmo por toda a parte. A realidade é sempre a mesma em todos os lados do mundo. É impossível fugir da realidade. E quer queiramos ou não, hoje temos de ser todos profetas na nossa própria terra.

Acabaram-se as iniciativas particulares. Acabaram-se os caprichos dos viajantes isolados. Acabaram-se os génios que cantavam chorando a solidão dos indivíduos. Hoje pedimos todos à uma, a colectividade que nos represente, a colectividade a que temos direito, que é ela mesma a nossa colectividade, o nosso próprio a único direito à vida.

Queremos a colectividade portuguesa à altura de si-própria, vista de todos os lados da terra. Que cada português, dentro ou fora da nossa terra, seja o perfeito indivíduo da nossa própria colectividade.

Estamos todos incondicionalmente ao lado da colectividade portuguesa passo a passo, egoistamente, como quem sabe exactamente o sítio onde está a sua própria vida de indivíduo português.

Exactamente neste momento terminaram as nossas palavras da direcção única. Fizemos todo o nosso possível para que elas fossem a própria alegria, a coisa mais séria da vida. Se na verdade não o conseguimos, pedimos perdão a V. Ex.as por lhes termos feito perder esta meia hora do vosso tempo. Na certeza porém, de que o nosso desejo de colaborar na obra comum da direcção única é leal, tão leal que estamos seguros de não termos emitido nenhuma opinião pessoal nem nossa nem de outrem, a que apenas nos servimos dos próprios exemplos da Bíblia, da História, dos génios a dos clássicos para com estes factos conhecidos, aceites a consagrados estabelecer a ligação entre as distâncias mais diferentes a longínquas da Humanidade, e podermos dizer com elas que a direcção é efectivamente única para todos aqueles que a possam ver a também para os que não a virem nunca.

Lisboa, Abril 1932.

José de Almada Negreiros

 

DIRECÇÃO ÚNICA

Conferência realizada em Lisboa no Teatro Nacional de Almeida Garrett, a convite de Amélia Rey-Colaço, repetida em Coimbra no Salão Nobre da Associação Académica, a convite da revista «Presença» e editada pelas Oficinas Gráficas UP de Lisboa

Julho de 1932

 


Fontes:

José de Almada Negreiros, Direcção Única, Lisboa, UP, 1932;

José de Almada Negreiros, Obras Completas, 6: Textos de Intervenção, Lisboa, Estampa,1972, págs. 73 a 100;

José Augusto França, Almada, o Português sem Mestre, Lisboa, Estudios Côr, [1974]

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