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DAS MEMÓRIAS DE AUGUSTO FUSCHINI
Nota: Algumas das ligações no texto remetem para entradas no «Portugal - Dicionário histórico».
O conselho de ministros presidido por EI-Rei D. Carlos.
Ocupava-me da reforma do pessoal de fazenda. Por mais de uma vez o Sr. Hintze Ribeiro me havia recomendado a conservação do escrivão de fazenda de Coruche, protegido eleitoral do Sr. Mariano de Carvalho; respondi-lhe sempre que, fixados os princípios da reforma de acordo com os direitos dos empregados e com os interesses da administração sairia quem tivesse de sair. Um dia, um particular amigo do Sr. Mariano de Carvalho avisou-me de que se não consentisse na permanência do escrivão, o que em face das bases da reforma era impossível, passaria pelo desgosto de ver iniciar contra mim a campanha das obrigações da Câmara. Perdi a paciência, e respondi à ameaça como dizem ter respondido Cambronne aos ingleses, na batalha de Waterloo. Um alto funcionário do ministério da fazenda, o Sr. José Lobo, que aliás comigo havia colaborado na reforma e sabia a intenção firme e honesta, com que havia sido elaborada e posta em vigor contra mil dificuldades, meteu-se amigavelmente na contenda. Demonstrou ao Sr. Mariano de Carvalho que as regras estabelecidas eram justas, e não fora feita uma única excepção; propôs-lhe, sob a sua responsabilidade, que escolhesse um nome entre os que podiam ser regularmente nomeados para aquele concelho; enfim, gastou o seu melhor latim para convencer o trunfo da política santarena. 0 Sr. Mariano de Carvalho enfurecia-se, gritava que não se importava com os meus princípios de administração, berrava que em cinco minutos, quando fosse ministro, escangalharia a minha organização - disso estou eu certo e de mais alguma coisa ... - em suma, que, por força, havia de ficar o tal escrivão de Coruche. Neste último ponto laborou em erro. E como o escrivão de fazenda não ficou, a campanha de descrédito foi iniciada contra mim de acordo com a câmara municipal, que nomeou a sindicância, a que já me referi; o acto, se foi inútil nos resultados, não deixou de ser perverso e miserável nas intenções. Perdoe-me o leitor este longo incidente; mas algures havia ele de caber. Por maior que seja o meu desprezo - e é grande - pelas misérias morais, o meu espírito sentiu agradável impressão neste ligeiro desabafo. Além disso, é bom que a opinião pública saiba como certos homens influem na administração do país. Quantas baixezas, quantos vícios, quantas misérias pode originar este sistema de coacção, actuando sobre espíritos timoratos e ânimos fracos?! Chegou, finalmente, como era de esperar, o dia, em que a nomeação do Sr. Mariano de Carvalho foi apresentada em conselho de ministros. Em geral, a altitude dos ministros não lhe foi favorável, com excepção dos Srs. Hintze Ribeiro e João Franco. Repeti em conselho os argumentos, outrora apresentados a estes dois ministros, neste momento reforçados por estar em discussão em conselho, e pendente de negociações diplomáticas, a questão da Companhia de Norte e Leste. Na argumentação do Sr. João Franco transluzia a ideia fixa da eleição de Lisboa; refutei-a afirmando que mais valia perder as eleições da capital, deixando entrar na câmara mais dois deputados republicanos, do que vence-las pelos processos conhecidos de veniaga e imoralidade. Lembrei a organização do ministério, o seu programa, como representávamos uma tentativa de politica liberal e pura, que a nomeação proposta faria sossubrar, com grave prejuízo das instituições. A atmosfera do conselho estava quente; não era difícil de perceber que a votação podia originar uma crise. - Pois bem, a questão é séria e envolve princípios de administração politica do ministério, o rei é o primeiro interessado, peça-se-lhe um conselho, presidido por ele, e exporemos as nossas opiniões, exclamou de súbito o Sr. João Franco. Aceitei o alvitre. Duas razões me levavam a abraçá-lo gostosamente: a primeira, porque o ia propor, não esperando que fosse admitido; a segunda, porque não podia ter, nesse momento, dúvida alguma sobre a opinião de El-Rei. De facto, nos nossos usos e costumes constitucionais não são frequentes os conselhos de ministros, presididos pelo Chefe do Estado; falta que, no meu entender, dificulta mais ainda, entre nós, o exercício, inteligente e consciente, das delicadas funções do poder moderador. Sem dúvida, nos conselhos de ministros de mero expediente de negócios a sua presença seria inútil, podendo até ser nociva; quando, porém, o conselho se ocupa de elevados assuntos nacionais e internacionais, quando as discussões recaem sobre graves questões de alcance político ou administrativo, a ausência do árbitro supremo, do primeiro responsável perante a nação, priva-o completamente de elementos seguros e de conhecimentos positivos para tomar futuras resoluções, às vezes, bem difíceis e perigosas. Em França, na Espanha, em Inglaterra, muitas vezes, os Chefes do Estado presidem aos conselhos de ministros. A presidência não obriga a expor doutrinas; e só, ouvindo as discussões e seguindo a argumentação, podem conhecer-se bem os assuntos para cumprir, sem receios e vacilações, os difíceis deveres do poder moderador. Em Portugal raras vezes o rei preside aos conselhos de ministros, recebendo os esclarecimentos ou por áulicos, que os ministros têm o cuidado de comprar por qualquer preço, ou por conversações soltas com o presidente do conselho e com outros ministros, cada um dos quais lhe resume as ideias e lhe apresenta os factos, se segundo o seu critério pessoal; quando os não movem a intriga, as próprias ambições, as invejas, as lutas odientas, plantas daninhas que se desenvolvem, com extrema facilidade, nos campos ministeriais e no exercício do poder. Esta lacuna constitucional apontei-a a EI-Rei, creio que mais de uma vez, e dela fui vitima, porque o Sr. Hintze Ribeiro, pedindo a dissolução do parlamento, afirmou a unanimidade de opiniões dos ministros, o que era perfeitamente falso. Assim, ficou resolvido o conselho de ministros, presidido por El-Rei, incumbindo-se o Sr. Hintze Ribeiro, segundo a praxe, de lhe telegrafar para Vila Viçosa, para onde El-Rei partira dias antes. A resposta não se fez esperar, sendo o conselho marcado para o seguinte domingo - 17 de Setembro - às 3 horas da tarde. À hora determinada, o ministério estava completo e começava o conselho na pequena sala, onde se verifica a assinatura real. Ocupavam as cabeceiras da mesa El-Rei e o Sr. Hintze Ribeiro, que em negócios de precedências é de extremo rigor, até com as próprias damas. Do lado direito de El-Rei estavam os Srs. João Franco, Azevedo Castelo Branco e eu; do esquerdo ficavam o Dr. Bernardino Machado, o Sr. Neves Ferreira e o Sr. Pimentel Pinto. EI-Rei entrara gravemente; no seu aspecto havia traços de mau humor, ou porque temesse o resultado do conselho, cujo assunto lhe devia ser mal conhecido, ou, talvez, porque não lhe tivesse agradado deixar a lavoura alentejana, de que parece gostar sobre todas as coisas. 0 Sr. João Franco, muito curvado, cofiava o bigode, estendendo muito os beiços, o que nele é manifesta indicação de graves cogitações. 0 Sr. Hintze, com aquela inconsciência que deve ser o instinto de grandiosos destinos, segurava a luneta, esperando que EI-Rei lhe desse a palavra. EI-Rei, fumando um grande charuto e encostado ao braço esquerdo da poltrona, parecia esperar, resignadamente, o discurso do Sr. Hintze Ribeiro; este, porém, segundo a pragmática, não queria falar sem indicação do régio presidente. Depois de alguns momentos de silêncio, El-Rei fez ligeiro gesto indicativo ao Sr. Hintze Ribeiro. 0 presidente do conselho começou, lenta, lugubremente, a exposição. Ouvi-o; mas não o vi, porque, tanto quanto o permitia a minha péssima vista, desejava seguir os movimentos fisionómicos de EI-Rei. Não vou agora apreciar a oratória do Sr. Hintze Ribeiro, aliás conhecida. Não é orador de grandes rasgos, como não é pensador de grandes sínteses. A sua oratória corresponde, como aliás é regra psicológica, à sua inteligência, um causídico em ambas as manifestações. Apreciando, todavia, casos e formulando hipóteses, estira os discursos, que, em geral, são de extrema clareza, bastante elegância e pureza de dicção. Nesse dia não o conheci; das suas qualidades oratórias, apenas, manifestou o estirado do discurso. El-Rei nada percebeu, pelo menos a sua fisionomia conservou-se em imobilidade esfíngica. Pela minha parte, procurando momentos depois sintetizar aquele produto oratório, conforme tenho por hábito depois de factos notáveis, ou para escrever as minhas impressões, ou para as entregar simplesmente à memória, que aliás tenho sofrível, não consegui apurar-lhe a filosofia. Esta obscuridade pareceu-me propositada, dir-se-ia que o Sr. Hintze Ribeiro se preparava para seguir, podendo ser presidente, qualquer política. E não me enganei, os princípios morais e políticos do Sr. Hintze Ribeiro são por tal forma largos, que poderá ser sectário de Buda, ou de Cristo, ministro de Calígula, ou de Tito, contanto que o deixem presidir. Havendo terminado o Sr. Hintze novo momento de silencio correspondeu à ininterrupta impassibilidade de El-Rei. 0 Sr. João Franco como que duvidava tomar a palavra; inclinei-me ligeiramente para ele a fim de lhe indicar a conveniência de respeitar a ordem da hierarquia ministerial. Estou convencido de que desejava ouvir-me primeiro, porque se dava comigo o mesmo desejo em relação a ele. 0 Sr. João Franco, vivo e brilhante a orar, começou arrastadamente a exposição. A súmula do discurso pôde reduzir-se aos seguintes períodos: que no estado actual da politica portuguesa não havia senão dois caminhos: seria um, transigir com certos elementos, que por serem maus não deixam de ser poderosos e activos, comprando-os, satisfazendo-os e aproveitando-lhes a força; seria outro, investir com eles, esmagá-los, firmar o governo em novos elementos, contrapondo à sua força novas organizações políticas; para isto, porém, eram. indispensáveis meios extraordinários de governo. 0 Sr. João Franco repetia e sublinhava esta frase, com o fim evidente de chamar para ela a atenção de El-Rei. Não esqueceu, também, a eleição de Lisboa, para a qual seriam indispensáveis esses elementos, sob pena de se perder a luta. Assim, a exposição do Sr. João Franco foi pouco elegante, descosida, muito duvidosa na forma, e ainda mais vacilante na essência. Percebia-se que formara plano de apresentar hipóteses sem manifestar opiniões. 0 Sr. Hintze Ribeiro e o Sr. João Franco, se o não estavam, bem pareciam estarem combinados. A minha impressão, como a de todos que lerem estas minhas confissões políticas, é que ambos apalpavam o terreno e investigavam a opinião de El-Rei. Seguiriam a derrota que lhes fosse indicada; mas o coração estava com aqueles com quem tinham intimas afinidades morais, compromissos tomados e, talvez, responsabilidades solidárias. Não me enganara, quando havia confiado mais na influencia benéfica de EI-Rei, do que na conversão sincera destes dois pecadores convictos. Coube a palavra ao Sr. Azevedo Castelo Branco, a sua declaração foi incisiva e muito curta. - A minha opinião, disse ele quase textualmente, é que isso tem de se fazer mais cedo ou mais tarde, portanto faça-se já. Referia-se ao segundo processo indicado pelo Sr. João Franco. Chegou-me nesta altura a palavra. Disse que vinha apenas lembrar a doutrina, que sempre havia exposto a El-Rei, desde a minha primeira entrevista. Que não era ela senão a essência do programa do actual ministério, em cuja elevada missão continuava a acreditar. Terminada esta missão, ou impossibilitado de a cumprir, o ministério devia desaparecer, deixando, em qualquer caso, um rasto de luz e de justiça na administração pública. Que acreditava em que teríamos força para cumprir o nosso programa; mas que se a não tivéssemos, longe de transigir, deveríamos deixar o poder, conservando autoridade a sete homens, que podiam ser, em momento supremo e angustioso, úteis ao país e o supremo recurso das instituições. Que já o havia dito a EI-Rei, e não me dispensava de o repetir: a existência deste ministério não podia, nem devia, ser longa; bastaria o impulso vigoroso da sua administração e a existência de um grupo de homens com prestígio, para impedirem os desregramentos das futuras situações. Que, nestas condições, por lógica e lealdade, aconselhava ainda hoje a politica de regeneração, de princípios e de moralidade. Não a achava perigosa para as instituições, que, pelo contrário, ficariam em grave perigo, seguindo-se outra. A política enérgica e firme havia de revigorar as forças do governo, trazendo-lhe as adesões dos cidadãos honrados, e radicar as instituições, provando que dentro delas podem coexistir a liberdade, a justiça e a moralidade; outra, tornando governos e rei coniventes com homens perdidos no conceito público, acabaria por condenar as instituições perante o país. Que a politica de veniaga era não só dispendiosa, mas terrível pelo exemplo. 0 traficante político é sempre caro, porque carece de ser sucessiva e indefinidamente comprado. 0 ultimo ouro é o que compra. É exemplo pernicioso, porque multiplica ao infinito estes casos. As almas resistentes constituem a excepção. Ruínas materiais e morais são a lógica consequência, já experimentada, nas sociedades dirigidas por tal politica. Que as eleições de Lisboa, quando tivessem de se realizar, não deviam preocupar o governo, que as fizesse. Mais dois, menos dois deputados republicanos no parlamento não fariam estremecer as instituições. A minha opinião seria, até, abandonar a eleição, viessem embora ao parlamento seis deputados republicanos, se para ganhá-la fosse necessário praticar imoralidades e violências. Que pior fazia ás instituições vigentes a crapulosa veniaga das eleições de Lisboa, a aliança dos governos, representantes do poder, com a imunda galopinagem e os empreiteiros eleitorais, do que os discursos, aliás quase sempre vazios de ideias, de mais alguns deputados republicanos. Paris e Berlim elegem socialistas, nas últimas eleições de deputados Madrid elegeu republicanos; e a conservadora república francesa, o império alemão e a monarquia constitucional espanhola não se aviam sentido abaladas nos seus fundamentos. Que, por tudo isto, opinava no sentido de se manter com energia o programa ministerial. 0 meu discurso foi firme e curto. Durante ele, por vezes, El-Rei fez claros sinais afirmativos. Os restantes três ministros falaram muito pouco. Tendo terminado o último, o Dr. Bernardino Machado, seguiu-se um momento de profundo silencio, depois do qual EI-Rei, tirando da boca o seu eterno charuto, disse, pouco mais ou menos, as seguintes palavras: Sou muito novo, falta-me, pois, a experiência; todavia, os presentes podem ser testemunhas da minha boa vontade. Confio no governo e para cumprir a sua elevada missão dar-lhe-ei, por minha parte, os meios de governar. Estas palavras, ou outras semelhantes mas traduzindo este rigoroso sentido, foram pronunciadas serena, pausadamente, com evidente modéstia e sinceridade. Despedimo-nos de EI-Rei. 0 Sr. Hintze Ribeiro à saída nada me disse. 0 Sr. João Franco, duvidoso, abeirou-se de mim. - V. percebeu bem o sentido das palavras de El-Rei? - Perfeitamente, respondi eu, por ali temos força para realizar o nosso plano de regeneração politica e financeira do país. 0 Sr. João Franco abanou a cabeça. Esta dúvida acompanhou-o por muito tempo. Dias depois, no gabinete do ministério do reino, renovava-me o Sr. João Franco a pergunta. Respondi-lhe que no meu espírito não existia a menor dúvida. Nem podia existir então, como o leitor vai em breve facilmente compreender. - Dar-nos-há, pois, a dissolução? - Se for necessário, é evidente, disse eu, maravilhado de tão curtos ideais. Era, pois, o que enchia naquele momento o cérebro potente do Sr. João Franco! 0 conselho de ministros havia terminado perto das cinco horas. Às seis horas partia o comboio para S. Martinho do Porto, onde estavam minha mulher e meus filhos. Sem jantar estava na estação do Rossio a essa hora. 0 Sr. Bernardo Pindela esperava o comboio de Cascais, que partia cinco minutos mais tarde. Conversámos durante alguns instantes, nem uma palavra disse acerca do que se passara no conselho, porque tal deliberação havia sido tomada entre os ministros; todavia, no paço conhecia-se o facto. A última frase do Sr. Bernardo Pindela, quando eu ia a entrar para a carruagem, foi a seguinte - Sabes o que me disse El-Rei? "Que pena não estar ali muita gente para ouvir o Fuschini!" - Excelente, respondi eu, e momentos depois partia o comboio.
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Fonte: Augusto Fuschini, Liquidações Políticas, Vermelhos e Azuis. Fragmentos de Memórias, Lisboa, Companhia Typographica, 1896
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