SERMÃO DE BARTOLOMEU DE GUSMÃO
Sermão proferido em Coimbra, em 9 de Janeiro de 1718 na Igreja paroquial de São João de Almedina
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Este sermão foi pregado a pedido dos estudantes brasileiros da Universidade de Coimbra e por isso recitado sob o signo de Nossa Senhora do Desterro, a padroeira dos emigrantes. Quando publicado o sermão foi dedicado ao Dr. Manuel de Matos, professor da Universidade, originário do Brasil como o autor do sermão. A cerimónia mostra a importância da comunidade brasileira e da sua preocupação em manter-se unida, numa época em que começava a mostrar a sua marca em Portugal, e que teria um ponto alto quando Alexandre de Gusmão, irmão mais novo do autor, se tornou secretário de D. João V, passando os interesses específicos do Brasil a estarem representados directamente no centro do poder, dando origem, em 1750, ao extraordinário Tratado do Brasil, obra do secretário do rei destruída pelo marquês de Pombal em 1761. |
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«Quando vires um grande número de filhos vir dos mais remotos climas; atravessando mares, e desterrando-se voluntariamente das suas pátrias para buscar-te; então, então será, tão grande o prazer que não caibas em ti.»
Tunc videbis, et afflues, et mirabitur,
et dilatabitur cor tuum, quando conversa fuerit ad te multitudo maris.1 Isaías
60. E
com quanta razão pudera eu agora dizer há nossa Universidade o mesmo que
Isaías diz à Igreja, e ela nos repete todos estes dias? Leva in
circuitu oculos tuos, et vide2.
Estende os olhos a perder de vista por essas dilatadas Províncias, que te
cerca em roda. Vês essa multidão que sai de todas elas, uns que vêm de
mais longe, outros que acodem das vizinhanças, de
longe, de latere?
Pois todos estes não se juntam senão para virem a ti; por ti
deixam suas pátrias, seus pais, parentes e amigos;
Omnes isti congregati sunt,
venerunt tibi3.
Que alegre, e que admirada estarás de os ver! Pois muito mais o hás-de
estar, quando vier também a ti a multidão do
mar. Quando vires um grande
número de filhos vir dos mais remotos climas; atravessando mares, e
desterrando-se voluntariamente das suas pátrias para buscar-te; então,
então será, tão grande o prazer que não caibas em ti. O teu coração
se inundará de admiração, e de alegria, e ainda ficará estreito para
tanto júbilo; Tunc
videbis,
et afflues, et mirabitur, et dilatabitur cor tuum, quando conversa fuerit
ad te multitudo maris. Mas
por grande que seja esta alegria da Universidade com os Ultramarinos, eu
sem sair daqui vos hei-de hoje mostrar outra maior. E qual será? A que a
Senhora do Desterro recebe com os mesmos Ultramarinos. Numa ocasião, em
que a Senhora se vê magoada triste, e desterrada,
não me pareceu que podia fazer-lhe maior lisonja, que representar-lhe os
motivos que tem para, alegrar-se com estes filhos. Este
será o assunto: os Ultramarinos e a alegria da Senhora do Desterro.
Deponde Senhora por um pouco o luto, e a tristeza; a multidão do mar vos
festeja. Preparai o coração para uma extraordinária enchente de júbilos;
Tunc videbis,
et afflues, et mirabitur, et dilatabitur cor tuum quando conversa fuerit
ad te multitudo maris. Bem
receio eu não poder explicar a grandeza desta alegria do mesmo modo que a
tenho na ideia; irei por degraus. É grande a alegria que se segue à
nossa Universidade de tantos outros Académicos que a ornam, que a
ilustram, que a fazem conhecida, e famosa no Mundo? Pois eu sem que eles
tenham a menor razão de queixar-se, vos mostrarei que muito mais se
alegra a Universidade com os Ultramarinos. Que excessiva será, já esta
alegria? Pois ainda é maior a que se segue à Senhora do Desterro dos
mesmos Ultramarinos. É tal a alegria que os Ultramarinos causam à
Senhora do Desterro, que ainda é maior, que a que eles mesmos causam à
Universidade. Logo me confessareis que a não encareci pouco. Na segunda
parte do nosso tema; Quando
conversa fuerit ad te multitudo maris, acho eu três razões para que
a nossa Universidade se alegre mais com os Ultramarinos, que com os mais
Académicos, e estas mesmas tem a Senhora do Desterro para se alegrar com
eles ainda mais que a mesma Universidade. Estas três vantagens ponderarei
hoje. A alegria da Universidade será o fundamento; a da Senhora do
Desterro o edifício. Só me faltam, as forças, e o ânimo para
prosseguir, sabendo que todo este grande, e ilustre auditório está
esperando de mim muito mais do que eu posso cumprir, e tendo ouvido, os
que subiram primeiro a este lugar. Aquela Senhora só me poderá livrar de
tão grande susto. Quanto
a mim este é uma muda voz da natureza, que estima o ver-se renascer na
tenra idade, e nos mais moços tem mais esperanças de ver-se perpetuada.
Este foi o segredo tão pouco entendido da transmigração de Pitágoras,
e é que os mais velhos de alguma maneira passamos para, os mais moços, e
vivemos, e nos perpetuamos neles. Fazemos como os Poetas nos dizem que
fizeram os Gigantes Os Gigantes para conquistar o Céu punham monte sobre
monte; nós para conseguir a imortalidade pomos vida sobre vida. Que muito
pois que sendo todos hidrópicos da vida, que quando mais temos vivido,
mais queremos viver, amemos e nos alegremos mais com aqueles em quem
esperamos viver mais? Por isso Jacob que se queixava de que cento e trinta
anos que tinha vivido eram poucos, amava a José mais que todos os outros
filhos; porque o gerou na velhice, quando com os anos crescia o desejo de
ver-se perpetuado; Diligebat
Joseph super omnes filios suos, eo quod in senectute genuisset eum5.
Nem vos enganeis com ver esta Universidade tão florente, e tão abundante
de homens insignes. Nada no mundo está isento de velhice. Os viventes e
os que o não são; as Cidades, as Repúblicas, os Impérios; a mesma
terra, e até os mesmos Céus envelhecem; Et
omnes sicut vestimentum veterascent6.
Esta mesma Universidade não envelheceu já uma vez em Lisboa? Que muito
pois que estime também ela o ver-se renascida nestes novos filhos, que
principiaram a vir a ela no mesmo tempo em que ela renascia. Que suspensa,
que alvoroçada esteve a Europa toda no século passado, quando esperou
que se pudesse passar da velhice à tenra idade, transfundindo um sangue
novo e vigoroso para um corpo quebrado, e caduco? Os nossos Ultramarinos
foram como um novo sangue, e um novo espírito que entrou nesta
Universidade; e ou eu me engano, ou a este novo sangue deve ela muita
parte do vigor que hoje tem, e do nome que depois disso adquiris no mundo.
Que muito pois que esta grande Águia ame mais, e se alegre mais com
aqueles, em quem se vê renascida, e renovada; Renovabitur
ut aquilae juventus tua?7 Estes
são os pensamentos da Universidade acerca dos mais moços; consultemos o
coração da Senhora. Todos sabemos que o Apóstolo, que a Senhora amou
mais, e adoptou em lugar de filho, foi João o mais moço de todos. E se
esta foi a inclinação da Senhora toda a sua vida quanto mais no seu
Desterro, onde se não vem mais que exemplos desta preferência? O Filho,
que é o mais moço desta Sagrada Companhia peregrinante é também o mais
amado. Segue-se a Mãe mais moço, que o Esposo, e também mais amada.
Deus o dispôs assim, que não sei porque inclinação particular, de que
nós não podemos penetrar o segredo, preferiu, e se alegrou sempre mais
com os mais moços. A escritura não nos diz a razão porque Deus se
alegrou mais com Abel, e com os seus sacrifícios, que com Caim; só nos
diz que Abel era o mais moço; Mais moço era Jacob que Esaú, e David que
todos os seus irmãos e não amou Deus a Esaú, senão a Jacob; não
escolheu para Rei do seu povo, senão a David. Quem chama para salvar o
Egipto, senão um mancebo? Quem para livrar a Susana, senão o menino?
Ainda feito homem conservou Deus esta inclinação; os mais moços eram os
que mais chamava a si; Sinite
parvulos venire ad me8.
Dizei Senhor, não era João quem se reclinava no nosso peito, quando vos
deixastes nesse Sacramento? Que grande fundamento nos dais, para que
entendamos, que ainda Sacramentado amais, e tendes mais no coração os
mais moços! Mas
eu ainda me não posso esquecer de David. Ver no meio desse campo um
Gigante desafiando, e infundido terror a todo um exército, sem que haja
um só que se atreva a sair-lhe, e entrar dacolá um pastorzinho, moço,
que nunca tinha visto exército, nem Filisteus, e o primeiro que via era o
mais terrível de todos, oferecer-se ao combate dar volta à funda,
arremessar uma pedra, e derrubar o Gigante! Não
parece senão que a glória, e o poder de Deus estão empenhados em
favorecer aqueles de quem se esqueceu mais a natureza e corno os mais
velhos se levantaram com o morgado da fortuna, reservou Deus para os mais
moços o morgado do amor. Mas
este mesmo David me ensina quanto mais perfeita é a alegria da Senhora do
Desterro com os Ultramarinos, que a da Universidade. No Desterro da
Senhora, onde não se examina mais que a vontade, e o coração de Deus, não
se vêem mais que razões, para alegrar-se mais com os mais moços. Esta
alegria no coração da Universidade não pode deixar de ser combatida
pelas várias inclinações dos homens. Esta que em Deus foi razão para
preferir a David, era em Saul toda a dúvida; Non
vales resistere Philisthaeo isti, nec pugnare adversos eum, quia puer es9.
Que presunção é esta, David, de querer sendo um menino sair a campo
contra o Gigante? Esta é uma trabalhosa pensão dos mais moços, que não
há quem espere deles acção grande; e o pior é que ainda depois de ver
o que os moços fizeram os mesmos que o viram se não crêem a si mesmos;
desmentem os seus próprios olhos, vêem e duvidam ver, e fazem que não vêem. Quando
David, voltou, vencido o Gigante, as mulheres foram as que lhe saíram ao
encontro com bailes, músicas, e outras demonstrações de alegria; Et
praecinebant mulieres ludentes10.
As mulheres? Pois não havia homens na terra? Quem duvidará que não
viesse nem um só dar os parabéns a David? E o pobre mancebo se retira,
da mais gloriosa acção que viu o mundo, sem que de um tão numeroso exército
se ouça um viva. Como se tal não fora; como se o não tivessem visto.
Chegaram a não estimar a vitória, só porque era moço o vencedor: e
para que conheçais, melhor de que é capaz o coração humano daqui
nasceu a indignação de Saul, daqui as perseguições de David. Ah David,
David! Em boa vos fostes meter! Deixáreis-vos vós lá estar na vossa
cabana, tangendo a vossa, harpa, e pastoreando as vossas ovelhas, onde
ninguém ouvira faltar de vós, serieis um mancebo de esperanças.
Meteu-se-vos em cabeça derrubar Gigantes? Perdestes-vos de contado.
Vencestes um inimigo, e levantaram-se contra vós muitos mil. Dois grandes
opostos vos restam ainda, em quem não cuidais, ambos poderosos, ambos
fortes, ambos mais dificultosos de vencer que o mesmo Gigante; o Tempo, e
o Costume. Assim foi sempre e assim há de ser. Quando
Rebeca mandou a Jacob, que fosse procurar alguma das filhas de Labão por
mulher, disse-lhe que para isto bastava assistir com ele poucos dias; Habitabisque
cum eo dies paucos11.
Poucos dias Rebeca? Para lá irá Jacob e lá o verá. Falou Rebeca como
quem conhecia a Jacob, e sabia o que ele merecia; mas também falou como
quem não tinha ainda bem conhecido a Labão. Era Labão um destes
austeros advogados do tempo que medem o merecimento pelos anos, e avaliam
pelo peso, e não pelo feito. Entendeu que o servir bem consistia em
servir muito; e assim os poucos dias se tornaram em sete anos, e estes tão
bem contados, que todo o cuidado, e vigilância de Jacob não bastou para
mover a Labão a que lhe perdoasse um só dia. Fugia
o sono dos olhos ao pobre Jacob; não sossegava nem de noite nem de dia
por dar conta de si; Fugiebat
somnus ab oculis meis12;
e Labão cada vez mais duro, cada vez mais intratável. Nem menos uma
hora; nem menos um instante; Da
mihi uxorem meam, quia jam tempus impletum [expletum]
est13.
Tal é entre os homens o poder do Tempo. Haveis de servir sete anos
tenhais vós tanto merecimento como Jacob. Ora
demos um passo mais, e vereis a força, do Costume. Quando Labão ao cabo
dos sete anos deu Lia por Rachel, contra o ajuste que solenemente tinha
feito com Jacob, com que se desculparia Labão? Non
est in loco nostro consuetudinis, ut minores ante tradamus ad nuptias14. Ninguém
vos pode negar que tendes justiça; mas não está em uso, não há
exemplo; Non est in loco nostro
consuetudinis. Faltar à promessa, enganar a Jacob, abusar tanto tempo
dos seus serviços, e da sua boa fé, isso sim; mas abrir exemplo, isso não.
Não se dirá na nossa terra que Labão teve a culpa de irem os mais moços
diante. Falte-se a tudo mas não se falte ao costume; Non
est in loco nostro cosuetudinis, ut minores ante tradamus ad nuptias. Graças
a Deus que tão-pouco puder tem na nossa Universidade contra o merecimento
o Tempo, e o Costume! Que tanto se alegram os mais velhos com os
progressos dos mais moços! Que tanto se empenham em que luzam, em que
brilhem! Esta é a glória de Deus. Assim luz o Sol; nisto se conhecem os
grandes talentos, em ajudar a luzir, e repartir copiosamente da sua mesma
luz com os pequenos, para os animar, para lhes infundir novo ardor, novo
espírito e novas esperanças de virem eles também um dia a ser grandes.
Mas por muito que a nossa Universidade esteja isenta desta prevenção
contra os mais moços, ninguém me pode negar, que enfim esta alegria no
coração da Universidade não pode deixar de ser sujeita a dúvidas, e
escrúpulos. Só a senhora do Desterro fiel imitadora de Deus ama mais os
mais moços sem escrúpulo, nem dúvida alguma. Mas que digo eu ama? Não
pode deixar de alijar. Que outro foi o fim do Desterro da Senhora senão
acudir pela causa dos mais moços? Sobressaltou-se
Herodes quando vieram a Jerusalém os Magos; Audiens
autem Herodes rex turbatus est15.
E qual era a causa deste sobressalto? Ouvia falar de um menino apenas
nascido, e já maior que ele, já favorecido do Céu, já prodigioso; Ubi
est qui natos est Rex? vidimus stellam ejus16.
Isto foi o que o fez inquietar-se e sair de si. Quê? Sofrerei que um
menino de poucos dias venha fazer-me a sombra? Vieram os Magos de tão
longe, e não me adorando a mim, irão adorar um menino? Não ou eu não
poderei nada, sou não há de ser assim. Ide Magos, informai-vos bem deste
menino; lte, interrogate
diligenter de puero17;
e se isto não bastar, parte algoz, desembainha a espada, não fique de
dois anos para baixo menino com vida em Belém, e todos os seus contornos.
Estes serão os pensamentos de Herodes, ardendo em ira, e comendo-se de
inveja de ver tantas maravilhas em um menino. Para o salvar deste geral
furor contra os mais moços se retirou a Senhora com o menino para o
Egipto. Tão essencial lhe era à Senhora do Desterro o defender a causa
dos mais moços. Esta é uma pensão com que começou, e um como vínculo
de morgado deste mistério. Seguros podem logo estar os nossos
Ultramarinos, que tanto a Universidade como a Senhora do Desterro se
alegram mais com eles, por serem os mais moços entre todos os Académicos;
porém a, Senhora do Desterro muito mais que a Universidade; Tunc
videbis et afflues, et mirabitur et dilatabitur cor tuum, quando conversa
fuerit ad te multitudo maris. A
segunda vantagem, que os Ultramarinos levam aos mais Académicos, é a
conversão do país em que nasceram; Conversa
fuerit. Duas conversões ou mudanças houve nas regiões Ultramarinas,
uma do não ser ao ser, outra do que foram ao que são. Na primeira
consiste a alegria da Universidade; na segunda a da Senhora do Desterro.
Passaram as Províncias Ultramarinas do não ser ao ser, que assim podemos
chamar o não se saber delas nada nas mais partes do mundo por perto de
seis mil anos. Vieram
os Ultramarinos buscar a Universidade, sem ela poder saber que teria nunca
tais filhos. Quem nos poderá dar bem a conhecer a alegria que ela
receberia então? Digam Jacob que o experimentou, com os dois netos filhos
de José. Para mim sempre foi notável o encarecimento com que os adoptou
por filhos; ainda mais notável o adoptá-los. Duo
filii tui, qui nati sunt tibi in terra Aegipti, antequam huc venirem ad
te, mei erunt, Ephraim, et Manasses, sicut Ruben, et Simeon reputabuntur
mihi18.
Eu quisera saber que mais tinham estes dois filhos de José que os dois de
Ruben, ou que os dois de Judas, que estavam no mesmo grau e tinham a
vantagem de ser netos pelos filhos mais velhos? O
mesmo Jacob o disse; Qui nati sunt
tibi in terra Aegypti antequam huc venirem ad te. Os filhos de Ruben,
e os de Judas viu-os Jacob nascer; os filhos de José que lhe nasceram
antes que Jacob entrasse no Egipto, nem os viu, nem os esperava ver;
porque supunha morto a José. Passaram na opinião de Jacob do não ser ao
ser. Pois que maior razão para a preferência? Que justo motivo para
aquelas expressões tão animadas com que os adoptou? Mas
por outra parte que alegria! Que agradável engano! Cuidar que já não
havia no mundo tal filho, e ver-se de repente com netos nascidos dele?
Quando Jacob ouvia que José era vivo, reviveu também ele e cobrou novo
alento; Revixit spiritus ejus19.
Quem duvida que reviveria duas, e três vezes, quando soubesse que não só
tinha filho, mas que desse filho tinha dois netos no Egipto? Ainda que, se
hei-de dizer tudo o que sinto, a alegria, e admiração da nossa
Universidade, quando vieram a primeira vez a ela os Ultramarinos, ainda
foi maior. Jacob ainda que não conhecia os filhos de José, ao menos
conhecia o Egipto, onde eles tinham nascido. A nossa Universidade não só
não sabia que tinha tais filhos, mas nem podia saber nem imaginar que
houvesse no mundo tal pátria. Com quanta razão poderia exclamar com o
Profeta cheia de assombro, e de júbilo; Quis
genuit mihi istos? ... et istos quis enutrivit? et isti ubi erant?20
Estes que vejo vir buscar-me em tão grande número, e que se chamam meus
filhos, quem mos gerou? Quem lhes deu o leite? Donde apareceram? Em que
mundo, ou em que parte dele se achavam? Et
isti ubi erant? Que alegre ignorância! Ter diante dos olhos os
filhos, e não saber donde, nem como lhe vieram ou sabe-lo para maior
gosto e admiração! Mas
que diferente, e quanto mais nobre motivo de alegria é o para que eu
agora vos chamo senhores? Qual será o júbilo da Senhora, do Desterro,
com a segunda espécie de conversão das Províncias Ultramarinas do que
foram ao que são? Qual era o antigo estado das vossas pátrias?
Considerarei a América só, porque para todas me faltaria o tempo.
Imaginai que vedes um país, onde nunca segou a foice, nem lavrou o arado?
Matas virgens, brenhas impenetráveis, e de espaço em espaço, uma multidão
errante, alojada, confusamente no meio desse campo; nua, silvestre, feroz?
Incapazes de comércio, inimigos de sociedade, violadores da
hospitalidade, e da fé pública. Ontem juraram a paz, e hoje marcham para
a guerra. Aquele que vedes vestido de penas bater o pé, a assobiar
medonhamente, triunfa assim do miserável cativo, que perdeu juntamente
liberdade, vida, e sepultura. Ali sentados em roda entre festas, e bailes
se estão fartando de um que pouco há cativaram. Aquele vai pendurar a maça,
e assinalar nela o número dos seus triunfos. Nem para a crueldade nos
cativos. Ali está o filho guisando o pai; este traz ainda orvalhados os
membros com o sangue do amigo. Aquele que penetra os matos, vai buscar com
que ervar as frechas. Este é todo o conhecimento que tem da natureza e do
Autor dela apenas o que lhe deram as nuvens nas confusas vozes do trovão.
Nenhuma sombra de pejo, de consciência, de Religião. Nenhuma providência,
nenhumas leis, nenhuma política, nenhum governo; Uns opróbrios do género
humano: Uns racionais de quem se chegou a duvidar se eram feras. Estes
eram os monstros que a América produzia duzentos anos há; e que é o que
produz hoje? Digam-no os nossos olhos, digam-no este Templo, digam-no
aquelas escolas. Pois pode haver maior alegria para a Senhora do Desterro,
que esta, conversão; Conversa
fuerit? O fim para que Deus levou a Senhora desterrada ao Egipto, foi
para destruir a idolatria, e introduzir ali a notícia do verdadeiro Deus.
Assim o diz S. Leão, e assim entendem São Jerónimo, e Santo Ambrósio
aquele lugar de Isaías; Ecce
Dominus ascendet super nubem levem, et ingredietur Aegyptum, et
comovebuntur simulacro Aegypti à facie ejus21.
E Palladio e Rufino afirmam que ainda no seu século se via no Egipto um
Templo, onde os ídolos tinham caído por terra à entrada de Cristo, e da
Senhora. Pois
quanto se alegrará a Senhora de ver tão felizmente executado na América
o mesmo que ela foi com tanto trabalho buscar ao Egipto? De ver o teatro
da abominação, convertido em santuário? Conversa
fuerit? Não
cessam os Escritores da história Romana de admirar-se de que aquela Roma,
que veio dar leis ao mundo, e que foi o exemplar de todas as virtudes
morais, fosse composta no seu princípio de uma mocidade estragada, criada
em homicídios, roubos, sacrilégios, e toda a sorte de crimes, que Rómulo
ajuntou, sem escolha, de todas as vizinhanças para povoadores da sua nova
Cidade. Nenhuma parte da história Romana é mais celebrada, nem com mais
razão. Nada faz mais gloriosa a Roma, que a ignomínia dos seus princípios.
Que aquela Roma produzisse esta Roma! Que daquela América saísse esta América! Parece-me
que estou vendo a Deus criar no primeiro dia do mundo essa massa informe
do caos, sem luz, sem ornato, sem ordem; uma matéria rude, um lodo perpétuo,
um vasto Horror, uma solidão medonha. Pois, Senhor, este é aquele mundo
que determináveis criar? Este há-de ser o desempenho da vossa ciência,
poder e grandeza? Eu não sou tão confiado como aquele Rei que com tão
pouca razão chamaram o Sábio, que presumia dar-vos conselhos sobre as
vossas obras; mas sofrei que vos faça uma pergunta. Não vos era
igualmente fácil criar o mundo logo, como havia de ficar depois? Pois
porque o não fizestes? Sem dúvida que este foi um novo argumento de
poder, e de grandeza. Esta escuridão é a que há-de dar mais alma àquela
luz. Esta desordem, este desconcerto é o que há-de fazer avultar mais a
beleza, a ordem, a harmonia do Universo. Quem vir esta incrível maravilha
do mundo, saiba, que daquele embrião nasceram as criaturas saiba que
daquele princípio tirou e formou Deus tudo quanto vemos; saiba-o e pasme.
Eu ao menos tenho por muito mais majestosa esta, maneira de obrar, que se
logo tivera Deus criado de nada o mundo perfeito. Nada me é mais fácil
que crer o poder de Deus; nada mais dificultoso que compreender como de
tais princípios pode chegar a tais fins. Ontem caos, hoje mundo? Isto é
ser mais que grande; isto é ser incompreensível. Qual
é o maior milagre daquele Sacramento? É converter-se o pão no corpo de
Cristo. Se sem esta conversão se pusesse ali o corpo de Cristo, quem
duvida que não seria o milagre tão grande. Por-se-ia o corpo mas não se
destruiria o pão. Admiraríamos o que era, mas não o que deixava de ser.
Por isso a mim também na América aquela primeira espécie de conversão,
ou passar de não ser ao ser, não me admira tanto nem pode ser de tanta,
alegria para a Universidade, como o é para a Senhora do Desterro o
passar, a América do que foi no que é de caos a mundo, daquela
barbaridade ímpia à justiça, e à Religião. O
estado antigo do Gentilismo cheio de idólatras, e abominações,
comparado com a formosura da Igreja, que dele se havia de compor, foi de
tanta admiração para Isaías, que em todo o capítulo 35 não catem nele
as expressões de gosto, de ver o que era a Gentilidade e o que havia de
vir a ser pela conversão. Quanto maiores serão no coração da Senhora
do Desterro os júbilos, de ver convertida a América, e não só maiores
que os de Isaías, mas ainda maiores que os do seu Desferro, quando viu
destruída a idolatria no Egipto? Que tem que ver Gentios com Gentios? O
Egipto com a América? Os Egípcios primeiros inventores das ciências,
com tantas nações bárbaras, de que o nome só vos faria horror? E
perdoem-me que eu não posso crer, que este extraordinário júbilo de Isaías
foi senão por esta parte do mundo, que de novo se uniu à Igreja. Diz que
se alegrará a deserta, e a sem caminho; Laetabitur
deserta, et invia22.
Ora a Igreja daqueles primeiros tempos nem era deserta, nem sem caminho.
Nada mais conhecido, nada mais povoado que o Império Romano, por onde ela
se dilatou. Estas duas circunstâncias não podem dizer-se com
propriedade, senão da igreja da nossa América. Deserta, porque ainda que
tinha povoadores não tinha povoações. Ínvia, porque em tempo de Isaías,
e ainda dois mil anos depois se lhe não sabia o caminho. Pois se estes são
os filhos com quem mais se alegra a Igreja; Laetabitur
deserta et invia, porque não serão também estes os filhos com quem
se alegre mais a Senhora do Desterro? Que seja Deus adorado em Sião, que
maravilha é? Mas que seja adorado em Babilónia, onde nunca se ouviu o
seu nome! Que nas covas dos Leões, e das Serpentes nasçam flores! Que os
secos areais brotem fontes! Quem tal crera? Quem tal dissera? Quem se não
rira, e o tivera por impossível? Duas vezes se rio Sara uma quando ouviu
que havia de ter filhos, sendo estéril, outra depois que a profecia se
cumpriu; Risum fecit mihi Deus23;
e daqui veio chamar ao filho Isaac, ou riso. Mas que diferente era um riso
do outro! Antes ria-se de incrédula, depois de contente; antes ria-se da
profecia, depois ria-se de se ter rido. No princípio, quem tal crerá? No
fim, quem tal creria? Quis
auditurum crederet Abraham, quod Sara lactaret filium24!
Quem creria que a América por tantos séculos estéril, havia de produzir
tantos filhos à Senhora do Desterro; Quis
crederet? Os nossos Ultramarinos são o riso, alegria da Senhora do
Desterro, e ainda com mais razão que Isaac o foi de sua mãe; que estes
filhos de Abraão não nasceram de Sara, nasceram das pedras. Esta é a
maravilha; até aqui chegou o poder de Deus; Potens
est Deus de lapidibus istis suscitare filios Abrahae25.
Oh se poderemos agora voltar atrás, e que vísseis o antigo estado do País
em que nascestes? Pasmaríeis e ficaríeis imóveis como a mulher de Loth
de ver uma mudança tão súbita! Pois quanto maior seria então o vosso
assombro, tanto é hoje maior a alegria da Senhora do Desterro à vista
desta conversão; Tunc videbis, et
afflues, mirabitur, et dilatabitur, cor tuum, quando conversa fuerit ad te
multitudo maris. A
terceira, e última vantagem, é serem os mais Académicos de perto, e de
dentro do Reino, e os Ultramarinos de longe, e de fora dele; serem os mais
uma multidão da terra, e os nossos desterrados uma multidão do mar; Multitudo
maris. Se quereis medir as finezas que a Universidade deve aos seus
filhos, comparas as distâncias. Mas que comparação podem ter vinte,
trinta, ou quando muito sessenta léguas de distância com trezentas, com
seiscentas, com mil, com três mil léguas? E que amem os nossos
Ultramarinos tanto a sabedoria, que a venham buscar de tão longe! Que
maior alegria, para a nossa Universidade? Que maior alegria para Salomão,
que vir, a Rainha. de Sabá, do fim da terra ouvir a sua, sabedoria? Eu
não duvido, que assim como esta famosa Rainha veio de tão longe, não
viessem muitos outros Reis, e Rainhas de mais perto aprender de Salomão;
mas todas ficaram escurecidos com a glória desta sábia Heroína, que
veio dos fins da terra, que então se conhecia, á finibus
terrae, buscar a sabedoria. Quem vem de perto, ouve a doce voz da
sabedoria que chama, que anima, que encanta, e com suavidade violenta a
que sigam. A muitos trás o pejo a outros a curiosidade; uns vem por
passar o tempo, outros porque se acham perto, e a vizinhança, e a ocasião
os convidam. Não são assim os Ultramarinos. Clame embora a sabedoria,
empenhe a sua eloquência, mostre aberta esta sua casa, convide a ela
todos. Perde-se a sua voz nos longes, afogam-se as águas dissipam-na os
ares, e os seus conselhos confundem-nos, e espalham se os ventos. Os que vêm
de tão longe, é necessário que se chamem a si mesmos. Eles são os que
buscam a sabedoria? Que os que estão dentro do Reino a sabedoria é a que
os busca a eles. Venha
agora toda a história antiga encarecer-me as peregrinações desses
grandes Filósofos, que correram a Itália, a Grécia, o Egipto, buscando
a sabedoria. Quanto mais fazem os que hoje aqui me ouvem? Senão quereis
que creia, que é menos passar da América à Europa, que da Itália à Grécia,
ou da Grécia, ao Egipto Quanto mais fazem não só que os antigos Filósofos,
mas ainda que a mesma Rainha de Sabá? Ela veio por terra, eles vêm por
mar. Que coisa há mais horrível, que uma viagem dilatada por mar? A nau
em contínuos balanços, o pavimento a fugir debaixo dos pés; que função
fica inteira ou que parte no corpo humano que não padeça? Prostra-se o
apetite, jaz a cabeça pesada, interrompido o sono, as forças, os espíritos
as acções tudo descaído, e sem vigor; de sorte que até a mesma alma
parece não estar isenta dos males do corpo; Anima
corum in malis tabescebat26.
Pois que diremos do susto perpétuo, já da água que faz a nau, já da
terra que se vai buscando, dos baixios, do fogo, do inimigo? Já se se
levanta uma tormenta, aqui é o horror. Tolda-se o Céu, enfurecem-se os
ventos, estremece a poupa açoitada com a fúria das ondas, as velas vão
em pedaços pelos ares. Que gritos? Que desordem? O piloto perde o tino, o
marinheiro não sabe onde acuda, e o miserável passageiro esmorecido, atónito,
pálido, e frio, vê a borda da nau submergida já debaixo das ondas, e o
centro do abismo parece que o está por instantes tragando. Assim busca a
sabedoria, quem conhece o seu preço. Assim se lavra uma coroa de glória,
e de imortalidade, a si, e a esta Universidade, Notas: 1
Isaías 60,5: Essa visão tornar-te-á radiante; teu coração
palpitará e se dilatará, porque para ti afluirão as riquezas do
mar. 2
Isaías 49,18:
Lança um olhar ao redor e vê. 3
Isaías 49,18:
todos eles serão para ti como veste preciosa. 4
Salmos 127,3: A
herança que Javé concede são os filhos. 5
Génesis 37,3:
José era o preferido de Israel, porque era o filho da sua velhice. 6
Salmos 101, 27:
Ficarão gastos como roupa, serão como veste que se muda. 7
Salmos 102, 5:
Pisado como relva, o meu coração seca, e até me esqueço de comer o
meu pão. 8
Marcos 10, 14: «Deixai
vir a Mim as crianças». 9
I Samuel 17, 33:
«Não podes lutar com o filisteu! Tu és apenas um rapaz! Ele é
guerreiro desde a juventude!» 10
I Samuel 18, 7:
As mulheres dançavam e cantavam em coro. 11
Génesis 27, 44:
Fica com ele algum tempo. 12
Génesis 31, 40:
e não conseguia pegar no sono. 13
Génesis 29, 21:
«Terminou o prazo: dá-me a minha mulher, para que eu viva com ela». 14
Génesis 29, 26:
«Nesta terra não é costume que a mais nova se case antes da mais
velha. 15
Mateus 2, 3: Ao
saber disso, o rei Herodes ficou alarmado. 16
Na versão da
Vulgata: ubi est qui natus est rex Judæorum vidimus enim
stellam ejus. Mateus 2, 2: e perguntaram: «Onde está o Rei dos
judeus recém-nascido? Nós vimos a sua estrela». 17
Mateus 2, 8: «Ide
e procurai obter informações exactas sobre o Menino. ». 18
Génesis 48, 5:
os dois filhos que te nasceram no Egipto antes que eu viesse morar
contigo, serão meus filhos. Efraim e Manassés serão para mim como Rúben
e Simeão. 19
Génesis 45, 27:
o coração de
Jacob, seu pai, reanimou-se. 20
Isaías 49, 21: «Quem me gerou
estes filhos? … quem os criou? … e estes, de onde vieram? 21
Isaías 19, 1:
Olhai Javé montado numa nuvem veloz, que entra no Egipto! Com a sua
presença, os deuses do Egipto estremecem. 22
Isaías 35, 1:
Alegrem-se o deserto e a terra seca. 23
Génesis 21,6: «Deus deu-me um
motivo de riso…» 24
Génesis 21,7: «Quem
diria a Abraão que Sara iria amamentar filhos?» 25
Mateus 3,9 e
Lucas 3,8: até destas pedras Deus pode fazer nascer filhos de Abraão 26 Salmos 106, 26: jurou que os faria morrer no deserto. |
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Fonte : Sermam que na ultima tarde do triduo, com que os Academicos Ultramarinos festejão a Nossa Senhora do Desterro Prégou o Muyto Reverendo Padre Bartholomeu Lourenço de Gusmam na Parochial de São João de Almedina aos 9. de Janeyro deste anno, estando o Santissimo Sacramento exposto. Dedicado ao Senhor Manoel de Mattos collegial no Real Collegio de São Paulo, Lente de Leys na Universidade de Coimbra, Desembargador dos Aggravos na Relação do Porto, Conego da Sé de Viseu, e Deputado do Santo Officio. Pelos Estudantes naturaes do Brasil que cursão na mesma Universidade, Lisboa Occidental, Na Officina de Antonio Pedrozo Galram, Anno de 1718.
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