Folha de rosto da
História de Portugal Restaurado
O CONDE DA ERICEIRA
DOM LUÍS DE MENESES
Prólogo de D. Luís de Meneses ao «Portugal Restaurado»
Esta cerimónia,
leitor, de escrever prólogo, mais por escusar a censura de que falto à
lei de dar princípio com ele a uma história tão grave, que por me
parecer a lei precisa, me resolvo a observa-la, porque, discursado o fim
com que se estabeleceu, avalio por inútil este trabalho, entendendo que
na escolha da história e no acerto de escrevê-la consiste toda a fortuna
dos autores. Porque nem a amizade dos leitores pode encobrir os defeitos
do escritor, nem escurecer-lhe os acertos o ódio; e entre estes dois
extremos (ordinariamente viciosos) se levanta o tribunal da justiça dos
desinteressados, por independentes, ou por não conhecidos, que costumam
dar o louvor por prémio aos beneméritos, e a censura por castigo aos
culpados. Uma das maiores
empresas do mundo é a resolução de escrever uma história; porque, além
de inumerável multidão de inconvenientes, que é necessário que se vençam,
e de um trabalho excessivo, que é preciso que se supere, no mesmo tempo
em que se pretende lograr o fruto de tantas diligências, tendo-se vencido
formar o intento, vencer a lição, assentar o estilo, colher as notícias,
lançar os borradores, tirá-los em limpo, conferi-los, e apurá-los,
quando quem escreve se anima na empresa do livro que escreveu ao pomposo título
de Autor, então começa a ser réu, e réu julgado com tão excessiva
tirania, que, tendo língua pata falar de tantas pessoas, como são as que
compreende qualquer volume, a não pode ter para deixar de ser condenado
sem ser ouvido. julgo por muito errada a opinião comum, que assenta, que
a história é paralelo da pintura; porque é tanto mais privilegiado o
pintor que o escritor, que teve lugar Apeles pondo em público uma figura
que havia pintado, de lhe emendar a roupa, que um artífice delas lhe
condenou por imperfeita, e de castigar a ousadia de outro, que, não sendo
pintor, se atreveu a arguir-lhe o perfil da figura. Não é concedida aos
escritores tanta liberdade, porque no mesmo ponto que os sinetes do prelo
acabaram de selar a história que escreveram, logo perderam toda a acção
de emendá-la, e na dificuldade de satisfazer um mundo de juízos diversos
fica provado o desengano de que não pode haver história bem avaliada de
todos. O sol, porque costuma tão repetidamente oferecer-se do berço do
Oriente ao túmulo do Ocaso aos olhos do universo, se expõe à censura
dos que, sem penetrar a majestade do seu resplendor e a utilidade dos seus
raios, sujeitando a razão ao apetite, uns o condenam de claro quando a
calma os aperta, outros de escuro quando o frio os aflige, sem reparar que
os latidos do cão celeste, que amedrontam na canícula os vapores de que
as nuvens no Inverno se formam, são, e não o sol, culpados no rigor da
calma, como as nuvens na aspereza do frio. Que importa, que a
verdade da história e pureza do estilo a formem como o sol perfeita, se
os leitores pretendem avaliá-la como querem, e não como merece? A estas, e outras
muitas dificuldades, se sujeita quem se resolve a escrever uma história
que, pela opinião comum dos historiadores, costuma ser de séculos
passados, em que mais desafogados os ânimos entram a descobrir a verdade
dos sucessos. Porém, quais serão os inconvenientes, quais os perigos
quase invencíveis, a que se arroja quem tomou a temerária resolução de
imprimir em sua vida a história do seu tempo? Em verdade que até
imaginado faz horror este intento, porque opostas e incompatíveis as
obrigações forçosas aos riscos manifestos, não parece possível,
apuradas, destilarem um composto perfeito, pois faltar à verdade fica
sendo infâmia do autor, descobri-la nas acções desacertadas cai em
descrédito dos compreendidos. Encarecer os beneméritos, será inveja dos
indignos; louvar os viciosos, opróbrio dos beneméritos; contar todos os
sucessos, é empenho invencível; calar alguns, pode ser queixa dos
interessados. Nos casos grandes e ainda nos inferiores ajustarem-se todos
em que são verdadeiramente contados, dificultosamente se poderá
conseguir, porque eu experimentei, achando-me em quatro batalhas e em
outros encontros, com muitos mil homens, não se descobrirem dois que
concordassem no mesmo facto; e tenho alcançado que a razão desta
variedade vem a ser, que como um só homem não é possível assistir a
todos os sucessos de um conflito, entendendo erradamente que cai no descrédito
de não ter parte em tantas acções diversas, todas as que não pode
alcançar com a vista desacredita por fabulosas. Se, pois, me não foi
possível contar sem contradição em várias conversações um só
sucesso na presença dos que se acharam nele, como poderei conseguir
facilmente escrevendo tantas batalhas, sítios, interpresas, e encontros
sucedidos à valorosa Nação Portuguesa por espaço de vinte e oito anos
nas quatro partes do Mundo, julgarem todos à narração das vitórias por
verdadeiras, e por certos os motivos das empresas militares, e políticas,
seguindo-se ordinariamente deste erro de discursos, e falta de notícias
uma queixa perpétua contra quem escreve, e em alguns um ódio eterno, que
muitas vezes se desafoga pelos caminhos do delírio? A este, pois,
labirinto de estradas confusas, a este encanto de fantasmas disformes me
persuadiu a arrojar-me o entranhável amor da minha Pátria, de que se
compôs com o sangue a natureza, fundado no justo temor de que não
ocultassem mortais as urnas do esquecimento, as acções gloriosas de
tantos heróis excelentes, acrescentando-se a estas razões outro maior
estímulo, que foi avaliar como obrigação precisa descobrir os motivos
do princípio e remate desta história de Portugal restaurado, que me
animei a escrever, pois como Alfa e Ómega, divino símbolo dos gregos,
foram verdadeiramente os dois golos (se unidos pela natureza, pelos
acidentes diversos) que me persuadiram a abraçar este grande empenho.
Pretendo mostrar claramente ao mundo, assim a justiça com que o Sereníssimo
Rei D. João o IV, de imortal memória, se restituiu à Coroa de Portugal,
como a justa razão com que o excelente Príncipe D. Pedro, segundo Tito,
delícia dos homens, sem mais causa que a defensa da conservação e
segurança deste Reino, tomou sobre seus generosos ombros o governo dele,
julgando-o por menos pesado que a Coroa, que, com tanta admiração dos
mestres da política, despreza, não me obrigando só o zelo da honra da Pátria
a descobrir os fundamentos de tão grandes sucessos, senão também a
segurança da minha opinião, que amei sempre mais que a própria vida;
porque, como logrei a fortuna de ter na guerra parte nas maiores vitórias,
que se conseguiram neste Reino, era necessário mostrar que a guerra foi
justa para que as acções se julgassem por virtuosas. E como da mesma
sorte me sucedeu ser um dos que assistiram às heróicas resoluções do
Príncipe D. Pedro, era preciso manifestar que foram justificadas para me
livrar da calúnia dos que, sem notícias verdadeiras, discursassem a
fatalidade de El-Rei D. Afonso VI, sem entenderem que foi deposto pelos Três
Estados do Reino, por incapaz do governo dele e por inútil para a sucessão
da Coroa. Além destas tão
urgentes causas, não foram menos poderosas para me levar a este intento,
assim a mágoa (como já referi) de ver que insensivelmente ia o tempo
consumindo a notícia de tantas acções heróicas, por faltar quem se
resolvesse a escrevê-las, porque só até o ano de 1644, que escreveu com
erradas notícias João Baptista Viraugua, veneziano, os sucessos deste
Reino, e o Conde Maiolino nas suas guerras civis se acha memória deles -,
como a pena da pouca verdade com que todos os autores castelhanos, que se
animaram a falar na guerra sucedida entre as duas Coroas, a referiram,
porque, não só trataram de encobrir com facções a grandeza das nossas
vitórias, senão que caíram na ignorância de errar os tempos das
campanhas, preferindo as sucessivas às antecedentes, os nomes aos sítios
das províncias onde aconteceram, e os cabos e oficiais que se acharam
nelas, seguindo o mesmo delito que condenaram a um Autor francês, que
imprimindo um livro, em que afirmava que Francisco I, Rei de França, não
fora preso na batalha de Pavia, e perguntando-lhe a razão por que
caluniava a sua verdade, lançando ao mundo aquela mentira, respondeu que
nos séculos futuros quem lesse a sua história e a dos castelhanos daria
crédito à. opinião a que se afeiçoasse. Estes foram os motivos que me
persuadiram a tão dificultoso empenho, animando-me juntamente a tomá-lo
por minha conta as muitas circunstâncias que me habilitaram, porque, além
de herdar de antigos e valorosos Avós ser a verdade alma da vida corno é
da história, tive a fortuna de me criar no Paço com o soberano e
esclarecido Príncipe D. Teodósio, assistindo-lhe continuamente de idade
de sete até quinze anos, e igualmente aprendendo com ele a primeira gramática
e a lição das histórias. Neste tempo fiz memória das primeiras políticas
com que El-Rei D. João deu princípio ao governo deste Reino. De quine anos comecei
a servir na guerra, em que passei por todos os postos tão vagarosamente
como qualquer soldado da fortuna, e cheguei ao maior emprego de Governador
das Armas. Achei-me em todas as ocasiões grandes da província do
Alentejo do ano de 1650 até a batalha de Montes-Claros, e fui voto em
todos os negócios de maior consideração. A guerra das províncias aonde
não assisti, e a das conquistas, conferi com os cabos e oficiais que se
acharam em todas as empresas, depois de examinar os papéis mais íntimos,
em que a curiosidade de várias pessoas se havia exercitado. As negociações fora
do Reino, que tocaram a diferentes sujeitos, escrevo por informação de
cada um deles, e pelos livros em que os Embaixadores lançaram as
Embaixadas. Os mais negócios, pelos documentos das Secretarias de Estado
e Guerra, buscando em todos, além destas notícias, a segurança de
testemunhas desinteressadas, que tiveram, sem dependência, parte em todos
os sucessos políticos e militares. Dez anos de trabalho
me levou este primeiro volume. No decurso deste tempo não houve pessoa
douta ou inteligente, que se animasse a examiná-lo, a quem o não
entregasse, sujeitando-me a qualquer censura que se me apontava, emendando
o que se me advertia, ainda que fosse contra o próprio entendimento,
entendendo que, como esta História não há-de ser só satisfação do
meu juízo o, senão dos alheios, fico melhor livrado em ter por
defensores os que a emendarem. É documento que felizmente devo ao sobre
todos prudentíssimo discurso do Príncipe nosso Senhor. Antes que começasse
a escrevê-la passei por espaço de dois anos as histórias mais selectas
antigas e modernas, conhecendo que era necessário assentar o estilo;
porque não tendo seguido mais escolas que as militares, que não costumam
deixar à lição dos livros muitas horas de exercício, haviam levado a
inclinação a equívocos e termos poéticos, frase de que os primeiros
anos mais continuamente se alimentaram, e de que me fez apartar o mais que
me foi possível a doutrina dos mestres da história, e a dos preceitos
históricos de Mascarde, italiano, e do Padre Mene, francês, que nesta
idade com grande elegância se empregaram neste assunto. Nos últimos dois
anos padeci maior trabalho, porque, tocando-me neles a ocupação de Vedor
da Fazenda da Repartição da Índia, que costuma deixar poucas horas
livres, as que me ficavam de descanso empregava neste exercício,
conhecendo que passar dia sem lançar -linha, é perder do tempo a melhor
jóia, que até agora não tem havido milagre que fosse poderoso para
restaurá-la. Uma das maiores
satisfações que tenho alcançado neste meu emprego é imprimir-se quase
juntamente com este livro os que com tanto louvor próprio, e com tanta
honra da Nação Portuguesa, escreveu o moderno Lívio Manuel de Faria e
Sousa; e como em todos chegam os sucessos que refere, nas quatro partes do
mundo, da fundação de Portugal até o ano de 1640, fica com a minha história
enfiada a de Portugal até a paz celebrada entre esta Coroa e a de
Castela, que é o assunto que compreendem estes dois volumes. Agora, leitor, ou pio
ou malévolo ou desinteressado, é necessário afiar o discurso, e eu
seguro que muito menos há-de custar aos leitores arguir do que a mim me
tem custado o escrever. E se alguma satisfação se entender que mereço
pelo meu trabalho, não quero maior recompensa que o conhecimento de que
até agora não saía ao mundo história mais verdadeira, pois sem afeição,
ódio, esperança ou temor, não perdoei a requisito algum, necessário
para a história, que me ficasse por escrever, parecendo-me só escusado
relatar defeitos particulares, tendo por opinião que os que se arrojaram
a descobri-los merecem mais o título de satíricos que de historiadores,
exceptuando aqueles que referiram vícios de que depende a narração da
sua história, como é necessário que me aconteça, quando chegar a
referir os sucessos da vida de El-Rei D. Afonso VI. Não podia Tito Lívio
eximir-se de contar os excessos de Tarquino, originando-se da sua lascívia
a mudança de Reis à República no Império Romano; mas pudera Quinto Cúrcio
encobrir os vícios de Alexandre Magno, que não lhe embaraçaram as vitórias
da Ásia. Preciso foi a João de Mariana relatar a cegueira de Henrique
VIII, de Inglaterra, na indigna afeição de Ana Bolena, sendo este
desatino a primeira causa de passar de defensor da Igreja Católica à
cabeça da perfídia herética; mas pudera Henrique Caterino de Ávila
dissimular os divertimentos de Henrique III, de França, que não
pertenceram ao governo da sua Monarquia, Faminiano Estrada os desconcertos
de Chapim Vitelo, e o Cardeal Bentivoglio, nas suas memórias históricas,
os vícios de alguns Cardeais do Sacro Colégio, e outros muitos que
usaram desta indigna liberdade. Descobrirem-se os defeitos que não
prejudicaram a interesses públicos, muitas vezes servem aos leitores mais
de estímulo que de emenda, usando dos exemplares para desculpa dos vícios
que pretendem seguir, e é Deus verdadeira testemunha de que o meu
principal intento é atalhar todos os que podem ofender a sua Divina
Majestade e ser prejudiciais à glória dista Monarquia.
Fonte: Conde da Ericeira, História de
Portugal Restaurado, vol.I, Porto, Livraria Civilização («Biblioteca
Histórica - Série Régia»), 1945; págs. 3 - 9. |
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