A Revolução de 1383 - 1385 segundo Jaime Cortesão.

 

Jaime Cortesão introduziu a questão social na visão da crise de 1383-1385. Para este autor a revolução de 1383 é nacional nas suas causas, no objectivo, e no seu âmbito, mas é também uma revolução social, «urbana e popular», devido à parte que as massas dos grandes centros urbanos têm nela e porque «as classes populares adquirem de súbito um incontestável ascendente». O artigo é publicado logo a seguir ao golpe militar do 28 de Maio de 1926 e já no exílio.

 

«A Revolução de 1383 e as suas consequências ...».

Não nos propomos fazer o relato histórico da revolução, que terminou com a batalha de Aljubarrota e a subida ao trono de D. João, Mestre de Avis. Cabe-nos apenas apontar-lhe os objectivos e definir-lhe o carácter e as consequências sociais – o que, se nos afigura, ainda não foi suficientemente esclarecido. A revolução de 1383, nacional nas suas causas próximas e no objectivo directo, evitar a usurpação estrangeira, nacional ainda porque se apresenta em conjunto (e nisto vamos contra a opinião geral) como a obra da maioria da nação e não duma pequena parte; e o resultado da colaboração, ainda que em proporções diferentes, de todas as classes, foi, pelas causas remotas, o predomínio das cidades entre os elementos decisivos, e as consequências, uma revolução social, caracteristicamente urbana e popular. As massas dos grandes centros urbanos, ainda que com o predomínio dos elementos mais estritamente populares, a grande maioria dos letrados e legistas, uma grande parte do clero, e, na fidalguia, o escol dos novos, a geração mais completamente evoluída, aderem calorosamente à revolução. Passemos agora a destrinçar, dentre a massa dos factos, aqueles que justificam, a nosso ver, esta interpretação.

A crermos no testemunho do probo Fernão Lopes, a conjura foi urdida por um letrado, Álvaro Pais, que deu o primeiro impulso à revolução, e por dois fidalgos, Rui Pereira e Álvaro Vasques de Góis. Mas, ainda o astuto chanceler, sacrificando o pundonor nas aras da razão do Estado, negociava em Alenquer um entendimento com a rainha, a quem propunha o casamento com o Mestre, e já o povo, que não via com bons olhos tais negociações, levara D. João a ficar em Lisboa e aclamava-o com delírio unânime Regedor e Defensor do Reino. Com delírio unânime, não é de todo exacto. Na assembleia popular de S. Domingos, onde o povo em massa jurou sacrificar vidas e haveres ao serviço do Mestre e da tenção que ele aceitara, não compareceram os principais da burguesia. E resolveu-se que, no dia seguinte, os convocasse à câmara do concelho para os ouvir e lhes pedir assentimento. A hora marcada, e todos juntos na câmara da cidade, perguntou-lhes o Mestre se acordavam no voto do povo que o elegera Defensor. Mas os bons dos burgueses, duvidosos do êxito de tamanha empresa, vacilavam; e, cada um murmurando ao ouvido do vizinho os seus temores, nenhum ousava responder. Então um tanoeiro, que chamavam Afonso Eanes Penedo, vendo que nenhum falava, disse-lhes, pondo a mão na espada:

«...Vós outros que estais assim fazendo? Quereis vós outorgar o que vos dizem? Ou dizei que não quereis, que eu em esta cousa não tenho mais aventurado que esta garganta, e quem isto não quiser outorgar logo há mister que o pague pela sua, antes que daqui parta.»

«E todos os que ali estavam do povo miúdo -acrescenta Fernão Lopes – aquela mesma razão disseram.» E foi, convencidos por estes sólidos argumentos, que os burgueses assentiram e por seu punho firmaram o acto da eleição. Os pequenos, a arraia-miúda, os mesteirais de Lisboa, tinham dado o segundo impulso à revolução. Em breve a eleição do Mestre seria confirmada pelas demais cidades do Reino. Afonso Penedo vingava Fernão Vasques.

Quando Álvaro Pais chegou da corte de Alenquer, com as cartas da rainha, que recusara a proposta do consórcio, mas hipocritamente segurava a cidade, o Mestre, que trabalhava já na escolha dos membros do seu conselho, recusou-se a lê-Ias, e teatralmente - o discípulo aproveitara as lições do chanceler - rompeu as cartas, publicando assim o seu firme propósito de luta. Os acontecimentos precipitavam-se com rapidez tamanha que excedia as previsões dos dirigentes. E pode dizer-se que nos dois meses seguintes a situação se esclareceu inteiramente. Estavam formados e postos frente a frente os dois partidos: dum lado, os que defendiam a independência nacional, chefiados pelo Mestre de Avis; do outro, os que, perdidos os primeiros assomos de pundonor, pois de princípio exigiam o respeito aos tratos, acabaram por bandear-se abertamente com o rei de Castela.

(...)

A leitura dessa obra, genialmente efabulada, que é a Crónica de D. João I por Fernão Lopes, deixa-nos entrever, em pinceladas magistrais, a visão épica e desvairada da revolta. «Os pequenos aos grandes depois que cobraram coração se juntavam todos em um, contra eles, chamavam-lhes traidores, cismáticos, que tinham a parte dos Castelhanos, para darem o Reino a cujo não era... E era maravilha de ver que tanto esforço dava Deus neles e tanta cobardice nos outros que os castelos que os antigos reis por. longo tempo, jazendo sobre eles com força de armas, não podiam tomar, os povos miúdos mal armados e sem capitão, com os ventres ao sol, antes do meio-dia os tomavam por força». Em Elvas já o povo se havia apoderado do castelo, apenas o alcaide mandara lançar pregão por D. Beatriz. Em Beja, a 6 de Janeiro, o povo, incitado por «um que chamavam Gonçalo Ovelheiro», cerca o castelo, põe fogo às portas, irrompe dentro dele, enquanto o alcaide, partidário da rainha, consegue pôr-se a salvo. Ao almirante Lançarote, que se dirigia a Odemira, para se alçar com o castelo e tomar voz pela rainha, vão buscá-lo ao caminho, arrastam-no para a cidade e aí o matam. Em Portalegre, o povo da vila juntou-se na manhã de 7 de Janeiro e começou a combatê-lo tão ardidamente que ao meio-dia estava tomado. Em Estremoz e em Évora, a turba amotinada apodera-se dos castelos com o seguinte estratagema: prendem e amarram as mulheres e filhos dos que estavam a defendê-los, e ameaçam de os queimar à sua vista – «que era um jogo que os povos miúdos em semelhante caso muito costumavam fazer».

Mas em Évora a revolta teve mais trágico desfecho. Tomado o castelo, a arraia-miúda, capitaneada por um cabreiro e um alfaiate, apoderou-se da cidade; e os grandes – pequenos fidalgos e burgueses, todos havidos por suspeitos, foram uns lançados fora, e outros assassinados, sorte que a própria abadessa de S. Bento não poupou. Acusada de partidária da rainha e de lançar insultos contra o povo, foram buscá-la à Sé, onde com as demais freiras assistia à missa. Ouvindo a turba que irrompia clamorosa pelo templo, a monja alucinada, posta. Sobre os ombros uma capa de cerimónia, correu para o altar, tomou da hóstia consagrada e abraçou-se a ela. Mas nem isso a livrou da onda bruta e sanguinária. No Porto, «aqueles que chamavam arraia-miúda disseram a um por nome Álvaro da Veiga que levasse a bandeira pela vila e voz em nome do Mestre de Avis,; e como ele recusasse, crivaram-no de cutiladas, aos gritos de: Traidor! Outro burguês, mais avisado, antes que o convidassem, apressou-se a tomar a bandeira e a bradar o pregão da independência. E a turba, sobre quem havia dezenas de anos pesava a excomunhão - nem os que faleciam se enterravam em sagrado -, mandou alumiar os templos, dobrar os sinos, celebrar ofícios, e foi-se aos cemitérios desenterrar os cadáveres para os sepultar de novo dentro das igrejas. Até aos mortos chegara a sua hora!

E foi assim por quase todo o Reino. A este mesmo tempo, descia o rei de Castela com o seu exército pelo vale do Mondego e a seguir o do Tejo; e nos lugares mais importantes, na Guarda, em Coimbra, em Tomar, onde lhe mataram de noite 60 homens, ele recebeu provas eloquentes de que o povo repelia o seu domínio. Até as mulheres iam buscar aqueles que tomavam o partido do estrangeiro e por suas mãos os acabavam. E, diz o cronista, a fechar a descrição do alevantamento épico: «como alguém dissesse: «Fuão é deles», não havia coisa que lhe desse a vida, nem justiça que o livrasse das suas mãos.» E isto era especialmente contra os mais poderosos ou ricos dos lugares «...e os miúdos corriam após eles, buscavam-nos e prendiam-nos tão de vontade que parecia que lidavam pela Fé» (Cap. 47) (134).

(...)

Que parte coube a cada uma das classes no êxito da revolução? Dentre o povo que explora a terra e o mar, que trabuca na oficina e mercadeja dentro e fora do Reino, avultam como elemento dominante as classes urbanas e as populações marítimas, mas dentre estas o papel da burguesia, a arraia-miúda dos mercadores, foi menos relevante que o da arraia-miúda dos mesteirais, aos quais pertence em quase toda a parte o primeiro arranque. Os homens bons do Porto, de Lisboa e Coimbra abriram sempre generosamente as bolsas para acudir a quantas despesas, e foram imensas, a luta acarretou, até para espertar o gesto tantas vezes tardo ou duvidoso dos fidalgos. Mas os miúdos, dentro do seu tanto, fizeram o mesmo; e os clérigos, por exemplo, em Lisboa, não hesitaram em sacrificar as próprias alfaias preciosas das igrejas. E enquanto Fernão Lopes continuamente atribui não só o principal papel nos alevantes à arraia-miúda, mas nomeia vários dos pequenos que se notabilizaram em Santarém, Lisboa, Évora, Beja e Estremoz, individua um único burguês com acção de vulto, e esse, aliás figura do maior relevo na história da revolução, como era de esperar, cidadão portuense. João Ramalho, «mercador do Porto, bem rico e bem atrevido no mar», dirige de combinação com o Mestre os acontecimentos políticos no grande burgo do Norte; aquando a vinda sobre a cidade do arcebispo de Santiago de Compostela, comanda no rio Leça uma audaciosa operação contra as forças galegas, que põe em debandada; finalmente é ele que se insinua de noite num batel por entre a armada castelhana que bloqueia Lisboa, para ir anunciar ao Mestre a chegada da frota do Porto, combinar com ele as disposições do ataque, e regressar, poucas horas volvidas, a Cascais, onde os navios portugueses esperavam (Cap. 120, 122 e 131). João Ramalho, representante duma classe local que, em bloco, teve parte notabilíssima na revolução, é, todavia, o único mercador que pode apontar-se entre a élite dos chefes. Indirectamente, é certo, a burguesia marítima, preparando a aliança inglesa, que trouxe ao Mestre um forte apoio financeiro e militar, pagando, não obstante, com as mercadorias que tinha nos portos de Inglaterra, parte das despesas do alistamento dos archeiros britânicos, prestou um serviço digno de lembrar-se.

Em proporção é a classe dos letrados, como já vimos, que fornece maior número de elementos dirigentes. Lembremos, para citar apenas os de maior acção, Álvaro Pais, que prepara a conjura inicial, Lourenço Eanes Fogaça, que vai a Inglaterra, acompanhado do Mestre de Santiago, negociar a aliança inglesa, e João das Regras, que nas Cortes de Coimbra, antes da batalha de Aljubarrota, arranca, com uma série de discursos magistrais, aos fidalgos da Beira, renitentemente fiéis ao princípio da legitimidade, os votos que faltavam para a aclamação unânime de D. João, como rei de Portugal. Tudo convence que o clero, cujo prestígio tanto minguara, pelos sucessivos golpes dos monarcas, apoiados no povo, e da profunda decadência do papado, aderiu em maioria à revolução. Nas Cortes de Coimbra, vêem-se, além do denodado arcebispo de Braga, os bispos de Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, Lamego e Guarda, isto é, de todas as dioceses do Reino, à excepção de duas. Se acrescentarmos que o prior de Santa Cruz também assistiu às Cortes colectivas e que o prior de Alcobaça, que representava com o anterior as duas mais poderosas dignidades monásticas, esteve sempre, com o castelo e todas as terras da Ordem, ao lado do Mestre; e que os Franciscanos, a mais numerosa e popular das Ordens em Portugal, nos aparecem de contínuo na defesa da causa nacional, supomos haver dito o bastante para convencer do que afirmamos. Quanto às Ordens militares, cujos freires pertenciam ao clero pelos votos e à nobreza militar pela origem e a profissão, o mesmo podemos avançar. Da Ordem de Avis, o próprio Mestre dirige a revolução. Das de Cristo e Santiago, aderem desde o começo os mestres Lopo Dias de Sousa e Fernão de Albuquerque, com as suas gentes e fortalezas, apoio cujo grande valor não há mister realçarmos. Da mesma Ordem do Hospital, ainda que o prior nomeado por D. Fernando, D. Pedro Álvares, irmão de Nuno Álvares, se tenha passado para o inimigo, o comendador Álvaro Gonçalves Camelo, que fora indicado pelo grão-mestre da Ordem, mas não conseguira o assentimento do monarca, para reger o mestrado em Portugal, abraça desde a origem a causa de D. João, ao qual presta os melhores serviços.

Finalmente, da nobreza propriamente dita, se a maior parte dos velhos fidalgos se inclinam para o rei de Castela, e até alguns dos que apoiam o Mestre, quando não o atraiçoam, se mostram por demais remissos em servi-lo, a geração nova lança-se com entusiasmo no partido da independência nacional. Muitos desses generosos moços fogem aos pais, ou àqueles que exercem tal autoridade, para enfileirar ao lado do Defensor do Reino. É Nuno Álvares, o futuro condestável, que abandona o irmão mais velho para vir ter a Lisboa, mal o Mestre é nomeado Regedor, e com ele Fernão Pereira e Rodrigues Álvares, seus irmãos; são Mem de Vasconcelos e Rui Mendes de Vasconcelos, que em breve ocuparão o lugar principal à frente da Ala dos Namorados, e que deixam seu pai, o grande fidalgo Gonçalo Mendes de Vasconcelos, em Coimbra, ainda fiel à rainha, e vão para Lisboa durante o cerco. É João Gomes da Silva, futuro alferes-mor do Reino, que deixa o pai em Montemor-o-Velho, ainda vacilante entre os dois partidos, e se dirige ao Porto, a embarcar-se na frota para Lisboa; é Vasco Martins de Melo, o Moço, que mais tarde morre ao fim da batalha de Aljubarrota, quando temerariamente se propunha prender o rei de Castela, e Afonso Martins de Melo, um dos mais brilhantes e fiéis companheiros de Nuno Álvares e Gonçalo Vasques, filhos de Vasco Martins de Melo, que acompanhara a rainha D. Beatriz ao ir para Castela; é João Fernandes Pacheco, filho de Diogo Lopes Pacheco e organizador das forças que vencem a batalha de Trancoso; são Mice Manuel e Mice Carlos, os filhos do almirante assassinado em Beja; é enfim o próprio chefe da revolta – selecção brilhantíssima à qual não pode recusar-se a parte decisiva na direcção da luta militar.

Nacional como dissemos, no objectivo directo não deixa de sentir-se através dos eventos singulares o carácter nitidamente popular da revolução e como consequência, de começo, certo ambiente anti-clerical, hostilidade que se estende aos nobres e até por vezes aos burgueses. Popular, foi ainda urbana; assinalou-se não só nas grandes cidades marítimas como nos centros urbanos em geral, e, se província houve que se notabilizasse no alevante, foi o Alentejo, onde desde longa data, como vimos, o tipo da aglomeração urbana dominava. A hoste de Nuno Álvares, a que venceu em Atoleiros, em Aljubarrota e em Valverde, compunha-se na totalidade de gente do Alentejo e do Algarve, com alguns poucos de Lisboa (Cai. 88 e 1,59). Froissart, o cronista francês, contemporâneo destes acontecimentos, sobre os quais escutou vários testemunhos directos, não esquecendo o de João Fernandes Pacheco, já assinalara este carácter urbano e popular da revolução, ao dizer que ela fora organizada pelas quatro grandes comunas do Reino, Lisboa, Porto, Coimbra e Évora (137).

(...)

As consequências do triunfo da revolução foram imensas e decisivas. As classes populares adquirem de súbito um incontestável ascendente. Logo nas Cortes de Coimbra, em 1385, os representantes dos concelhos pedem ao novo monarca que se rodeie de bons conselheiros, que os escolha entre as quatro classes que compunham o Reino, prelados, fidalgos, letrados e cidadãos; e vai até indicar-lhe os nomes das pessoas a escolher dentre as três primeiras classes, e ainda de vários cidadãos de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora. D. João escolheu, dentre esses, um prelado, dois fidalgos, três letrados e quatro cidadãos, um de cada uma das cidades indicadas. De golpe, no Conselho do rei ficavam dominando os cidadãos e os letrados. Na mesma reunião reclamam os concelhos igualmente que as Cortes sejam convocadas todos os anos, o que até o reinado de D. João 11 se realiza com certa regularidade. Alegam que «recebem mal e dano dos poderosos e de seus oficiais», e entendem que o Reino tem necessidade de se reformar em direito e em justiça (138). Desde então e durante um século, ouvir-se-ão em Cortes os procuradores dos concelhos insistir, por vezes em termos desabridos e altaneiros, pelas medidas que realizem aquela ideia de Reforma. Apoiado por estas reclamações unânimes e constantes, o rei, rodeado de legistas, que dão expressão jurídica a essas aspirações, começa a grande obra de unificação social, cerceando passo a passo privilégios do clero e da nobreza e sujeitando-os aos ditames da lei comum. Nas Cortes de 1387 são votadas sisas gerais com a determinação expressa de que ninguém, por privilegiado que fosse, nem o rei nem a rainha, ficasse isento desse imposto. Primeiro grande passo no caminho da Reforma. «Data desta reunião das Cortes, escreve Gama Barros, a existência do primeiro imposto de carácter geral e permanente (139).» E para se avaliar bem a importância desse contributo, bastará dizer-se que a quantia assim cobrada representou, durante o reinado de D. João I, mais de três quartos do total das rendas públicas (140). A prova do ascendente que as classes populares haviam alcançado está em que, não obstante as contínuas reclamações do clero e da nobreza, aquele imposto se manteve com o mesmo carácter até o ano de 1498, em que D. Manuel o aboliu em parte e de novo em relação ao clero.

Golpe mais profundo ainda, pois levava a reforma ao âmago da organização social, foi o que D. João I, aconselhado por João das Regras, vibrou contra a nobreza, arrancando-lhe a troco de dinheiro, mas na moeda empobrecida de então, grande parte das terras doadas, e tomando para si os vassalos dos fidalgos, que até aí serviam militarmente sob a bandeira de cada um, e pagando-lhes directamente as contias respectivas.

(...)

Com a revolução de 1383, Portugal entra na maioridade; na sua política interior dominam as tendências laicas e civilistas, condição essencial para a dignificação e liberdade dos povos; e o Estado atinge a forma de organização que lhe permite resolver o grande problema da expansão da Europa e do conhecimento do planeta.

Ao findar o século XV, com o reinado do Príncipe Perfeito, soa para a Nação um momento raro e fugidio na sua história. O princípio da liberdade e o da autoridade atingem um equilíbrio, indispensável à realização das grandes tendências nacionais. Por um lado sem a dignificação do trabalho e das classes populares, desopressas e enobrecidas pelo acesso, ainda que precário, à direcção dos negócios públicos, a Nação não teria atingido, em massa, essa consciência épica que lhe permitiu, sendo tão pequena, realizar a maior façanha de toda a história. Por outro, a obra nacional dos Descobrimentos era e tinha que ser tão secreta nos fins, metódica nos processos, e ávida de abnegações sublimes, que não haveria alcançado o termo sem os rigores duma forte disciplina social e moral, livremente aceite por quase todos e os melhores, e imposta às oligarquias dissolventes, morbo terrível que acaba por destruir as sociedades que o não podem ou não sabem eliminar com energia.


(134) Por brevidade, citamos assim a Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, parte I.
(137) V. sobre o que dissemos em revista Lusitânia, n.º 3.
(138) Palavras textuais dos procuradores. Vide Freire de Oliveira, Elementos para a História do Município de Lisboa, tomo I, p. 109.
(139) Obra cit., IV, p. 230.
(140) J. Lúcio de Azevedo, Épocas do Portugal Económico, p. 49.

Fonte:
Jaime Cortesão,
«A Revolução de 1383 e as suas consequências: A Reforma democrática da Sociedade e a Organização do Estado Descobridor. Conclusão» in
Os factores democráticos na formação de Portugal,
2.ª Ed., Lisboa, Portugália, «Obras Completas de Jaime Cortesão I - História: Volume 1», 1966,
(1.ª Ed., 1930),
páginas 133 a 158.

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