Frei Manuel do Cenáculo
Ordens que Sua
Majestade foi servido dar para se
observarem no quarto do príncipe nosso
senhor.
CÓPIA DA INSTRUÇÃO.
"Se deve ponderar que nas cortes há sempre temerários, que pretendem abusar da benignidade dos príncipes, principalmente nos princípios dos seus reinados, tentando-lhes os ânimos com alguns actos de ousadia para verem se acham neles tolerância"
Este texto é ligeiramente diferente das ordens realmente expedidas que foram também publicado por Manuel Filipe Canaveira na sua tese, Sua Majestade Fidelíssima, referida abaixo. As ordens são para o neto do rei, D. José, príncipe da Beira ao nascer, e príncipe do Brasil, quando a mãe, a rainha D. Maria I, subiu ao trono em 1777. Muito interessantes, porque mostram o tipo de educação se prestava às crianças de sangue real, assim como se explicavam os acontecimentos da História de Portugal. Mas também, como se pensava a governação. Interessante, também, é a informação que dá sobre aquilo que chama a provocação da Junta dos Três Estados, onde pontificava a grande nobreza do reino, no início do reinado de D. José. INSTRUÇÕES DADAS POR S. M. O SENHOR REI D. JOSÉ I DE BOA
MEMÓRIA PARA A EDUCAÇÃO DE SEU AUGUSTO NETO O SERENÍSSIMO PRÍNCIPE
D. JOSÉ Tenho
resoluto que o príncipe meu sobre todos muito amado e prezado neto seja
servido em quarto separado desde o dia de Nossa Senhora da Conceição
em diante. Será
servido em cada semana por um dos gentis‑homens da minha câmara,
que tenho nomeado para este importante exercício, por um dos moços da
câmara da minha guarda‑roupa dos que acabo também de nomear, por
um reposteiro daqueles de meu particular serviço, que ao mesmo tempo
nomeei; e por um varredor dos que determinei para a limpeza do referido
quarto. A
ele não subirão pessoas algumas, que não sejam reais, de qualquer
estado, e condição que possam ser, além das acima nomeadas sem
especial ordem minha. O que porém não se entenderá compreender os
ministros que têm assento, no meu real Conselho de Estado; o confessor
do mesmo príncipe Frei Manuel do Cenáculo; e o instrutor de ler, e
escrever António Domingues do Passo; os quais terão sempre entrada
livre no sobredito quarto. Além
dos referidos será chamado o cabeleireiro Carlos de Sousa quando for
necessário para executar o que pertence ao seu oficio. Logo porém que
houver feito o serviço para que for chamado, será imediatamente
despedido sem que se lhe permita fazer mais dilação. A
dignidade, a decência, e o costume das cortes fazem necessário que as
conversações com o príncipe sejam reduzidas somente aos
gentis‑homens da câmara, moços da guarda‑roupa, que o
servem e aos ministros do meu Conselho de Estado, sem que se possa
permitir que os reposteiros, varredores, cabeleireiros, ou quaisquer
outras pessoas destas, e semelhantes foros tenham com o mesmo príncipe
a menor prática Antes pelo contrário deverão sair do quarto, logo que
houverem feito o serviço que necessário for. O que porém se não
entenderá com o reposteiro, que deve ficar em cada noite para executar
prontamente o que lhe for ordenado no serviço do príncipe; ou seja
pelo gentil-homem da câmara; ou pelo moço da guarda-roupa, que dormir
no referido quarto. A
tenra idade, e a compleição do príncipe não permitem, que sua atenção,
e a memória sejam gravadas com todos os documentos religiosos, e políticos
que só em mais adiantados anos se farão oportunas. É
contudo necessário que o príncipe se costume desde logo a repartir as
horas, para viver com método, que em tão altas pessoas se faz
indispensável. Sem
que de repente seja obrigado o mesmo príncipe a levantar-se cedo com
desvelo prejudicial à sua preciosa saúde; é preciso contudo que com
cinco, dez, e quinze minutos de antecipação em cada dois, três ou
quatro dias, se vá reduzindo gradual, e periodicamente ao estado de
poder despertar sem prejuízo a horas competentes para cumprir com as
suas obrigações de cristão, de filho, e de príncipe: vindo beijar as
mãos de seus avós e pais pela parte do trânsito interior, de que o
camarista da semana deve ter uma chave, logo que acabar a oração de
levantar da cama: indo com a sua mãe à Russa, se couber no possível:
e voltando imediatamente para o quarto via recta; sem que nunca se perca
de vista na ida, e na volta, de sorte que seja divertido para conversações,
que lhe tomem o tempo desnecessariamente. As
mais precisas conversações por ora dentro do referido quarto são as
que devem verter sobre as coisas mais necessárias, e mais próprias da
idade do príncipe. Observando-se
com exacta vigilância o seu comportamento com as pessoas, que forem
obsequiá-lo: se lhe deve sugerir a propósito: Primo a compostura do
corpo, e figura, em que estará enquanto lhe falarem, sem fazer gestos
nem contorções contrárias à gravidade, e muito mais ao carácter da
sua grande pessoa: secundo que quando falar com as ditas pessoas deve
olhar para elas fixamente; sem por os olhos no chão, como envergonhado,
ou noviço; e sem distrair a vista com demora para outros objectos:
tercio que se deve propor sempre que falar aos vassalos a ideia, não só
de lhes imprimir respeito com aquela modéstia, e compostura de acções;
mas também de lhes ganhar o amor pela afabilidade, com que os receber:
quarto que isto conseguem facilmente os príncipes sem outro algum
trabalho, que não seja ou o de uma ou duas palavras obrigantes; ou
ainda somente o de um certo arzinho, e afável, quando lhe têm feito
algum serviço, ou ou lhe dizem coisa digna de reconhecimento, que não
é impróprio nos príncipes; mas neles tão natural como o é a sua
grandeza. Passando
às outras conversações mais interessantes, que o tempo irá sazonando
cada dia mais oportunamente. E sendo necessário que o príncipe não
veja, nem ouça coisa alguma que não seja ordenada a formar-lhe o espírito
sobre as boas máximas, que eu desejo, e espero em Deus que
louvavelmente governem todas as acções de sua vida. Advirto a este
respeito o seguinte. É
muito próprio dos anos em que o príncipe se acha, gostar de ouvir
contar histórias, e pedir que lhas contem para se divertir. E neste
mesmo sentido se lhe devem sugerir, e fazer gostar com estilo de conto e
com a suavidade de modo coisas tão importantes, e necessárias como as
que vão abaixo indicadas. Sendo
da grandeza de Deus Nosso Senhor, dar obras da sua omnipotência na criação
do Mundo; e da Religião Cristã, que professamos, as primeiras ideias,
que se devem dar ao príncipe: Há para lhe fazer ver e imprimir a
excelente história do Velho e Novo Testamento representado com figuras
pelo insigne Theargo Sacy; porque cada figura é um útil registo para a
recreação das primeiras idades; e nelas se imprimirem assim as úteis
noções destes significados. Nenhuma prudência será porém demasiada
a respeito desta necessária aplicação para eleger, e praticar o
virtuoso meio entre as duas perigosas extremidades da irreligião, e do
fanatismo: porque é certo que uma e outra têm levado a par de si as ruínas
dos reinos, e impérios. Porque
porém a referida prudência neste ponto pertence mais principalmente ao
cuidado do confessor; tudo o que resta fazer aos outros assistentes é
desviar com desteride (*) o príncipe do que pode distrair-lhe o ânimo,
e fazê-lo declinar, ou para a incredulidade; ou para a incontinência:
sem contudo se lhe abaterem os espíritos e se lhe tirar o brio juvenil,
o que se conseguirá permitindo-se-lhe com dissimulação, e sem ela
(conforme o caso pedir) tudo o que nos limites da cristandade, e da
nobreza costuma permitir-se aos príncipes pelos que são prudentes. Não
se devendo tão pouco criar um príncipe filósofo com aplicações
abstractas, e com discursos metafísicos. É igualmente indispensável
que as ditas conversações familiares que se tiverem no referido
quarto, vertam sobre coisas nobres, úteis, práticas, e tais como as
que vão indicadas nos exemplos seguintes. Primeiro exemplo. Pode
introduzir-se por conversação na presença do príncipe uma disputa
sobre a reputação. Perguntando um que coisa ela seja e respondendo
outro: que é o calor natural que vivifica os corpos das monarquias: que
por isso foi sempre a mais preciosa, e quando se chegar na Crónica de
el-rei D. João 11 ao facto da execução feita na pessoa do Senhor
Duque de Bragança Dom Femando, se deve estabelecer que a dita execução
foi de uma necessidade indispensável. E isto se deve provar logo in
continente tendo-se pronta a história de el-rei Dom Manuel pelo bispo
Jerónimo Osório, referindo-se o que ele escreveu judiciosissimamente
no principio do livro 1° sobre o referido facto. Com
este assunto se deve ponderar que nas cortes há sempre temerários, que
pretendem abusar da benignidade dos príncipes, principalmente nos princípios
dos seus reinados, tentando-lhes os ânimos com alguns actos de ousadia
para verem se acham neles tolerância, que habilite para maiores indulgências
os mesmos temerários:
E
que tudo referido vem a resultar que em matéria de autoridade ao rei, e
às suas leis nem se deve admitir providência de matéria, nem corra tão
pequena que se não deva advertir, e obviar primeiro, enquanto é possível,
com procedimentos ou indirectos, ou proporcionados na gravidade aos
casos ocorrentes; e nas ousadias públicas, e maiores com os mais graves
castigos, aplicados eficaz, e inflexivelmente; porque a causa pública,
que assim o requer indispensavelmente; deve prevalecer a todas, e
qualquer contemplação, ou comiseração, particulares, sendo aliás
boa, e santa economia sacrificar estas poucas vítimas à justiça para
salvar o trono, e o comum dos povos dos estragos da sedição, e da
iniquidade: e mostrando aliás a História por uma sucessiva série de
factos, que os homens, cujos corações foram uma vez corrompidos com o
veneno da soberba temerária, da intriga sediciosa, e da facção, nunca
jamais tiveram emenda, e nunca jamais deixaram de fazer mal senão
enquanto foram impossibilitados a podê-lo fazer. [...?] e
recatada menina dos olhos dos maiores monarcas do mundo, porque viam que
a reputação pode muito mais que os exércitos para a conservação das
monarquias e porque sem ela não pode príncipe algum subsistir sobre o
trono, do que se tirará ao mesmo tempo um eficaz motivo para desviar
suavemente o príncipe de qualquer distracção, a que o possa inclinar
a vontade, ponderando ele o zelo que deve ter do seu bom nome. Segundo exemplo. Em
outra semelhante conversação se pode propor, se é possível que um
reino desarmado possa ter segurança para se conservar somente pela razão
do direito, com que lhe assistem os tratados públicos, ou os títulos
hereditários? E resolvendo qualquer dos circunstantes, que é impossível
que um tal reino se possa conservar: e se deve meter à história desta
monarquia, excitando-lhe a curiosidade de a examinar, e reduzindo-a em
substância às quatro épocas que naturalmente oferecem os fastos
portugueses. Na
primeira das ditas épocas, se devem substanciar os exércitos, as
guerras e as batalhas dos primeiros monarcas destes reinos, com que não
só os defenderam dos mouros, e vizinhos, mas obrigaram uns, e outros a
saírem do nosso continente: extraindo-se estas noções da colecção
das crónicas compiladas pelo licenciado Duarte Nunes de Leão. Na
segunda época, se devem resumir os gloriosos progressos das poderosas
armadas dos senhores reis D. João ll, e D. Manuel; extraídas das admiráveis
décadas do insigne João de Barros; e da vida do Infante D. Henrique
estampada no ano de 1753. Na
terceira época se devem substanciar os factos de duzentos anos, em que
os intitulados jesuítas aniquilaram as armas e a milícia: mostrando
que pela falta delas, foi Portugal sujeito a Castela, e perdeu com a
liberdade a glória, a honra e a fama que tinha adquirido enquanto foi
armado: provando-se tudo isto com o outro compêndio extraído da
primeira parte de Dedução Cronológica e Analítica. Na
quarta, e última época se deve ponderar a restauração da glória e
nome português, da sua navegação e do reflorente comércio nestes últimos
dezoito anos, depois que as tropas, a marinha, as praças e as
fortalezas do reino se puseram no respeitável estado, em que hoje se
acham: extraindo-se para assim o mostrar a substância da divisão XV da
dita Dedução. Terceiro exemplo. Em
outras das sobreditas conversações se deve reflectir sobre a indispensável
necessidade que os príncipes têm de se aplicarem ao estudo da
Geometria: porque só com a ciência dela podem discorrer, e obrar sobre
os princípios certos, e demonstrados: podem conhecer, e reprovar os
sofismas, com que muitos homens por lisonja: por interesse próprio; e
por falso zelo intentam enganá-los: fazendo-se compreender sobre isto
ao príncipe, que por falta de conhecimento desta utilíssima arte
deixavam muitos monarcas precipitar as suas reais pessoas, e os seus
reinos nas maiores ruínas: e bastando para assim convencer a infaustíssima
guerra, com que os denominados jesuítas levaram à África o infelicíssimo
rei D. Sebastião para deixar como deixou, sepultadas naquelas infames
terras com a sua real pessoa a honra, a fama, o cabedal, e a liberdade
destes reinos, e seus domínios. Quarto exemplo. Em
outras iguais conversações se pode tratar entre os circunstantes da
geografia da Europa e da corografia dos diferentes reinos e estados que
nela se contêm: questionando-se a situação de alguns dos ditos
reinos; de sorte que o príncipe seja encaminhado a decidir a dúvida,
que de propósito se deve conservar indecisa; e seja persuadido a
demonstrar no globo a posição do país duvidado; visto que já se acha
iniciado nas divisões da esfera: e que por isso lhe servem de
divertimento a aplicação, e conhecimento das terras contidas no dito
globo. À
imitação dos referidos exemplos se devem ir acrescentando outras
oportunas conversações, e conferências sobre matérias próprias da
instrução dos príncipes. Não
deve porém esta praticar-se (enquanto couber no possível) por modo de
um estudo forçado e coactivo, que lhe faça criar aversão às lições
que há-de receber. Muito pelo contrário se lhe irão estas
introduzindo pelo referido modo de conversação, e conferência, porque
este modo não só é o mais suave e agradável, mas também o que mais
se aproveita. As
primeiras três horas próximas e seguintes ao jantar devem ser
reservadas para os divertimentos do príncipe: proporcionando-se-lhe
estas de sorte que se lhe façam gratas sem serem perigosas, ou menos
decentes. A
sua vivacidade natural, e o hábito em que se acha de altercar razões, e
sustentar porfias com as criadas dos quartos, onde até agora assistiu,
podem fazer com que o mesmo príncipe em algumas ocasiões pretenda
obstinar-se contra o que lhe é proposto em beneficio seu. E nestes casos será preciso: Primo, dizer-lhe que repare em que tudo o que se lhe propõe são ordens minhas; as quais nem os criados que o servem podem deixar de executar, nem ele deixar de obedecer: Secundo que faça reflexão em que uma desobediência às ordens do seu avó, e de seu rei é coisa tão feia, e imprópria de um tão grande príncipe, que em qualquer vassalo ordinário causa horror, e escândalo. Tercio quando isto não baste ainda se lhe deve ponderar com ar de sentimento que ser teimoso, e inflexível é vicio de um ânimo baixo, e humilde, e não qualidade de um príncipe que deve ser o exemplar de todas as virtudes: Quarto, que por isso tenho dado ordem de se me participar o que suceder, quando ele príncipe se achar em tão inesperado caso: e com efeito ordeno, que assim se observe nos casos ocorrentes; antes que o príncipe possa contrair um hábito de inflexibilidade. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda em 7 de Dezembro de 1768. REI
Notas: (*) - O vocábulo desteride não existe no português actual, embora encontremos no Grande Dicionário de Língua Portuguesa de José Pedro Machado o termo desteridade como sinónimo de destreza. É bem possível que no texto se aconselhe os assistentes de D. José a afastar com habilidade e decisão o príncipe de tudo o que o puder distrair-lhe o ânimo.
Fonte:
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A ver também: Manuel Filipe Cruz M. Canaveira, Sua Majestade Fidelíssima, Da Monarquia, Imagem da Realeza Idel e Educação do Rei no Absolutismo Português e Europeu, dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1996.
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