Lutero em 1520

Gravura de Lutero,
de 1520

 

O pensamento político de Maquiavel
segundo ADRIANO MOREIRA

 

AS TESES DE LUTERO

 

1. A luta aguda da Reforma e da Contra-Reforma, para além das querelas teológicas, alterou o panorama político da Europa, projectou maneiras diferentes de viver no mundo para onde se expandiu o Ocidente, influenciou uma nova definição do direito internacional. A crise mais grave durou um século, e a Europa ficou cheia de ruínas e de mortos. Muitos entendem que a época moderna começa com a afixação das teses de Lutero, na tarde da Festa de Todos os Santos de 1517, na porta da igreja do Castelo de Witenberg. Mas isto parece um exagero protestante. Em 16 de Março desse ano encerrou-se em Roma o V Concílio Lateranense, no palácio que a tradição dizia ter sido doado à Santa Sé por Constantino. A necessidade de muitas reformas interiores da Igreja tinha sido reconhecida, mas a hierarquia parecia forte para enfrentar a sua própria emenda e a dos cristãos. O grande cisma de Avinhão estava debelado, a autoridade do Papa reconhecida como superior à dos Concílios, Torquemada e Prierias luziam como autoridades respeitadas, a doutrina da bula Unam Sanctam de Bonifácio VIII era acatada. Mas, como tantas vezes também acontece na vida das instituições políticas, a estrutura institucional não respondia às exigências da relação funcional com a sociedade civil. E esta é sempre a mais importante. O Estado nacional, com o direito de soberania, independente da autoridade pontifical que deu carácter à Idade Média, era o nascente protagonista da vida política. O movimento de revisão interior, do qual Erasmo foi um esperançado obreiro, não veio a tempo de oferecer soluções que evitassem as divisões da cidade religiosa. A respublica chistiana, transformou-se no Ocidente dos Estados. A Itália, com o Renascimento, laicizou a vida política. A Espanha, França, Inglaterra, Holanda, Portugal, anunciavam-se como Estados nacionais. Os Estados pontifícios, sobretudo com Júlio II, seguiram a linha do tempo, e apareceram como uma potência a lidar com as outras. Existia, nas fronteiras de leste, uma ameaça geral que vinha do turco, e que deveria incitar à união dos cristãos e à reforma interior da Igreja. No colóquio que chamou A Parturiente, queixou-se Erasmo:

«A vinha de Deus é assolada e não por um só javali; periga a autoridade do clero com os seus dízimos, a dignidade dos teólogos, a majestade dos monges, a confissão hesita, os votos vacilam, desmoronam-se as leis pontifícias, a Eucaristia é discutida, é esperado o Anticristo, e no Mundo tudo está em transe de parto de não sei que monstro. E, entretanto, vencem os Turcos, e ameaçam-nos com uma invasão que não deixará nada por arrasar, se lhes sai bem a empresa que trazem.»

A necessidade de emenda dos cristãos tivera já o seu apelo no livrinho atribuído a Thomas A. Kempis, De imitatione Christi, que Lamartine chamou «livro ditado pelos anjos». As queixas de A Nave dos Loucos, de Sebastião Brand, de 1494, os Sermões, de Geiler de Kayserberg, de 1498, as Cartas, de Juán Luís Vives, o Elogio da Loucura, de Erasmo, colocavam-se no plano da emenda institucional, e viriam a encontrar expressão em vozes como as de Frei Bartolomeu dos Mártires, Frei Bartolomeu Carranza de Miranda, Frei Francisco de Zamora, no Concílio de Trento. E teriam um símbolo dramático na figura de Pio V, em 1556, caminhando descalço nas procissões romanas, penitente pelos pecados da divisão da cristandade. Mas as teses de Lutero, de 1517, iam ao encontro de mudanças para as quais os revisionistas da vida dos cristãos e da vida da Igreja não encontraram resposta a tempo de evitar a divisão. A recusa ou demora das revisões necessárias tornam inevitáveis as revoluções. Um futuro Santo, como Thomas Morus, amigo de Erasmo, fugia do real com a sua Utopia, aparecida em 1516, tanto o ideal lutava em vão contra as resistências. O que acontecia, na cidade terrena, é que estava perdido o Egipto, que passara ao domínio dos infiéis a cristandade convertida por S. Paulo e a África onde brilhara Santo Agostinho, que Viena estava de joelhos diante dos Turcos. O mesmo Erasmo, na sua Utilíssima consulta, lamentava-se: «Tão acostumados e curtidos nos têm guerras, latrocínios, alterações da ordem pública, facções, pilhagens, epidemias, penúrias e fomes, que já não os temos por males.» A reacção que deveria basear-se em severas medidas internas da cristandade e que tardavam, obrigou os Estados a tomarem nas suas mãos a disciplina dos costumes, como fez Cisneros em Espanha, diminuindo a autoridade da Igreja, sem todavia poderem tocar no alto e baixo clero ou no pontificado. Esta necessidade de manter a unidade da Cidade de Deus e de unir a Cidade Terrena pareceu ter expressão visível e promissora na eleição de Carlos V em 1519. Mas a eleição foi o resultado de uma barganha para a compra dos votos, e possível apenas porque a casa de Fugger depositou uma fiança de cento e trinta mil florins para garantir os compromissos eleitorais do candidato. O poder de origem divina tinha um preço. O próprio Lutero parece ter acalentado a esperança de conseguir, por intermédio de Carlos V, a reunião de um concilio que desencadeasse, dentro da unidade, a reforma do mundo religioso e profano. Para este efeito, dirigiu-lhe uma petição em 1520, mas isso não o impediria de escrever claramente a Prierias que a guerra também era uma solução: «Se castigamos os bandidos com a espada e os hereges com o fogo, porque é que não havemos de atacar com as armas a esses cardeais, a esses papas, a toda essa Sodoma romana, que subjuga e corrompe a Igreja, lavando as nossas mãos no seu sangue para nos salvarmos e aos nossos do mais perigoso incêndio universal?»

2. O movimento das descobertas, o início da execução do projecto do Euromundo por portugueses e espanhóis, a constituição de grandes impérios ultramarinos, parecem dar mais carácter ao século XVI político, do que a Reforma que se inscreve como uma das variáveis que convergiam na constituição dos Estados nacionais. O afluxo do ouro; a alta dos preços; a degradação do valor da terra como base das fortunas, substituída pela riqueza mobiliária, e implicando nova estrutura dos estamentos sociais; a guerra permanente, aquém e além-mar, obrigando à racionalização do Estado e dos seus aparelhos coercitivos, em clima de mobilização permanente, com os inevitáveis corolários da centralização do comando e da obediência pronta: tudo encaminhava para o progresso do Poder Real, para o absolutismo, dentro das unidades políticas que iam ser protagonistas da epopeia da frente marítima europeia. Tornou-se rotina discutir-se a constituição dos impérios ultramarinos desta primeira fase da construção do Euromundo obedeceu a finalidades económicas ou a finalidades religiosas, sobretudo desde que o marxismo implantou o fascínio da sua metodologia. Mas o ponto de vista integrador da ciência política não aceita esse maniqueísmo. O Estado é agente de uma pluralidade de finalidades, instrumento de homens que são ao mesmo tempo filhos do Céu e da Terra, o que nessa data se revela evidente na prática e na doutrina política. Com efeito, um dos problemas que o movimento da Reforma coloca em evidência é o de saber se devem existir duas instituições, a Igreja e o Estado, ou se apenas este deve subsistir, voltando eventualmente a assumir as funções daquela. Se Lutero sustentava que «o mundo da lei (estadual) é simplesmente o mundo do pecado», também por outro lado radicalizava o princípio cristão da obediência ao poder civil, sempre de origem divina. A verdadeira Igreja, sustenta ele, é a Igreja invisível, e propõe a supressão da condição eclesiástica, com os seus privilégios tradicionais pelo que o homem, sendo pecado, fica apenas em face ao Estado cujas contribuições se alargam. Embora não tenha sido lisonjeira a sua opinião sobre a maioria dos príncipes alemães, não encontrou finalmente a quem mais confiar a regência da sociedade civil e atribuir-lhes a missão espiritual de fazer valer a verdadeira fé A carência de uma doutrina política era evidente no luteranismo do fundador. A própria noção do Estado moderno nascente era-lhe desconhecida. Conhecia o princípio da autoridade, na forma ainda medieval que revestiam os principados da Alemanha do seu tempo, e a ele se acolhe, numa atitude evidentemente conservadora e reaccionária. Talvez por isso não entendeu os movimentos de revolta popular da época, e os condenou. O individualismo cristão da reforma ficava sem defesas na cidade terrena contra o totalitarismo do Estado. Podia todavia acontecer que do mesmo princípio luterano, segundo o qual, vivendo de acordo com a lei divina, o cristão é livre, sacerdote e rei, decorressem outras atitudes simultaneamente em relação à Igreja e ao Estado: a ruptura com a ordem temporal no sentido de reduzir a sociedade civil ao reino de Cristo na terra a criação de um Estado teocrático, ou a ditadura religiosa; complementar a doutrina pela racionalização do Estado para enfrentar as necessidades modernas Todos os caminhos foram percorridos.

3. O primeiro foi representado pela guerra dos camponeses. Esta tinha alcançado o seu ponto mais alto justamente quando Lutero resolveu casar com Catarina de Bora, em 1525. O descontentamento dos camponeses havia anos que crescia. A inflação, resultado do afluxo de metais preciosos que a Europa da frente marítima trazia das novas descobertas; a consequente carga fiscal disparada pelos senhores para enfrentarem os encargos pessoais e da autoridade; os direitos reservados de caça e pesca; a impossibilidade de acesso à livre propriedade; o escândalo do fausto das hierarquias civis e eclesiásticas; o preço crescente dos produtos, tudo representava para os camponeses a expropriação injusta feita pelos senhores, equivalente àquela que os tributos devidos a Roma representavam para os próprios senhores. Estes últimos encontraram na questão da venda de indulgências a expressão da injustiça que os camponeses simbolizavam, para si, nos dízimos e outros privilégios dos príncipes. Os dois problemas devem ser aproximados para compreender o estado geral de anarquia que se instalou. A reforma luterana começou por este último ponto, mas não lhe ocorreu que o critério poderia ser aplicado à vida interior dos principados e senhorios. Alexandre VI, antecessor de Júlio II e de Leão X, que reinava em 1516, havia decidido que o Papa tinha o poder de tirar as almas do Purgatório. Tem de evidenciar-se que a doutrina, expressa em todas as bulas de indulgências, acentuava que era também necessário que os fiéis se arrependessem e confessassem os seus pecados. Mas o que ficava evidente, e estimulado pela avidez fiscal, era que as indulgências, que se podiam obter pelas obras de piedade, também poderiam ser conseguidas com o dinheiro destinado a contribuir para obras agradáveis a Deus. Eram porém as autoridades eclesiásticas quem definia a bondade da obra. Refere-se, por exemplo, que o príncipe Alberto de Brandeburg, arcebispo de Magdeburg, tomado pelo gosto do fausto renascentista, tinha pedido 30.000 florins emprestados aos banqueiros Fugger, e considerou que a venda das indulgências poderia habilitá-lo a pagar a dívida, ao mesmo tempo que contribuiria para custear a guerra contra os Turcos e a construção da Basílica de S. Pedro: concedia, para tais efeitos, indulgência plena às almas de parentes e amigos dos contribuintes, libertadas imediatamente das penas do Purgatório. O rumor público sustentava que Alexandre VI incluíra o financiamento da saga da sua filha Lucrécia Bórgia, a construção da Basílica de S. Pedro, e o fausto da sua corte, na mesma categoria de obras piedosas que os rendimentos das bulas cobriam. Esta prática não deixou de provocar as críticas de religiosos fiéis, como foi o caso do frade Onofrio Panavino e do padre Bodman. O que os afligia era que a doutrina das indulgências viesse a resumir-se na síntese atribuída, maldosamente, a um religioso dominicano, Pedro Tetzel, vendedor e sustentador da doutrina das bulas, e que seria a seguinte: «Logo que o dinheiro tilinta no mealheiro, a alma salta do Purgatório.» A visita que o frade Agostinho Lutero fez a Roma a 1511, a vida dissoluta que ali encontrou, levaram-no a meditar no destino das contribuições recolhidas pela venda das indulgências, e tem reflexo nas suas teses: « Um papa realmente consciente do seu dever distribuiria tudo aquilo que possui, iria até ao ponto de vender a Igreja de S. Pedro para o benefício de muitos daqueles que os seus vendedores de indulgências despojam do seu dinheiro.» Quando, em 15 de Outubro de 1518, Lutero compareceu em Augsburg perante o cardeal Cajetano de Vio, intimado a retratar-se, não pode afastar-se do que sustentava nas suas Resolutiones disputationum de indulgentiarum virtute: Deus não faz depender a salvação de um homem da vontade de outro homem; o Papa não tem poder de absolver senão na medida em que Deus tenha perdoado; só pela fé podemos participar no tesouro de graças e indulgências que o sacrifício de Cristo constituiu a favor dos homens. Uma nova disputa foi marcada para 27 de Junho de 1519, em Leipzig, na qual Carlstadt, discípulo de Lutero, seria o sustentador da linha protestante, assistido pelo seu mestre. Por este tempo, Lutero já não tinha dúvidas de que a sua inspiração vinha directamente de Deus, mas ainda não dispensava a Igreja Católica. O defensor das teses pontifícias era Eck. No decurso do debate, Lutero foi levado a rejeitar a autoridade dos papas, dos concílios, dos doutores da Igreja, sempre que o adversário os citava contra as suas opiniões. Ficou apenas apoiado na «palavra divina». Esta estava na Bíblia, que necessitava de ser lida e interpretada. Rejeitando todas as outras autoridades, Lutero ficava apenas com a sua própria: o leitor e o livro. A Igreja Católica era um intermediário dispensável. A bula Exsurge Domine et judica causam tuam, publicada por Leão X em 15 de Junho de 1520, cominava excomunhão no caso de Lutero não se retractar no prazo de sessenta dias. Lutero responde com uma verdadeira excomunhão da Igreja Católica: faz o célebre sermão considerando indigna a expressão «sacrifício da missa», e sustentando que o sentido desta era apenas o de cobrar as oferendas destinadas aos necessitados; publica um Apelo à nobreza alemã (1520) e logo em seguida o livro Do Cativeiro Babilónico da Igreja (1520), ambos os trabalhos chamados «escritos reformadores». Com eles incita a nobreza a combater «os maiores ladrões e salteadores que apareceram ou aparecerão sobre a terra», e que eram Leão X e a hierarquia católica; incita o poder temporal a agir contra o poder espiritual, abonando-se em S. Paulo; príncipes, nobres e autoridades municipais deviam interditar os pagamentos dos benefícios devidos a Roma; a Igreja alemã deveria organizar-se em bases nacionais; a soberania papal sobre os vários territórios deveria ser extinta. Em Dezembro tornava-se efectiva a excomunhão decretada por Leão X, e o facto foi confirmado pela bula Decet romanum pontificem, de 3 de Janeiro de 1521. No dia 10 do mês anterior, em Wittenberg, diante do povo aglomerado e com a assistência dos professores, os estudantes queimaram publicamente, em grande festa, os livros de direito canónico, os escritos contra Lutero, e a bula de excomunhão. Os seguidores da nova linha passariam a professar a justificação exclusivamente pela fé, a negação do livre arbítrio, e que a Bíblia era a única fonte da verdade religiosa. Entretanto, tendo sido eleito imperador Carlos V, este em 6 de Março de 1521 citava Lutero para comparecer na Dieta de Wormes. O citado resumiu depois em poucas linhas, numa carta para o seu amigo Cranach, o que se passara: confessou a autoria dos escritos e recusou a retratação. A Bíblia ficou como o livro nacional da Alemanha, tal como Jan Huss a fizera dos checos, e Calvino tentou fazer em língua francesa com a sua Institution Chrétienne. Carlos V, em 26 de Maio, juntou a sua condenação à do Papa. A luta política iria travar-se entre os príncipes, o Estado nacional abria caminho. Mas o leitor da Bíblia não era apenas Lutero: novos profetas, como Nicolas Storck e Marx Stubner, demagogos, dissidentes, destruidores de imagens, e povo comum, também podiam declarar-se intérpretes autorizados. Se a libertação de Roma podia ser de grande conveniência para os príncipes, o mesmo texto que inspirava Lutero podia ser de grande apoio para o povo comum que dos príncipes dependia. A doutrina evangélica amparava a revolta dos camponeses, e S. Paulo, de que Lutero era grande leitor, tinha enunciado que não havia senhores nem escravos. A terra fora uma doação ao género humano, e não atribuída como logradouro aos poderosos. Os comícios multiplicavam-se na Alemanha, para discutir a religião, a política e o pão de cada dia. A Bíblia andava nas mãos de todos os pregadores, fundados no ensinamento luterano de que todo o cristão é padre pelo baptismo e habilitado a doutrinar. Não adiantava aos reformadores, como Melanchton, predicar que a doutrina dizia respeito à Cidade de Deus, e não à vida civil. O povo armado atacou os conventos, as propriedades laicas, as abadias, os castelos, e destruía, pilhava, incendiava. No Ducado de Baden, na Suábia, no Palatinado, na Baviera, em Hesse, na Turíngia, na Francónia, foi a devastação. Heróis guerreiros, como Hans Müller, impunham uma autoridade extensa. Apenas na Suábia, estima-se que o exército dos revoltados reunia 300.000 homens. As suas reivindicações constavam de um caderno de 1525, cuja redacção é atribuída ao pastor Balthazar Hubmaier, e que diz o seguinte:

Ao leitor cristão paz e graça divina por Cristo.

Existem hoje anticristãos que exploram a oportunidade da reunião dos camponeses para blasfemarem dos Evangelhos, dizendo que a consequência será que ninguém obedecerá mais, que cada um se revoltará e rebelará, que se reunirão e congregarão em grande violência, que cada um pretenderá reformar as autoridades eclesiásticas e seculares, expulsá-las, e até massacrá-las; julgamentos perversos, ímpios, aos quais respondem os artigos seguintes:

1.º Que temos o direito de escolher nós próprios os nossos pastores, e destitui-los no caso de não procederem convenientemente;

2.º Visto que um dízimo legítimo é admitido pela Escritura Santa, nós consentimos em pagá-lo dentro de proporções honestas. O pastor receberá o que for necessário para a sua manutenção e dos seus, e o supérfluo consagrado à ajuda dos pobres da paróquia. Quanto ao «pequeno dízimo» não o pagaremos. Os animais foram criados por Deus para o livre uso dos homens; este dizimo é injusto, inventado pelos homens, nós não o pagaremos mais;

3.º Os insurgentes declaram que não querem continuar a ser tratados como coisa e propriedade do seu senhor; pelo seu sangue Jesus Cristo resgatou a humanidade inteira, tanto o pastor como o imperador;

4.º Não é justo nem caritativo que os camponeses não tenham qualquer direito sobre a caça dos bosques e dos campos, os pássaros do céu, os peixes dos rios, e que sejam constrangidos a sofrer as depredações feitas nos seus campos pelos animais das florestas;

5.º Os bosques, que antes eram bens comunais devem voltar a essa condição; e os habitantes do lugar devem ter o direito de ali colher com que se aqueçam e cozinhem de acordo com o juízo de um homem bom;

6.º As obrigações de trabalho, que se vão tornando cada vez mais pesadas, devem ser aliviadas;

7.º Que o senhor não exija mais dias de trabalho do que o estabelecido na carta comunal;

8.º Numerosas terras estão sobrecarregadas de censos muito elevados, que sejam reduzidos de acordo com a avaliação de um árbitro autorizado, «de modo que o homem dos campos não trabalhe sem retribuição, todo. o trabalhador tem direito a um salário»;

9.º A justiça já não é distribuída com equidade, as penalidades são constantemente modificadas; que se observem os antigos textos;

10.º Que os campos e terras subtraídos ilegalmente ao património comunal lhe sejam devolvidos;

11.º Que sejam abolidos os direitos sucessórios, espoliação da viúva e do órfão, contrária à vontade de Deus;

12.º Que se qualquer dos artigos acima estabelecidos for contrário à Santa Escritura, a ele renunciamos imediatamente. Que a Paz de Cristo seja com todos! Amen.

Lutero, esquecendo a sua própria revolta, acabou por condenar totalmente o movimento. Publicou um panfleto Contra as hordas de salteadores e assassinos camponeses, onde incita a autoridade civil a massacrar, incendiar, destruir os revoltosos: «Os nossos príncipes devem pensar que são, nas actuais circunstâncias, agentes da cólera divina e que esta manda castigar semelhantes tratantes. Um príncipe que não o fizesse pecaria altamente contra Deus; faltaria à sua missão. Um príncipe que, nesta circunstância, evitasse derramar o sangue, tornar-se-ia responsável pelas mortes e por todo o mal que estes canalhas possam ainda vir a praticar.» Na batalha de Boblingen, a 12 de Maio de 1525, os príncipes coligados liquidaram a revolta. Os camponeses morreram cantando Vinde Espírito Santo. O seu herói, Thomas MüIler, aprisionado a 15 de Maio, foi decapitado. As bolsas existentes foram brutalmente reduzidas. O prudente Erasmo não deixou de responsabilizar Lutero pelo sangue derramado.

4. A tendência dos chamados «fantásticos», os extremistas que pretendem eliminar a cidade terrena e submeter os cristãos a um regime que totalmente dispensa a espada temporal, o serviço militar e o imposto, nunca mais desapareceu completamente. Mas, esmagada a revolta dos camponeses, o caminho que ganhou relevância política foi o de Calvino, que realmente levou a uma ditadura teocrática. O seu pensamento foi expresso na Instituição Cristã, de 1536. Tratava-se de enfrentar a mudança dos tempos, que tivera em Jerónimo Savonarola, um dos arautos mais recentes. Este vaticinara, com larga antecedência, a morte de Lourenço, o Magnífico, a morte do Papa Inocêncio, a reforma da Igreja e o aparecimento de um novo Ciro. No sermão de 6 de Novembro de 1494 trovejara: «Lembrai-vos de Nínive, a qual, embora lhe tenha sido anunciada por Deus a sua destruição, sem embargo foi libertada pela penitência que fizeram seu rei e todo o povo. Já o repeti várias vezes: faz penitência porque não tens outro remédio. Insisto, repito de novo e estou disposto a repeti-lo sempre, este é o único remédio; e não há outro que te possa salvar.» Agite poenitentiam. O frade acabou mal, e não conseguiu a melhoria da conduta do poder político. Justamente Calvino, mais homem do mundo que Lutero, menos provinciano, frequentador das Universidades de Paris, OrIeães e Bruges, tinha o sentido, não apenas da autoridade dos príncipes medievais, mas do Estado moderno nascente. O problema das relações entre a Cidade de Deus e a Cidade Terrena era encarado com sentido realista. Calvino não tem dúvidas sobre que o domínio da graça divina e o domínio da razão não são coincidentes, ainda que o homem seja o centro de ambas. A liberdade cristã, que inteiramente fascinava os «fantásticos», podia e devia coexistir com a necessidade de obedecer à autoridade civil, que vem de Deus, como ensinara S. Paulo. A organização da sociedade civil depende da razão, orientada pelo facto de corresponder a uma necessidade universal do homem. Isto não significa que a ordem terrena, e portanto o direito positivo, seja independente da ordem espiritual: existe uma relação de hierarquia a favor da última. Os homens não estão neste mundo senão pela vontade de Deus, e nele devem realizar as suas finalidades humanas naturais. A conclusão era a de que a autoridade civil, ordenando o necessário para as necessidades terrenas do homem, estava ao serviço dos fins sobrenaturais da humanidade. A autoridade vem de Deus, e mesmo despótica deve ser obedecida, pelo que a revolta, nunca é legítima. A passividade política é o que se exige dos povos. A coerência das finalidades tinha levado Zwingli, em Zurique, a defender uma mistura de teocracia e democracia, com a consequência final de a Igreja ser governada pelo Conselho da cidade. Calvino, em Genebra, procura organizar a Igreja em termos de impor o respeito da doutrina cristã ao governo da cidade. O resultado foi uma verdadeira ditadura religiosa, uma teocracia severíssima. O órgão eclesiástico, chamado Consistório, e segundo a lei de 1541, vigiava não apenas pela disciplina eclesiástica, mas também pela autenticidade cristã de toda a vida pública e privada. É uma Cidade-Igreja. Mas como o Livro Santo é interpretado de acordo com as exigências da razão, e não da autoridade, o princípio liberal vai-se autonomizando.

5. Este fermento do liberalismo transforma-se em ponto crucial das relações entre a Cidade de Deus e a Cidade Terrena. A divisão conceptual de Santo Agostinho não era muito fácil de entender pela gente comum. Mas os factos da vida implicaram uma identificação de cada um dos conceitos pela acção contraditória, conflitante e sangrenta, das instituições terrenas que eram a Igreja e o Estado. E até, mais concretamente, dos chefes vivos que os representavam. De Lutero em diante, o tema será objecto da meditação permanente dos pensadores políticos, até aos nossos dias. A racionalização do Estado vai encontrar aí um dos seus temas favoritos. Os termos de referência parecem ser estes: ou a religião é concebida como um credo do qual decorrem implicações para todos os aspectos da vida terrena, passagem para a vida eterna; ou a religião é entendida como um conjunto de crenças de alguns, que não abrange a totalidade da vida, e não pode afectar a posição dos que não partilham o mesmo credo, mas pertencem à mesma sociedade civil. No primeiro caso a intolerância é a regra de conduta natural; no segundo, a tolerância é uma virtude cívica fundamental. Nesta última hipótese, e referindo-nos apenas à Bíblia, esta será passiva de leituras diferentes das várias igrejas que a aceitam, mas todas terão de coexistir com a leitura dos não crentes, que apenas a consideram um documento da mesma espécie dos poemas de Homero. Obviamente, todas as questões levam ao problema das relações políticas entre a Igreja e o Estado. As possibilidades lógicas de uma solução não são muitas: integração da Igreja e do Estado; subordinação de uma instituição à outra; autonomia e separação; perseguição. O Velho Testamento, pondo o corpo eclesiástico ao serviço do rei, traz uma versão da primeira espécie de relações. Esta parece ter sido a inspiração de Hobbes ao definir a comunidade cristã como: «uma reunião de homens professando a religião cristã, vivida na pessoa de um soberano». Tal atitude significa a negação da possibilidade de duas cidades na terra. Explicava que «não existe na terra uma igreja universal à qual todos os cristãos estão subordinados, isto porque não existe poder na terra ao qual todas as outras comunidades estejam submetidas. Existem cristãos nos domínios de diversos príncipes e Estados; mas cada um deles está subordinado a essa comunidade, da qual é membro; e, consequentemente, não pode estar subordinado às ordens de qualquer pessoa. E por consequência uma igreja, tal que possa ordenar, julgar, absolver, condenar, ou praticar qualquer outro acto, é a mesma coisa que uma comunidade civil, composta de homens cristãos; e é chamada estado civil, porque os súbditos são homens; e igreja porque os seus súbditos são cristãos». Para os escritores desta linha, a definição da Igreja inclui o Estado, não havendo separação entre os domínios temporal e espiritual. Ao contrário, S. Tomás sustentava que os fins sobrenaturais do homem se atingem levando uma vida virtuosa, e que a direcção do homem para a realização de tais fins divinos pertence à Igreja, e foi confiada aos sacerdotes, com a cabeça visível no Romano Pontífice, responsável também pela direcção espiritual dos príncipes cristãos. Dante, na sua Monarquia substituíra a coordenação de S. Tomás pela completa separação. O seu pressuposto lógico é que o homem existe para duas finalidades, uma ligada à sua natureza corruptível de ser que vive transitoriamente na terra, outra ligada à sua natureza incorruptível que o destina à salvação em Deus. Para realizar a primeira, a terrena perfeição, deve seguir os ensinamentos da razão e, para realizar a segunda, deve ater-se aos ensinamentos espirituais que transcendem a razão, de acordo com a esperança, a fé e a caridade. As duas instituições, Igreja e Estado, devem viver como o Sol e a Lua, de tal modo que «o poder temporal não recebe do poder espiritual a sua essência, nem o seu poder, ou autoridade, nem regras de funcionamento, em sentido estrito; aquilo que recebe é a luz da graça». Mas o que vai triunfar, sobre estas concepções medievais, é a total separação, com um dos seus fundamentos ideológicos mais notórios no Defensor Pacis de Marsílio de Pádua, e finalmente a perseguição da Igreja pelo Estado, com base no princípio leninista de que «a religião é o ópio do povo».

6. É no século XVI que se assiste à desintegração do feudalismo na Europa Ocidental e ao processo de acumulação do capital. Os mercados alargam-se, cresce a produção mercantil, desintegra-se a economia tradicional, as guildas ou corporações perdem a função, surgem as manufacturas que nesse século se tornam importantes na Inglaterra, na França e ria Holanda. O movimento das descobertas inicia a integração política e económica do mundo todo sob a direcção europeia. As rebeliões populares são frequentes e toda a vida civil tradicional é abalada pela necessidade de organizar o Estado (burocracia centralizada exército permanente, mobilização ordenada) e de organizar a economia (produção industrial, construção naval, navegação, racionalização do comércio). As lutas religiosas, que terão o seu ponto final apenas com os Tratados de Vestefália de 1648, terminando a guerra dos 30 anos, vão cobrindo uma profunda modificação ideológica que afecta as concepções da vida civil e da vida pública, e terá a sua síntese no Estado nacional. Este resultado final mostrou-se independente do sinal religioso, protestante ou católico, que veio a dominar cada unidade política. Em todos os territórios mudaram as concepções sobre o homem e a natureza, e o ascetismo tradicional é levado de vencida entre as elites pela curiosidade do movimento chamado Humanismo: os modelos já não são os santos e os ascetas, mas sim os oradores, os poetas, os historiadores, os artistas, os cientistas, os estadistas. Em toda a Europa da frente marítima, independentemente do novo teor das relações com Roma, o Renascimento leva à reivindicação de um Estado virado para a cidade terrena, centralizado e eficaz. A religião passa mais a ser uma componente do Estado nacional, importante para a coesão interna do mesmo povo submetido a um poder político geral e independente de qualquer autoridade exterior, do que um sinal de unidade da república cristã. A liberdade que triunfa é a liberdade do Estado, com o nome de soberania. Nas circunstâncias dessa época, a luta pelo que podemos chamar a liberdade civil era conduzida em nome da defesa das instituições feudais ameaçadas, dos privilégios e poderes das corporações que limitavam o poder real. Os argumentos então usados virão mais tarde a ser ressuscitados para defesa dos direitos do homem. Entretanto, as forças burguesas nascentes que haveriam de vir a sustentar a teoria moderna dos direitos individuais utilizando muita da argumentação dos seus vencidos adversários feudais, aquilo que sustentam é o absolutismo do monarca e, com este, a liberdade nacional. O catolicismo, que se reorganizou a partir do Concilio de Trento, e assistiu a um renascimento notável da sua expansão e função no mundo novo que criava, tendo como um dos agentes fundamentais a nova ordem de Santo Inácio de Loiola, procurou novas formas de cooperação com o Estado, mas em nada impediu que o agente da política mundial fosse o Estado nacional. Os mestres dos novos tempos serão Nicolás Maquiavel (1469-1527), cujas duas obras fundamentais, O Príncipe e o Discurso sobre os Dez Primeiros Livros de Tito Lívio, iniciam a autonomia da ciência política; e Bodin (1550-1596), cujos Six Livres de Ia République definiram o primado do factor político, e caracterizam a soberania como permanente, intransmissível, una e indivisível. A síntese da nova atitude é muitas vezes simbolizada pelo dito veneziano, em resposta às críticas sobre as condescendências de Veneza com os turcos: Siamo Veneziani poi Christiani.

7. O panorama e as técnicas das relações internacionais mudam consideravelmente a partir do século XVI. Quando chega o Renascimento, o direito das gentes não era escrito, nem objecto de estudo sistemático. A prática das entidades políticas mais importantes revelava porém certas regras e pressupostos geralmente observados. Em primeiro lugar as fronteiras não tinham a importância que assumiram com o Estado nacional: a circulação das mercadorias e das pessoas, determinada pelas feiras, pelas celebrações religiosas, pela atracção das universidades, não tinha grandes obstáculos. Ao mesmo tempo, a pluralidade das autoridades territoriais, implicava na tributação sucessiva e, esporadicamente, algumas servidões e discriminação contra os estrangeiros, que em tempos normais se agrupavam em «nações» com os seus cônsules eleitos e garantias. A guerra implicava usualmente que os estrangeiros naturais do país inimigo fossem expulsos, e os usos no campo de batalha eram severos. Os prisioneiros eram frequentemente mortos, quando não era previsível um resgate satisfatório, e também, outras vezes, utilizados nas galeras. Mais tarde, as práticas chamadas de «boa guerra» amenizam os costumes, e tornam frequente a troca recíproca. Nos teatros da guerra, a violência contra pessoas e bens era sem limites, havendo, por exemplo, nos exércitos alemães um oficial chamado o mestre do incêndio. A pilhagem era um direito normal dos soldados vitoriosos na guerra terrestre, assim como o direito de represálias o era no tráfego marítimo. Era conhecido o instituto da neutralidade, e o comércio gozava de uma espécie de neutralidade permanente. Tudo vai ser revisto com o aparecimento do Estado nacional. As embaixadas permanentes são um instrumento que acompanha a criação dos exércitos permanentes. Os consulados permanentes, exigidos pela pluralidade das nações instaladas em grandes portos terão o seu estatuto definido. As alfândegas acompanham a nova importância das fronteiras físicas, e implicam que o regime tradicional dos privilégios consentidos unilateralmente ao comércio exterior, seja substituído pelos acordos bilaterais entre Estados. Finalmente, para regular as relações entre Estados que já não pertenciam à República Cristã mas sim ao Ocidente dos Estados, o direito internacional, racionalista, vem constituir um dos sinais, talvez o mais importante, identificador da comunidade ocidental que se preparava para assumir o governo da totalidade do mundo. É muito significativo que o título do livro de Grotius que, no começo do século XVII, marca a data da mudança, se chame De jure belli ac pacis.

Fonte:

Adriano Moreira, «As teses de Lutero», Estratégia, vol. VIII: Legado Político do Ocidente (O Homem e o Estado), n.º coord. por Adriano Moreira, Alejandro Bugallo e Celso Albuquerque, Lisboa, 1995, págs. 120-133.

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