John Locke
O Segundo Tratado sobre o Governo Civil
An Essay Concerning the True Original Extent,
and End of Civil Government é o segundo tratado do díptico intitulado Two
Treatises of Government, e onde John Locke expõe a sua teoria política.1
O primeiro tratado, de tom polémico, empreende, ponto por ponto, a
refutação do paternalismo de Robert Filmer baseado na Bíblia. Aí rejeita
Locke que os princípios políticos sejam extraídos de passagens da
Escritura, tal como Filmer defendia na obra Patriarch e rejeita, nomeadamente,
a presunção de derivar das Escrituras a forma de governo mais recomendável,
regras de vida ordenadas divinamente, e a família patriarcal enquanto modelo
da vida política.
Se o paternalismo de Filmer fundamentava a defesa da monarquia absoluta na ideia que os homens não são livres mas sim escravos, a refutação de tal tese no First Treatise permite fundar a limitação do poder dos governantes na liberdade e igualdade naturais dos seres humanos. O Second Treatise propõe-se, pois, estabelecer de um modo positivo "a origem, os limites e os fins verdadeiros do poder civil". O conjunto formado por ambos os tratados constituiu, na época, uma das mais vigorosas refutações da monarquia absoluta e legou à posteridade a concepção da exigência de subordinar a actividade dos governantes ao consentimento popular. Na filosofia política de Locke, os seres humanos apresentam-se como iguais por natureza e apenas o consentimento voluntário pode submeter alguém à autoridade de outro. Filósofo inglês mas talvez, segundo Leo Strauss, menos filósofo do que inglês nos seus tratados políticos; autor de escritos sobre filosofia, religião, educação e política com influência decisiva nos acontecimentos políticos e na consciência cultural do Ocidente séculos após a morte; pensador considerado ecléctico, pragmático e empírico e cujos escritos contribuíram para a fundação da democracia liberal; intérprete das tendências intelectuais e políticas dominantes dos finais do século XVII na Inglaterra; John Locke, "empirista" e teórico da "razoabilidade" (reasonableness), parece fundamentar a sua teoria política mais numa evidência racional que nos dados da experiência. O segundo tratado é considerado um livro assistemático, em parte por causa do seu carácter fragmentário, em parte pela vinculação a acontecimentos contemporâneos e, em parte, porque Locke não chegou a revê-lo de forma satisfatória. A obra continha doutrinas perigosas para o absolutismo, algumas das quais anatematizadas por régio decreto de 1685, quando Locke abandonou o país. pese embora o seu centrismo moderado no contexto político inglês da sua época. Para além da defesa da monarquia moderada, Locke tornou-se um dos clássicos do liberalismo político, ao propor uma articulação de temas fundamentais: a igualdade natural dos homens, a defesa do regime representativo, a exigência de uma limitação da soberania baseada na defesa dos direitos subjectivos dos indivíduos. Os princípios fundamentais desta teorização incluem a liberdade natural e a igualdade dos seres humanos; o direito dos indivíduos à vida, liberdade e propriedade; o governo pelo consentimento; o governo limitado; a supremacia da lei; a separação dos poderes; a supremacia da sociedade sobre o governo; o direito à revolução. O princípio de governo pelo consentimento, com finalidade e poder limitados, é o fundamento do constitucionalismo liberal, sendo os dois Two Treatises of Government considerados como a expressão clássica das ideias políticas liberais. Frequentemente caracterizados como a primeira expressão secular da teoria política moderna, os Dois Tratados costumam ser lidos como uma defesa do individualismo e do direito natural dos indivíduos à propriedade privada. Mais recentemente, esta ortodoxia interpretativa tem sido modificada pelos investigadores filosóficos e pelos historiadores da Revolução Inglesa de 1688. Têm sido objecto de particular atenção as características religiosas e tradicionais do pensamento político de John Locke, resultantes da sua aceitação de hipóteses fundamentais do aristotelismo e dos princípios cristãos. Esta abordagem interpretativa apresenta Locke como um descendente da linhagem clássica do pensamento político, tanto quanto um fundador da teoria política moderna. Neste sentido, o pensamento político de Locke mover-se-ia muito mais perto de Hooker, de Francisco Suarez e de Aristóteles, do que os ideólogos liberais gostam de admitir. As citações do direito natural procedem de Hooker - o "judicioso Hooker", na expressão de Locke - e de Grotius, cujos livros certamente conhecia. É certo que parece referi-los devido a uma estratégia de respeitabilidade, mais do que por intenção de análise comparativa. Mas de igual modo, embora seja um crítico da epistemologia e psicologia cartesianas, a doutrina lockeana das ideias deve bastante a Descartes e a teoria psicológica do sensualismo partilha com o filósofo francês elementos mecanicistas e a prova ontológica da existência de Deus. No lugar de um Locke como autor moderno laico, autores como Richard Aschcraft, David Walsh, (After Ideology, 1992) Ellis Sandoz, (A Government of Laws, 1990) sugerem um pensador mais tradicionalmente religioso. A lei natural constitui e protege os direitos à vida, liberdade e propriedade e assim garante a cada indivíduo direitos que não lhe podem ser legalmente retirados, nem alienados, sem processo em devida forma. Locke sintetiza tais direitos fundamentais, ou inalienáveis, como "vida, liberdade e propriedade". Os princípios na lei natural poderiam ser atingidos através da razão porquanto, por um lado, a lei natural identifica-se com lei divina, por outro lado, com os ditames da razão. Neste sentido, e conforme reservas expressas por A. J. Simmons (.......) Locke argumenta com a ideia de direitos inalienáveis, (rights manifestoes) porque os considera constitutivos da natureza humana providencialmente criada, e não porque os considere produtos do voluntarismo humano. No entanto, Locke demarca-se claramente dos clássicos, por estar mais preocupado em delinear a origem e a extensão do governo do que em indicar a melhor forma de governo. A partir do postulado da lei natural de que a primeira propriedade de cada indivíduo é o seu próprio corpo, Locke concebe que o homem também tem a propriedade das coisas necessárias à conservação da vida, conquanto delas se tenha apropriado com plena justiça. Para isso, é necessário respeitar as promessas e assegurar o bem-estar alheio. O que é bom para a sociedade como um todo, também é bom para os indivíduos. Vemos assim, emergir a noção de confiança (trust). E enquanto os liberais de 1688 (Whigs) recorriam, preferencialmente, à noção de contrato governamental entre o rei e o povo, Locke preferiu manter a centralidade do conceito de trust, mais tipicamente inglês, como salienta Marcel Prélot, e mais ancorada na tradição religiosa e medieval da fides, como salientam os autores atrás citados. Para além dos princípios ontológicos da política, em que Locke se revela um clássico moderno, toda a construção lockeana assenta metodologicamente no que Hans Blumenberg designou (Work on Myth, 1985) como a hipótese heurística fundamental por detrás das grandes construções da teoria política da modernidade sobre a sociedade, a cultura e o Estado. Essa hipótese heurística é a separação entre estado de natureza e estado de sociedade. No hipotético estado de natureza, os seres humanos vivem juntos, livres e iguais, sem um superior. Estão sujeitos aos ditames da lei natural que define a condição humana caracterizada pela família e a propriedade. Para Locke, o estado de liberdade em que cada um apenas conta consigo mesmo não é um estado de licenciosidade; os homens sentem-se solicitados a obedecer à lei natural, porque são seres racionais. Por isso mesmo, o estado de natureza não apresenta a instabilidade polémica que Hobbes, Rousseau e outros lhe atribuem, e que conduziria necessariamente à guerra de todos contra todos. Segundo Locke, a guerra procede da intervenção do dinheiro como um elemento exterior aos equilíbrios da lei natural. No estado de natureza, a organização familiar tem particular importância e validade. Locke argumenta que o poder do pai (que o compartilha com a mãe) sobre os filhos e criados, é uma forma primordial de autoridade. A família é importante nesta visão das origens da sociedade civil ou política. Ela constitui um símbolo de um consentimento e de uma obrigação de maior amplitude - que se revelará no governo civil ou político - e um primeiro estádio de uma comunidade voluntária da humanidade - com continuidade na mesma sociedade civil ou política. Desta forma, mesmo na família, não deve existir governo arbitrário. Na comunidade política, porém, será necessária uma eleição para exprimir o consentimento de cada indivíduo em vincular-se à sociedade civil ou política. O modelo heurístico de Locke descreve, então, a passagem do estado de natureza ao estado de sociedade. No estado de natureza, o poder executivo da lei natural residia em cada indivíduo; posteriormente, os homens consentiram viver em sociedade comum, regulada pelo poder executivo comum da lei natural. O consentimento entre indivíduos cria a sociedade e o consentimento dentro da sociedade cria o governo. É nesta origem e finalidade do governo civil (The True Original Extent, and End of Civil Government) que assentam a célebre divisão do poder comum em executivo, legislativo e federativo - modelo do constucionalismo - e a apologia do governo misto baseado na separação dos poderes, que confere um novo alcance ao bem conhecido tropo político de Políbio. A divisão dos poderes não é um mecanismo político-jurídico que, por si só, garanta a limitação do governo, como pensarão constitucionalistas positivistas de séculos posteriores. O governo - e o seu poder federativo e executivo - é que já é uma entidade limitada pela sua origem no consentimento gerado na sociedade - e é na sociedade que reside a origem do poder legislativo, inicialmente presente no indivíduo autónomo. Todos os seres humanos adultos são por natureza livres e iguais, sem qualquer mútua subordinação natural. O poder político legislativo criado só existe com o seu consentimento. Na relação entre os três poderes, Locke considera o poder legislativo supremo, porque o poder de definir leis deve ser superior ao poder que meramente as executa. Poder executivo e federativo estão nas mesmas mãos porque ambos exigem o controlo sobre a força armada; contudo, são distintos. O poder executivo deve subordinar-se ao legislativo, como se verificará no cabinet system instaurado pela revolução de 1688, ou seja, nos primórdios dos governos responsáveis perante parlamentos eleitos. Mas o poder federativo é muito menos capaz de ser controlado pela legislação, pelo que deve confiar-se, também, na virtude moral da prudência de quem o domina. Donde a justificação da tutela monárquica como responsabilizadora do gabinete ministerial governante, e o papel equilibrador da oposição de Sua Majestade. A mesma dualidade verifica-se na fundação americana com a dualidade entre o governo dos estados e o governo federal, a que se adiciona o papel vigilante do partido oposicionista. A constituição americana de 1787 foi a prova que a doutrina de Locke não se esgotava nas especificidades do sistema muito peculiar do King-in-Parliament da Grã-Bretanha, mas poderia sugerir novas e republicanas fórmulas de governação. Para a posteridade, ficou o conceito central de que, qualquer que seja a forma de governo, o poder legislativo e o executivo não devem ser controlados simultaneamente pelos mesmos indivíduos. Todo o contrato social deve estipular as garantias e os equilíbrios, (checks and balances) indispensáveis à sociedade civil ou política. Restava tirar as consequências da delimitação da finalidade e do poder governamentais. A função e finalidade do governo consiste na protecção da vida, da liberdade e da propriedade. A limitação do poder é o corolário da limitação da finalidade: um poder conferido apenas para a preservação da vida, liberdade e propriedade não pode destruir, escravizar nem empobrecer as pessoas. Um governo não pode possuir poder absoluto arbitrário sobre a vida e a propriedade das pessoas; nunca deve tornar-se mais poderoso do que os indivíduos que serve. A limitação é, também defendida, em termos tradicionais de prioridade do bem comum e da lei natural sobre a lei civil. Esta concepção de comunidade política permitia aliar o interesse comum aos interesses individuais. O carácter decisivo da doutrina da propriedade no Second Treatise só é possível caso o conceito de propriedade dos bens se subordinar ao de personalidade e ao de liberdade humana. A propriedade, no sentido amplo, é a tradução concreta da subjectividade e da liberdade, que só ganham sentido quando os produtos da minha actividade se tornam conhecidos. Neste sentido, a doutrina lockeana de propriedade é análoga à sua concepção de autoridade política e à sua teoria do conhecimento. Quer se trate de bens naturais, de instituições políticas ou de noções morais, é sempre a subjectividade humana que é criadora; é a subjectividade humana que fundamenta o valor económico, a legitimidade política e a validade conceptual. A mesma subjectividade justifica que, sendo a igualdade individual é outro dos direitos garantido pela lei natural, Locke não defende que todas as pessoas sejam absolutamente iguais; os indivíduos diferenciam-se entre si em inteligência e capacidades físicas.
Mendo Castro Henriques Manuel Araújo Costa 1. Peter Laslett estabeleceu na edição de 1960 a versão crítica do texto original de Two Treatises of Government de John Locke. |
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