John Locke
ENSAIO SOBRE O GOVERNO CIVIL
CAPÍTULO
XIII.
DA SUBORDINAÇÃO DOS
PODERES DE UMA REPÚBLICA. 149. Ainda que numa república
estabelecida, sustentando-se sobre a sua própria base, e obrando segundo a
sua própria natureza, que é, obrando para conservação da sociedade, não
pode haver mais do que um poder supremo, que é o legislativo, ao qual os
outros estão e devem estar subordinados; todavia, o legislativo sendo tão
somente hum poder fiduciário, que deve obrar para certos fins, fica ainda no
povo um poder supremo para remover ou alterar o legislativo, todas as vezes
que achar que o legislativo obra em contrário à confiança que nele
colocou. Porquanto, sendo todo o poder que é dado como delegação para se
obter um fim, limitado por esse mesmo fim, todas as vezes que esse fim for
manifestamente desprezado ou oposto, a confiança necessariamente se deve
perder, e o poder devolver-se para as mãos daqueles que o deram, os quais o
podem colocar novamente onde julgarem mais conveniente para seu sossego e
segurança. E por isso a sociedade retêm perpetuamente um poder supremo para
se salvar das tentativas e desígnios de qualquer corpo, até mesmo dos seus
legisladores, todas as vezes que eles forem tão loucos ou tão perversos,
que meditem e executem desígnios contra as liberdades e propriedades do súbdito
pois que não tendo homem algum, ou sociedade de homens, o poder de entregar
a sua conservação, e por conseguinte os meios de a obter, à vontade
absoluta e domínio arbitrário doutrem; todas as vezes que qualquer intentar
constitui-los debaixo duma tal condição de servidão, eles terão sempre o
direito de conservar aquilo que lhes não é permitido ceder, e de se
desfazerem daqueles que invadem esta lei fundamental, sagrada, e inalterável,
da própria conservação, para a qual eles entraram em sociedade. E portanto
pode-se dizer a este respeito que a sociedade é sempre o poder supremo, não
o considerando porém debaixo duma forma qualquer de governo; pois que este
poder do povo nunca pode ter lugar em quanto o governo não for dissolvido. 150. Em todos os casos, em quanto o
governo subsiste, o legislativo é o poder supremo. Porquanto, aquele que
pode dar leis a outro, deve necessariamente ser seu superior; e como o
legislativo não é legislativo da sociedade, senão pelo direito que tem de
fazer leis para todas as partes, e para todos os membros da sociedade,
prescrevendo regras às suas acções, e dando poder para a sua execução,
aonde elas são transgredidas; por isso o legislativo deve necessariamente
ser o supremo, e todos os outros poderes, em quaisquer membros ou partes da
sociedade que se achem, derivados dele, e seus subordinados. 151. Naquelas repúblicas em que o
legislativo não está sempre em ser, e onde o executivo está devem obediência
senão à vontade pública da sociedade. 152. O poder executivo colocado em
qualquer outra parte que não seja uma pessoa que tem também quinhão no
legislativo, é visivelmente subordinado e responsável ao mesmo legislativo
e pode ser mudado e deposto a aprazimento; de maneira que não é o poder
supremo executivo, que está isento da subordinação, mas sim o poder
supremo executivo investido num, que tendo hum quinhão no legislativo, não
tem hum legislativo superior e distinto a quem seja subordinado e responsável
em mais do que ele mesmo concordar; de maneira que ele não está mais
subordinado do que julgar próprio, o que facilmente se pode concluir que será
bem pouco. Não necessitamos falar doutros poderes ministeriais e
subordinados, que se contêm numa república, pois que são tão
multiplicados e tão variados, segundo os diversos costumes e constituições
das diferences republicas, que é impossível dar-se uma conta particular
deles todos. Basta dizer-se deles para o nosso objecto presente, que nenhum
deles tem autoridade alguma, alem daquela que lhes é delegada por comissão
e concessão positiva, e todos eles são responsáveis a algum outro poder na
república. 153. Não é necessário, nem mesmo conveniente, que o legislativo esteja sempre em ser, mas é absolutamente necessário que o poder executivo o esteja; por isso mesmo que não há sempre necessidade de se fazer leis novas, mas há sempre necessidade de se executarem as leis que estão feitas. Quando o legislativo entrega o poder da execução das leis que ele fez, em outras mãos, ainda tem poder para o reassumir dessas mãos, quando tiver causa para isso, e para punir qualquer «má administração contra as leis. O mesmo acontece também a respeito do poder federativo, sendo este e o executivo ambos ministeriais e subordinados ao legislativo, que, numa república bem ordenada, como já se demonstrou, é o poder supremo. Supondo-se também neste caso que o legislativo consta de diversas pessoas (porquanto se for uma pessoa única, não pode deixar de estar sempre em ser, e por conseguinte, como suprema, terá naturalmente o poder supremo executivo juntamente com o legislativo), elas podem ajuntar-se e exercer o seu poder legislativo nas estações marcadas, ou pela sua constituição original, ou pelo seu próprio adiamento, ou aliás quando lhe agradar, se nenhum destes casos tiver tempo marcado, ou se não houver outro meio prescrito para as convocar. Porquanto, o poder supremo achando-se depositado nelas pelo povo, está sempre nelas, e podem exerce-lo quando lhes agradar, excepto se pela sua constituição original estão limitados a certas épocas, ou se por um acto do seu poder supremo elas se adiaram para certo tempo; e logo que chega esse tempo, elas tem direito de se ajuntar, e trabalhar de novo. 154. Se o
legislativo, ou qualquer parte dele, constar de representantes eleitos pelo
povo por aquela vez somente, e que depois tornam para o seu estado ordinário
de súbditos, não ficando com quinhão algum na legislatura senão por uma
nova eleição; este poder de eleger deve também ser exercido pelo povo, ou
em certas ocasiões demarcadas, ou então quando ele é ordenado para isso: e
neste último caso, o poder de convocar o legislativo está, ordinariamente
no executivo, o qual tem uma destas duas limitações enquanto ao tempo: que
ou a constituição original exige que eles se ajuntem e trabalhem em certos
intervalos, e então o poder executivo não faz mais do que dar
ministerialmente algumas direcções para a sua eleição e reunião, segundo
as formas devidas: ou então é deixado à sua prudência o chamá-los por
meio de novas eleições, quando as ocasiões ou exigências do público
requerem a reforma de leis antigas, ou precisam de leis novas ou reparação,
ou prevenção de quaisquer inconveniências, que existem ou ameaçam o povo. 155. Pode-se aqui
perguntar, que é que acontecerá se o poder executivo, estando de posse da
força da república, fizer uso dessa força para impedir a reunião e os
trabalhos do legislativo, quando a constituição original ou as exigências
publicas o requererem? Ao que respondo, que ao uso da força para com o povo
sem ter autoridade, e o obrar em contrário aos poderes que tem quem assim
faz, constitui um estado de guerra com o povo, o qual tem direito a reassumir
o seu legislativo no exercício do seu poder. Porquanto, tendo criado o
legislativo com o fim dele exercer o poder de fazer leis ou em tempos certos
e determinados ou quando houver necessidade; todas as vezes que ele for
impedido por alguma força de fazer aquilo que é tão necessário para a
sociedade, e em que consiste a segurança e conservação do povo, este tem
direito a removê-lo por meio da força. Em todos os estados e condições, o
verdadeiro remédio para a força empregada sem autoridade, é opor-lhe a força.
O uso da força sem autoridade constitui sempre aquele que a usa num estado
de guerra, como o agressor, e o sujeita a ser tratado como tal. 156. O poder de
convocar e dissolver o legislativo, conferido ao executivo, não lhe dá
superioridade sobre o legislativo; pois que este poder não é mais do que um
depósito fiduciário, colocado nele para a segurança do povo, em algum
caso, que a incerteza e mutabilidade dos negócios humanos não tenha podido
determinar por uma regra certa e fixa. Porquanto, não sendo possível que os
primeiros fundadores do governo antevissem os acontecimentos futuros duma maneira tal, que os
habilitasse a prefixar uns períodos tão exactos de duração e regresso ás
assembleias do legislativo, para todos os tempos futuros, que pudesse
corresponder exactamente a todas as exigências da república; o melhor remédio
que se podia achar para este defeito, era confiar isto à prudência dum que
estivesse sempre presente, e que tivesse a seu cargo o vigiar pelo bem público.
As reuniões constantes e frequentes do legislativo, e suas prolongadas
assembleias sem necessidade, não podiam deixar de ser pesadas ao povo, e com
o tempo deviam necessariamente produzir inconveniências muito perigosas; e
todavia a mudança repentina dos negócios pode algumas vezes ser tal que
necessite do seu socorro imediato. Qualquer demora que haja no seu
ajuntamento pode pôr em perigo o público, e também algumas vezes os seus
afazeres podem ser tantos, que o tempo marcado para a sua sessão seja
demasiadamente curto para os seus trabalhos, e prive o publico daquele benefício
que unicamente se pode conseguir da sua madura deliberação. Que é o que
poderia então fazer-se neste caso afim de prevenir que a sociedade não
esteja exposta em tempo algum a perigo iminente, duma ou doutra maneira, por
meio de intervalos e períodos fixos, marcados para a reunião e trabalhos do
legislativo, senão o confiá-lo à prudência dalguns, que estando
presentes, e ao facto do estado dos negócios públicos, possam usar desta
prerrogativa para o bem público? E aonde se poderia isto constituir melhor
do que nas mãos daquele, a quem se confiou a execução das leis para o
mesmo fim? Portanto, supondo que a regulação dos tempos para a reunião e
sessão do legislativo não esteja determinada pela constituição original,
ela cai naturalmente nas mãos do executivo, não como um poder arbitrário,
dependendo só da sua vontade, mas sim com esta presunção, de que ele o
exercerá em todo o tempo unicamente para o bem público, segundo as ocorrências
dos tempos e mudança dos negócios o exigirem. Não me pertence indagar
neste lugar, se os períodos marcados para o seu ajuntamento, ou se uma
liberdade deixada ao Príncipe para convocar o legislativo, ou talvez uma
mistura, de ambos estes casos, traz consigo a menor inconveniência; mas
somente mostrar, que não obstante o poder executivo poder ter a prerrogativa
de convocar e dissolver tais assembleias do legislativo, nem por isso lhe é
superior. 157. As coisas deste
mundo estão num fluxo tão constante, que nada permanece no mesmo estado por
muito tempo. Assim o povo, riquezas, comércio, poder, mudam a sua condição,
florescentes e poderosas cidades vem a arruinar-se, e com o andar do tempo não
mostram mais do que sítios abandonados e desolados, no entretanto que outros
lugares que não tem sido frequentados se tornam em países populosos, cheios
de riqueza e de habitantes. Não mudando porem as coisas sempre igualmente, e
muitas vezes o interesse particular conservando costumes e privilégios,
tendo já cessado os seus motivos, acontece frequentemente que nos governos,
aonde uma parte do legislativo se compõe de representantes eleitos pelo
povo, com o andar do tempo esta representação se torna muito desigual e
desproporcionada às razões sobre que foi estabelecida no princípio. Os grandes
absurdos, que se podem seguir da continuação dum costume, para que já não
há razão, facilmente se podem conhecer, quando vemos o simples nome duma
cidade, de que não resta nem tanto como as suas próprias ruínas, onde
apenas se pode achar mais casas do que um curral, ou mais habitantes do que
um pastor, mandar tantos representantes para a grande assembleia dos
legisladores, como hum Condado inteiro, cheio de população, e de riquezas
4. Os estrangeiros se admiram disto, e
todos devem confessar que necessita de remédio: ainda que muitos julgam difícil
o achar-se, porque sendo a constituição do legislativo o acto original e
supremo da sociedade, anterior a todas as suas leis positivas, e dependendo
inteiramente do povo, nenhum poder interior pode alterá-lo. E por isso o
povo, uma vez constituído o poder legislativo, não tendo, num governo tal
como este de que temos estado a falar, poder para obrar enquanto o governo
existe; esta inconveniência é considerada como incapaz de remédio.
Nota: 4. Estes defeitos e outros que havia na representação nacional da Inglaterra foram remediados pelo Acto da Reforma passado em 7 de Junho de 1832, o qual tirou a certas pessoas a posse em que estavam de mandar membros para o Parlamento, por serem senhoras desses casais que noutro tempo formavam povoações grandes, e estendeu o direito de nomear membros a certas cidades e terras populosas e ricas, que não tinham parte na representação nacional: alem disso aumentou ou diminuo o número de membros que mandaram outras, segundo a sua população tinha crescido ou diminuído. (nota do tradutor)
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