Antero de Quental

Antero de Quental, c.1865

DISCURSO DE ANTERO DE QUENTAL.

 

Discurso proferido por Antero de Quental, numa sala do Casino Lisbonense, em Lisboa, no dia 27 de Maio de 1871, durante a 1.ª sessão das Conferências Democráticas

 

CAUSAS DA DECADÊNCIA DOS POVOS PENINSULARES
NOS ÚLTIMOS TRÊS SÉCULOS

Parte 2/3

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Rasga-se porém o século XVI, tão prodigioso de revelações, e com ele aparece no mundo a Reforma, seguida por quase todos os povos de raça germânica. Esta situação cria para os povos latinos, que se conservavam aliados a Roma, uma necessidade instante, que era ao mesmo tempo um grande problema. Tornava-se necessário responder aos ataques dos protestantes, mostrar ao mundo que o espírito religioso não morrera no seio das raças latinas, que debaixo da corrupção romana havia alma e vontade. Um grito unânime de reforma saiu do meio dos representantes da ortodoxia, opondo-se ao desafio, que, com a mesma palavra, haviam lançado ao mundo católico Lutero, Zwingle, Ecolampado, Melanchthon e Calvino. Reis, povos, sacerdotes, clamavam todos reforma! Mas aqui aparecia o problema: que espécie de reforma? A opinião dos bispos e, em geral, das populações católicas pronunciava-se no sentido duma reforma liberal, em harmonia com o espírito da época, chegando muitos até a desejar uma conciliação com os protestantes: era a opinião episcopal representante das igrejas nacionais. Em Roma, porém, a solução que se dava ao problema tinha um bem diferente carácter. O ódio e a cólera dominavam os corações dos sucessores dos apóstolos. Repelia-se com horror a ideia de conciliação, da mais pequena concessão. Pensava-se que era necessário fortificar a ortodoxia, concentrando todas as forças, disciplinando e centralizando; empedernir a Igreja, para a tornar inabalável. Era a opinião absolutista, representante do Papado. Esta opinião (para não dizer este partido) triunfou, e foi esse triunfo uma verdadeira calamidade para as nações católicas. Nem era isso o que elas desejavam, e o que pediram e sustentaram os seus bispos, lutando indefesos durante 16 anos contra a maioria esmagadora das criaturas de Roma! Pediam uma verdadeira reforma, sincera, liberal, em harmonia com as exigências da época. O programa formulava-se em três grandes capítulos fundamentais. 1 ° Independência dos bispos, autonomia das igrejas nacionais, inauguração dum parlamentarismo religioso pela convocação amiudada dos concílios, esses estados gerais do cristianismo, superiores ao Papa e árbitros supremos dó ' mundo espiritual. 2 ° O casamento para os padres, isto é, a secularização progressiva do clero, a volta às leis da humanidade duma classe votada durante quase mil anos a um duro ascetismo, então talvez necessário, mas já no século XVI absurdo, perigoso, desmoralizador. 3 ° Restrições à pluralidade dos benefícios eclesiásticos, abuso odioso, tendente a introduzir na Igreja um verdadeiro feudalismo com todo o seu poder e desregramento. Destas reformas saía naturalmente a humanização gradual da religião, a liberdade crescente das consciências, e a capacidade para o cristianismo de se transformar dia a dia, de progredir, de estar sempre à altura do espírito humano, resultado imenso e capital que trouxe a Reforma aos povos que a seguiram. Os graves prelados, que então combatiam pelas reformas que acabo de apresentar, não desejavam, certamente, nem mesmo previam estas consequências, o próprio Lutero as não previu. Mas nem por isso as consequências deixariam de ser aquelas. Bartolomeu dos Mártires e os bispos de Cádis e Astorga não eram, seguramente, revolucionários: representavam no Concílio de Trento a última defesa e o protesto das igrejas da Península contra o ultramontanismo invasor: mas a obra deles é que era, pelas consequências, revolucionária; e, trabalhando nela, estavam na corrente e no espírito do grande e emancipador século XVI. Se houvessem alcançado essa reforma, teríamos nós talvez, Espanhóis e Portugueses, escapado à decadência. Quem pode hoje negar que é em grande parte à Reforma que os povos reformados devem os progressos morais que os colocaram naturalmente à frente da civilização? Contraste significativo, que nos apresenta hoje o mundo! As nações mais inteligentes, mais moralizadas, mais pacíficas e mais industriosas são exactamente aquelas que seguiram a revolução religiosa do século XVI: Alemanha, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Suíça. As mais decadentes são exactamente as mais católicas! Com a Reforma estaríamos hoje talvez à altura dessas nações; estaríamos livres, prósperos, inteligentes, morais... mas Roma teria caído!

Roma não queria cair. Por isso resistiu longo tempo, iludiu quanto pôde os votos das nações que reclamavam a convocação do concílio reformador. Não podendo resistir mais tempo, cede por fim. Mas como o fez? Como cedeu Roma, dominada desde então pelos Jesuítas? Estamos em Itália, meus senhores, no país de Machiavelli !... Eu não digo que Roma usasse deliberada e conscientemente duma política maquiavélica: não posso avaliar as intenções. Digo simplesmente que o parece; e que, perante a história, a política romana em toda esta questão do Concílio de Trento aparece com um notável carácter de habilidade e cálculo... muito pouco evangélicos! Roma, não podendo resistir mais à ideia do concílio, explora essa ideia em proveito próprio. Dum instrumento de paz e progresso, faz uma arma de guerra e dominação; confisca o grande impulso reformador, e fá-lo convergir em proveito do ultramontanismo. Como? Duma maneira simples: 1 °, dando só aos legados do Papa o direito de propor reformas: 2°, substituindo, ao antigo modo de votar por nações, o voto por cabeças, que lhe dá com os seus cardeais e bispos italianos, criaturas suas, uma maioria compacta e resolvida sempre a esmagar, a abafar os votos das outras nações. Basta dizer que a França, a Espanha, Portugal e os estados católicos da Alemanha nunca tiveram, juntos, número de votos superior a 60, enquanto os italianos contavam 180, e mais! Nestas condições, o concílio deixava de ser universal: era simplesmente italiano; nem italiano, romano apenas! Desde o primeiro dia se pôde ver que a causa da reforma liberal estava perdida. Provocado para essa reforma, o concílio só serviu contra ela, para a sofismar e anular!

Composta e armada assim na máquina, vejamo-la trabalhar. Para sujeitar na Terra o homem, era necessário fazê-lo condenar primeiro no Céu: por isso o concílio começa por estabelecer dogmaticamente, na sessão 5.ª, o pecado original, com todas as suas consequências, a condenação hereditária por seus merecimentos, mas só por obra e graça de J. Cristo. Muitos teólogos e alguns poucos sínodos particulares se haviam já ocupado desta matéria: nenhum concílio ecuménico a definira ainda. Um concílio verdadeiramente liberal deixava essa questão na sombra, no indefinido, não prendia a liberdade e a dignidade humanas com essa algema: o Concílio de Trento fez dessa definição o prólogo dos seus trabalhos. Convinha-lhe logo no começo condenar sem apelação a razão humana, e dar essa base ao seu edifício. Assim o fez. De então para cá, ficou dogmaticamente estabelecido no mundo católico que o homem deve ser um corpo sem alma, que a vontade individual é uma sugestão diabólica, e que para nos dirigir basta o Papa em Roma e o confessor à cabeceira. Perinde ac cadaver, dizem os estatutos da Companhia de. Jesus.

Na sessão 13.ª confirma-se e precisa-se o dogma da eucaristia, já definido, ainda que vagamente, no 4.° Concílio de Latrão, e vibra-se o anátema sobre quem não crer na presença real de Cristo no pão e no vinho depois da consagração. É mais um passo (e este decisivo) para fazer entrar o cristianismo no caminho da idolatria, para colocar o divino no absurdo. Poucos dogmas contribuíram tanto como este materialismo da presença real para embrutecer o novo povo, para fazer reviver nele os instintos pagãos, para lhe sofismar a razão natural! Parece que era isto o que o concílio desejava!

Na sessão 14.ª trata-se detidamente da confissão. A confissão existia há muito na Igreja, mas comparativamente livre e facultativa. No 4.° Concílio de Latrão restringira-se já bastante essa liberdade. Na sessão 14 a de Trento é a consciência cristã definitivamente encarcerada. Sem confissão não há remissão de pecados! A alma é incapaz de comunicar com Deus, senão por intermédio do padre! Estabelece-se a obrigação de os fiéis se confessarem em épocas certas, e exortam-se a que se confessem o mais que possam. Funda-se aqui o poder, tão temível quanto misterioso, do confessionário. Aparece um tipo singular: o director espiritual. Daí por diante há sempre na família, imóvel à cabeceira, invisível mas sempre presente, um vulto negro que separa o marido da mulher, uma vontade oculta que governa a casa, um intruso que manda mais do que o dono. Quem há aqui, espanhol ou português, que não conheça este estado deplorável da família, com um chefe secreto, em regra hostil ao chefe visível? Quem não conhece as desordens, os escândalos, as misérias introduzidas no lar doméstico pela porta do confessionário? O concílio não queria isto, decerto: mas fez tudo quando era necessário para que isto acontecesse.

Na parte disciplinar e nas relações da Igreja com o Estado predomina o mesmo espírito de absolutismo, de concentração, de invasão de todos os direitos. Na sessão 5 a tornam-se as ordens regulares independentes dos bispos, e quase exclusivamente dependentes de Roma. Que arma esta na mão do Papado, que já de si não era mais do que uma arma na mão do jesuitismo! Na sessão 13 a só o Papa, pelos seus comissários, pode julgar os bispos e os padres. É a impunidade para o clero! Na sessão 4 a põem-se restrições à leitura da Bíblia pelos seculares, restrições tais que equivalem a uma verdadeira proibição. Ora, o que é isto senão a suspeição da razão humana, condenada a pensar e a ler pelo pensamento e pelos olhos de meia dúzia de eleitos? Nas sessões 7.ª, 9.ª, 18.ª e 24.ª estabelecem-se igualmente disposições tendentes todas a sujeitar os governos, a impor aos povos a polícia romana, apagando implacavelmente por toda a parte os últimos vestígios das igrejas nacionais. Finalmente, a superioridade do Papa sobre os concílios triunfa nas sessões 23.ª e 25.ª, pela boca do jesuíta Lainez, inspirador e alma do concílio... se é permitido, ainda metaforicamente, falando dum jesuíta, empregar a palavra alma... A redacção dum catecismo vem coroar esta obra de alta política. Com esse catecismo, imposto por toda a parte e por todos os modos aos espíritos moços e simples, tratou-se de matar a liberdade no seu gérmen, de absorver as gerações nascentes, de as deformar e torturar, comprimindo-as nos moldes estreitos duma doutrina seca, formal, escolástica e subtilmente ininteligível. Se se conseguiu ou não esse resultado funesto, respondam umas poucas de nações moribundas, enfermas da pior das enfermidades, a atrofia moral!

Sim, meus senhores! essa máquina temerosa de compressão, que foi o catolicismo depois do Concílio de Trento, que podia ela oferecer aos povos? A intolerância, o embrutecimento, e depois a morte! Tomo três exemplos. Seja o primeiro a Guerra dos Trinta Anos, a mais cruel, mais friamente encarniçada, mais sistematicamente destruidora de quantas têm visto os tempos modernos, e que por pouco não aniquila a Alemanha. Essa guerra, provocada pelo partido católico, e por ele dirigida com uma perseverança infernal, mostrou bem ao mundo que abismos de Pódio podem ocultar palavras de paz e religião. O padre não dirigia somente, assistia à execução. Cada general trazia sempre consigo um director jesuíta: e esses generais chamavam-se Tilly, Picolomini, os mais endurecidos dos verdugos! Salvou então a Alemanha e a Europa a firmeza indomável de um coração tão grande quanto puro, sereno em face dessas hordas fanáticas. O verdadeiro herói (e único também) dessa guerra maldita, o verdadeiro santo desse período tenebroso, é um protestante, Gustavo Adolfo. Enquanto ao Papa, esse aplaudia a matança! O segundo exemplo é a Itália. O terror que inspirava ao Papado a criação em Itália dum estado forte, que lhe pusesse uma barreira à ambição crescente de dia para dia, tornou-o o maior inimigo da unidade italiana. É o Papado quem semeia a discórdia entre as cidades e os príncipes italianos, sempre que tentam ligar-se. É o Papado quem convida os estrangeiros a descerem os Alpes, na cruzada contra as forças nacionais, cada vez que parecem querer organizar-se. «O Papado», diz Edgard Quinet, «tem sido um ferro sagrado na ferida da Itália, que a não deixa sarar.» Hoje mesmo, se essa suspirada unidade se consumou, não foi no meio das maldições e cóleras do clero e de Roma? O único pensamento, que hoje absorve o Papado, é desmanchar aquela obra nacional, chamar sobre ela os ódios do mundo, o ferro estrangeiro, podendo ser; é assassinar a Itália ressuscitada! Estes factos são por todos sabidos. O que talvez nem todos saibam é o papel que o catolicismo representou no assassínio da Polónia. «A intolerância dos jesuítas e ultramontanos», diz Emílio de Lavelaye, «foi.a causa primária do, desmembramento e queda da Polónia.» Esta nação heróica, mas pouco organizada, ou antes, pouco unificada, era uma espécie de federação de pequenas nacionalidades, com costumes e religiões diferentes. Encravada entre monarquias poderosas e ambiciosas, como a Áustria, a Rússia e a Turquia de então, a Polónia só podia viver pela liberdade política, e sobretudo pela tolerância contra o inimigo comum, os grupos autonómicos de que se compunha. A essa tolerância deveu ela, com efeito, a força e importância que teve na história da Europa até ao século XVII: católicos, gregos cismáticos, protestantes, socinianos, viveram muito tempo como irmãos, numa sociedade verdadeiramente cristã porque era verdadeiramente tolerante. Um dia, porém, os jesuítas, lá do centro de Roma, olharam para a Polónia como para uma boa presa. Aquela nação era efectivamente um escândalo para os bons padres. Tanto intrigaram que em 1570 tinham já logrado introduzir-se na Polónia: o rei Estêvão Bathory concede-lhes, com uma culpável imprudência, a Universidade de Wilna. Senhores do ensino, e em breve das consciências da nobreza católica, os jesuítas são um poder: começam as perseguições religiosas. Em 1548, João Casimiro, que antes de ser rei fora cardeal e jesuíta, quer obrigar os camponeses ruténios, sectários do cisma grego, a converterem-se ao catolicismo. Estes levantam-se, unem-se aos cossacos, também do rito grego, e começa uma guerra formidável, cujo resultado foi separarem-se cossacos e ruténios da federação polaca, dando-se à Rússia, em cujas mãos se tornaram uma arma terrível sempre apontada ao coração da Polónia. Nunca esta nação teve inimigos tão encarniçados como os cossacos! Sem eles, a Polónia, enfraquecida entre vizinhos formidáveis, devia cair, e caiu efectivamente. A partilha espoliadora de 1772 não fez mais do que confirmar um facto já antigo, a nulidade da nação polaca.

Assim pois, meus senhores, o catolicismo dos últimos séculos, pelo seu princípio, pela sua disciplina, pela sua política, tem sido no mundo o maior inimigo das nações, e verdadeiramente o túmulo das nacionalidades. «O antro da Esfinge», disse dele um poeta filósofo, «reconhece-se logo à entrada pelos ossos dos povos devorados.»

E a nós, Espanhóis e Portugueses, como foi que o catolicismo nos anulou? O catolismo pesou sobre nós por todos os lados, com todo o seu peso. Com a Inquisição, um terror invisível paira sobre a sociedade: a hipocrisia torna-se um vício nacional e necessário: a delação é uma virtude religiosa: a expulsão dos judeus e mouros empobrece as duas nações, paralisa o comércio e a indústria, e dá um golpe mortal na agricultura em todo o Sul da Espanha: a perseguição dos cristãos-novos faz desaparecer os capitais: a Inquisição passa os mares, e, tornando-nos hostis os índios, impedindo a fusão dos conquistadores e dos conquistados, torna impossível o estabelecimento duma colonização sólida e duradoura: na América despovoa as Antilhas, apavora as populações indígenas, e faz do nome de cristão um símbolo de morte; o terror religioso, finalmente, corrompe o carácter nacional, e faz de duas nações generosas hordas de fanáticos endurecidos, o horror da civilização. Com o jesuitismo desaparece o sentimento cristão, para dar lugar aos sofismas mais deploráveis a que jamais desceu a consciência religiosa: métodos de ensino, ao mesmo tempo brutais e requintados, esterilizam as inteligências, dirigindo-se à memória, com o fim de matarem o pensamento inventivo, e alcançam alhear o espírito peninsular do grande movimento da ciência moderna, essencialmente livre e criadora: a educação jesuítica faz das classes elevadas máquinas inteligentes e passivas; do povo, fanáticos corruptos e cruéis: a funesta moral jesuítica, explicada (e praticada) pelos seus casuístas, com as suas restrições mentais, as suas subtilezas, os seus equívocos, as suas condescendências, infiltra-se por toda a parte, como um veneno lento, desorganiza moralmente a sociedade, desfaz o espírito de família, corrompe as consciências com a oscilação contínua da noção do dever, e aniquila os caracteres, sofismando-os, amolecendo-os: o ideal da educação jesuítica é um povo de crianças mudas, obedientes e imbecis, realizou-o nas famosas -missões do Paraguai; o Paraguai foi o reino dos céus da Companhia de Jesus; perfeita ordem, perfeita devoção; uma coisa só faltava, a alma, isto é, a dignidade e a vontade, o que distingue o homem da animalidade! Eram estes os benefícios que levávamos às raças selvagens da América, pelas mãos civilizadoras dos padres da Companhia! Por isso o génio livre popular decaiu, adormeceu por toda a parte: na arte, na literatura, na religião. Os santos da época já não têm aquele carácter simples, ingénuo, dos verdadeiros santos populares: são frades beatos, são jesuítas hábeis. Os sermonários e mais livros de devoção, não sei por que lado sejam mais vergonhosos; se pela nulidade das ideias, pela baixeza do sentimento, ou pela puerilidade ridícula do estilo. Enquanto à arte e literatura, mostrava-se bem clara a decadência naquelas massas estúpidas de pedra da arquitectura jesuítica, e na poesia convencional das academias, ou nas odes ao divino e jaculatórias fradescas. O génio popular, esse morrera às mãos do clero, como com tanta evidência o deixou demonstrado nos seus recentes livros, tão cheios de novidades, sobre a literatura portuguesa, o Sr. Teófilo Braga. Os costumes saídos desta escola sabemos nós o que foram. Já citei a Arte de Furtar, os romances picarescos, as farsas populares, o teatro espanhol, os escritos de D. Francisco Manuel e do Cavaleiro de Oliveira. Na falta destes documentos, bastava-nos a tradição, que ainda hoje reza dos escândalos dessa sociedade aristocrática e clerical! Essa funesta influência da direcção católica não é menos visível no mundo político. Como é que o absolutismo espiritual podia deixar de reagir sobre o espírito do poder civil? O exemplo do despotismo vinha de tão alto! os reis eram tão religiosos! Eram por excelência os reis católicos, fidelíssimos. Nada forneceu pelo exemplo, pela autoridade, pela doutrina, pela instigação, um tamanho ponto de apoio ao poder absoluto como o espírito católico e a influência jesuítica. Nesses tempos santos, os verdadeiros ministros eram os confessores dos reis. A escolha do confessor era uma questão de Estado. A paixão de dominar, e o orgulho criminoso de um homem, apoiavam-se na palavra divina. A teocracia dava a mão ao despotismo. Essa direcção via-se claramente na política externa. A política, em vez de curar dos interesses verdadeiros do povo, de se inspirar de um pensamento nacional, traía a sua missão, fazendo-se instrumento da política católica romana, isto é, dos interesses, das ambições de um estrangeiro. D. Sebastião, o discípulo dos jesuítas, vai morrer nos areais de África pela fé católica, não pela nação portuguesa. Carlos V, Filipe II, põem o mundo a ferro e fogo, porquê? Pelos interesses espanhóis? Pela grandeza de Espanha? Não: pela grandeza e pelos interesses de Roma! Durante mais de 70 anos, a Espanha, dominada por estes dois inquisidores coroados, dá o melhor do seu sangue, da sua riqueza, da sua actividade, para que o Papa desse outra vez leis à Inglaterra e à Alemanha. Era essa a política nacional desses reis famosos: eu chamo a isto simplesmente trair as nações.

Tal é uma das causas, se não a principal, da decadência dos povos peninsulares. Das influências deletérias nenhuma foi tão universal, nenhuma lançou tão fundas raízes. Feriu o homem no que há de mais íntimo, nos pontos mais essenciais da vida moral, no crer, no sentir – no ser: envenenou a vida nas suas fontes mais secretas. Essa transformação da alma peninsular fez-se em tão íntimas profundidades que tem escapado às maiores revoluções; passam por cima dessa região quase inacessível, superficialmente, e deixaram-na na sua inércia secular, Há em todos nós, por mais modernos que queiramos ser, há lá oculto, dissimulado, mas não inteiramente morto, um beato, um fanático ou um jesuíta! Esse moribundo que se ergue dentro em nós é o inimigo, é o passado. É preciso enterrá-lo por uma vez, e como ele o espírito sinistro do catolicismo de Trento.

Esta causa actuou principalmente sobre a vida moral: a segunda, o absolutismo, apesar de se reflectir no estado dos espíritos, actuou principalmente na vida política e social. A história da transformação das monarquias peninsulares é longa, e, para a minha pouca ciência, obscura e até certo ponto desconhecida: não a poderia eu fazer aqui. Basta dizer que o carácter dessas monarquias durante a Idade Média contrasta singularmente com o que lhe encontramos no século XVI e nos seguintes. Os reis então não eram absolutos; e não o eram porque a vida política local, forte e vivaz, não só não lhes deixava um grande círculo de acção, mas ainda, dentro desse mesmo círculo, lhes opunha à expansão da autoridade embaraços e uma contínua vigilância. Os privilégios da nobreza e do clero, por um lado, e, pelo outro, as instituições populares, os municípios, as comunas, equilibravam com mais ou menos oscilações o peso da coroa. Para as questões sumas, para os momentos de crise, lá estavam as Cortes, onde todas as classes sociais tinham representantes e voto. A liberdade era então o estado normal da Península.

No século XVI tudo isto mudou. O poder absoluto assenta-se sobre a ruína das instituições locais. Abaixou a nobreza, é verdade, mas só em proveito seu: o povo pouco lucrou com essa revolução. O que é certo é que perdeu a liberdade. A vida municipal afrouxa gradualmente: as comunas espanholas, depois dum sangrento protesto, caem exânimes, aos pés dum rei, que nem sequer era inteiramente espanhol. As instituições locais, cerceadas por todos os lados, sentem faltar-lhes em volta o ar, e o chão debaixo de si. Quem poderá jamais contar essas invasões surdas, insensíveis do poder real no terreno do povo, essas lutas subterrâneas, as abdicações sucessivas da vontade nacional nas mãos de um homem. as resistências infelizes, a longa e cruel história do desaparecimento dos foros populares? É uma história tão triste quanto obscura, que ninguém fez nem fará jamais! Vê-se o desfecho do drama: os incidentes escapam-nos. Mas ao lado dessa luta surda houve outra manifesta, cuja história se erguerá sempre como um espectro vingador, para acusar a realeza. Essa luta é a grande guerra communera das cidades espanholas. Vencidas, esmagadas pela força, as cidades espanholas encontraram um herói, de cujo peito saiu ardente um protesto, que será eterno como a condenação de quem o provocou. Eis aqui o que D. Juan de Padilla, chefe dos communeros, escrevia à sua cidade de Toledo, horas antes de ser decapitado. «A ti, cidade de Toledo, que és a coroa de Espanha, e a luz do mundo, que já no tempo dos Godos eras livre, e que prodigalizaste o teu sangue para assegurar a tua liberdade e a das cidades tuas irmãs, Juan de Padilha, teu filho legítimo, te faz saber que pelo sangue do seu corpo mais uma vez vão ser renovadas as tuas antigas vitórias...» A cabeça de Padilha rolou, e com ele, decapitada também, caiu a antiga liberdade municipal. A centralização monárquica, pesada, uniforme, caiu sobre a Península como a pedra dum túmulo. A respiração de milhares de homens suspendeu-se, para se concentrar toda no peito de um homem excepcional, de quem o acaso do nascimento fazia um deus. Se, ao menos, esse deus fosse propício, bom, providencial! Mas a centralização do absolutismo, prostrando o povo, corrompia ao mesmo tempo o rei. D. João III, esse rei fanático e de ruim condição, Filipe II, o demónio do Meio-Dia, inquisidor e verdugo das nações, Filipe III, Carlos IV, João V, Afonso VI, devassos uns, outros desordeiros, outros ignorantes e vis, são bons exemplos da realeza absoluta, enfatuada até ao vício, até ao crime, do orgulho do próprio poder, possessa daquela loucura cesariana com que a Natureza faz expiar aos déspotas a desigualdade monstruosa, que os põe como que fora da Humanidade. A tais homens, sem garantias, sem inspecção, confiaram as nações cegamente os seus destinos! Se Filipe II não fosse absoluto, jamais teria podido tentar o seu absurdo projecto de conquistar a Inglaterra, não teria feito sepultar nas água do oceano, com a Invencível Armada, milhares de vidas e um capital prodigioso inteiramente perdido. Se D. Sebastião não fosse absoluto, não teria ido enterrar em Alcácer Quibir a nação portuguesa, as últimas esperanças da pátria.

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