DAS MEMÓRIAS DE CASTILHO

Em 1881 Júlio de Castilho publicou as «memórias» do pai, António Feliciano de Castilho, criando a moda da utilização da memória paterna para produzir obra, sendo de facto este um dos livros que mais apreciava. Nesta obra, começada logo a seguir à morte do pai, nos Açores onde era governador civil, poucos  momentos há em que o verdadeiro Castilho aparece, já que quase tudo é escrito pelo filho, olissipógrafo de renome, utilizando algumas vezes textos do pai - algumas cartas, mas sobretudo textos publicados -, recriando os acontecimentos passados. É o caso deste capítulo. O assunto, o rompimento entre Castilho e Herculano,  é claramente importante para o filho, mas terá sido para António Feliciano de Castilho? Nunca o saberemos, até porque o autor não nos diz. É de qualquer maneira um texto interessante, para conhecimento da vida literária portuguesa na segunda metade do século XIX.

 

«Trata-se de estudar um melindroso assunto. Rompimento das relações entre Castilho e Herculano. Janeiro de 1845 ...»

 

Castilho em 1850

© Biblioteca Nacional

António Feleciano de Castilho em 1850

Trazem-me agora as datas um dos assuntos mais importantes destas Memórias, já pelo facto em si, já pelos comentários malignamente curiosos, a que deu (e há de dar) causa. Falo do triste rompimento entre Herculano e Castilho.

Pouco sei, mas sinto-me disposto a dizer tudo que me chegou, e a dizê-lo cruamente, com lisura; e as pessoas de boa fé tirarão as ilações que souberem.

*

Assentei até agora, como coisa certa e certíssima, a amizade antiga, e sincera, e profunda, e enraizada, de Castilho a Herculano, e de Herculano a Castilho. Procurei-lhe e achei-lhe a origem em 1829. De então por diante vimos sempre unidos os dois espíritos; e nem as léguas interpostas entre Coimbra e Lisboa, ou entre a residência da Castanheira do Vouga e os rochedos de Belle-Isle, souberam separar aqueles dois corações. Mostrei quanto se apreciavam, e como reciprocamente analisavam as obras um do outro.

Apresentei a crítica do poema A Noite do castello traçada por Herculano em 1836; e recordo agora ao leitor, que na Nota intitulada Reparos ácerca da invenção da Noite do castello conta Castilho que em Março de 1834 1 ouviu pela primeira vez ao seu «bom amigo Alexandre Herculano de Carvalho, moço - diz ele - no qual não sei se mais há para admirar a sua já copiosíssima erudição, se a grandeza do seu poético engenho», a recitação de uma balada inglesa do poeta Lewis, onde, por assim dizer, se vislumbrava o germe do enredo do poema de Castilho. São encontros que ás vezes se dão na arte, entre os cultores dos mesmos géneros 2.

Em Setembro de 1841, ao ditar o Prologo à tradução das Metamorfoses de Ovídio, fala Castilho dos criadores da história íntima nacional, e, pensando no amigo querido, exclama

«Teve a Inglaterra um Walter Scott; poderá ter a França um Victor Hugo; começou, e há de chegar a ter Portugal um Herculano » 3.

Em Setembro de 1842 inaugura-se o volume 2.º da 1.ª série da Revista Universal com a publicação de um fragmento do Eurico o Presbítero, e continua ao longo dos números seguintes essa vulgarização de trechos do romance, e de outros escritos do juvenil escritor, já então considerado mestre.

Quando em Agosto de 1843 se abria subscrição para a edição do Eurico, anuncia Castilho esse facto dizendo:

«Está aberta nas lojas do costume, tanto na capital como nas províncias, a subscrição para este tão desejado romance original do nosso amigo o Sr. Alexandre Herculano, de que já demos algumas amostras neste jornal, em fragmentos publicados no 2.º volume.

Dos seus méritos, quando não bastassem os inabaláveis créditos literários do autor para os abonar, os fragmentos a que acima aludimos dão irrefragável documento.

Esta obra - conclui Castilho - excede a todas as outras do mesmo género, que temos deste fecundo escritor » 4.

Noutro artigo, falando do romance histórico, diz desassombradamente Castilho:

«A glória de seu criador pertence ao Sr. Herculano» 5.

Quando, em sessão de 21 de Fevereiro de 1844, a Academia Real das Ciências de Lisboa se honrou tomando Herculano para Sócio correspondente, escreveu Castilho, com entranhado júbilo, estas palavras:

«Uma dívida nacional, já de alguns anos, acaba de ser paga pela Academia Real das Ciências de Lisboa na sua sessão de 21. Ali se proclamou unanimemente para Sócio o nosso amigo Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo. A Academia, fazendo um acto de justiça, adquiriu ao mesmo tempo, um grande lustre incorporando em si um tão belo nome: e uma utilidade ainda maior pela grande soma de conhecimentos históricos já entesourados pelo novo adepto, e pela sua incansável assiduidade em trabalhar» 6.

Publicando em 1844 nas Excavações poeticas a sua bela Epístola ao Morgado de Assentiz, aí conserva Castilho alguns versos, em que aparece a intimidade estreita que o ligava a Herculano. Incita o Morgado a escrever e a deixar a sua mais que ociosa e inútil jardinagem; e diz-lhe:

Aos ócios do jardim nega-te uns dias;
larga o sacho ao frenético Alexandre,
se Schiller e o «Fantasma» o deixam livre.

Note o leitor: o frenético Alexandre. Por aí se está vendo o estudioso mancebo, dominado do seu génio activo e concentrado, e todo entregue ao estudo do alemão, às leituras de Schiller, e à tradução do Fantasma do mesmo poeta. E Castilho anota assim:

«O nosso amigo Alexandre Herculano, em princípio de estudos ainda a esse tempo (1830), mas em quem já se admirava o infatigável fervor do trabalho, assim mental como corporal, porque já então, como ainda hoje (1844), as suas horas de desenfadamento literário eram dispendidas em cavar e jardinar. No estudo da língua alemã andava todo, e na sociedade do Sr. Assentiz nos fazia, às noites, leitura da sua tradução do Fantasma de Schiller» 7.

Há mais, há muitos mais, há muitíssimos mais passos das obras de Castilho, e da sua correspondência inédita, onde Herculano é tratado com amizade e entusiasmo; mas basta por agora; paremos aqui, e forcejemos investigar, segundo provas testemunhais, a causa que assim transformou em indiferença gelada uma tão intima e calorosa afeição.

*

Sim; vamos a testemunhas.

Em 30 de Março de 1878, à noite, jantei com o nosso querido Monsenhor Joaquim Pinto de Campos no hotel Borges, onde ele então morava, que era no largo das Duas Igrejas. À mesa versou a conversação sobre Alexandre Herculano. Perguntou-me o Monsenhor se eu sabia a causa exacta do rompimento entre Herculano e meu Pai. Como estávamos sós, os dois, numa mesa separada, entendi dever falar com franqueza. Respondi que várias versões corriam, muito insignificantes, na realidade, para tal resultado; mas que ao certo não conhecia eu ainda o motivo.

Disse-me então o Monsenhor, que me ia narrar o que sabia. Foi isto

A primeira vez que tinha vindo a Portugal (1870) quisera conhecer pessoalmente Herculano, e fora a Vale de Lobos. Entre outras coisas, e logo nos princípios da visita, disse-lhe Herculano:

- Já sei que V. é amigo dos Castilhos.

- Certamente que sou, e muito - respondeu o Monsenhor.

- Eu também fui muito amigo do António Feliciano - disse o grande historiador; - e até sou padrinho de um dos filhos, o Augusto.

- E por que não dura ainda essa amizade ?-perguntou suavemente o Prelado brasileiro com desejo de pazes.

- Hoje não lhe tenho ódio nenhum, nem motivo; volveu Herculano - mas as minhas relações com ele quebraram para sempre.

- Visto que falamos em tão triste assunto, aventurou Pinto de Campos - atrevo-me a perguntar o motivo dessa quebra.

-É simples - redarguiu Herculano. - As nossas relações eram tão intimas, quanto o podem ser as de dois óptimos amigos; a este ponto: quando eu uma vez ou outra precisei dinheiro, e ele o tinha, emprestava-mo; quando ele o precisava, e eu o tinha, pedia-mo, e a minha bolsa era sua. Dos nossos livros não falemos, que esses andavam sempre de cá para lá, e de lá para cá. De uma dessas vezes, emprestei-lhe eu nove moedas, de que ele careceu. Poucos dias depois, escrevi-lhe dizendo-lhe que não pensasse em me restituir tal dinheiro, mas sim o entregasse à minha comadre, sua mulher, para comprar algum bonito ao meu afilhado Augusto. Dias depois disso (não sei o que houve, nem se andou aqui alguma agulha ferrugenta) recebo uma carta fria do António Feliciano restituindo-me uns livros meus que lá tinha, e devolvendo-se secamente as nove moedas. Entendi que era um rompimento, e quebrei eu também, e para sempre. Aí está.

O Monsenhor, que era todo conciliador e indulgente, pareceu admirar-se de que uma tão fútil causa separasse assim dois como irmãos!

- Quando dois amigos íntimos quebram, é para todo sempre - observou o severo autor do Monge de Cister.

Como a conversação continuasse no assunto, contou Herculano que tivera um enorme ascendente, e muita influência no ânimo de Castilho; que quando faleceu a Sr.ª D. Maria Isabel de Baena, o viúvo, com o seu génio excessivo e ardente, e a sua imaginação de fogo, se levara aos maiores extremos de dor e desespero, tocando até as raias da impiedade, a qual (segundo Herculano atestou) não estava então no seu carácter; e que nessa ocasião, nem Augusto Frederico podia conseguir dominar e acalmar os desmandos daquela alma doente; pois conseguia-o somente Herculano!

Eis aí o que Monsenhor me contou, e eu escrevi logo logo, em quente, apenas chegado a casa, ajudado da minha belíssima memória.

*

Esta matéria parecia preocupar o Monsenhor. Disse-me ele então mais, que, desejoso de sondar melhor a causa, sobre a qual falara no Rio de Janeiro com meu tio José, interrogara uma vez a Vicente Ferrer Neto de Paiva, amigo íntimo de Herculano.

Contou-lhe Ferrer, que (segundo ele), o motivo da quebra tinha sido o último número dos Quadros históricos, redigido, como todos sabem, por Herculano, na impossibilidade de Castilho, acabrunhado pela perda de seu irmão Augusto. Pensava Ferrer, que Herculano se teria ofendido perante os enredos de qualquer intrigante, que falsamente lhe houvesse afirmado ter dito Castilho que o Quadro, A tomada de Silves, desdizia do estilo dos antecedentes, e não  sustentava o paralelo.

Ponho esta versão em rigorosa quarentena. Castilho não disse isso; não o podia dizer. Conheci bastante o seu coração; era incapaz, de todo incapaz, de desdenhar ingratamente do trabalho de um tal amigo, que o auxiliava numa ocasião triste e penosa da existência.

Ferrer dizia que, tendo Herculano ouvido isso, julgara dever romper aquela velha amizade.

Esta versão não se sustenta: o Quadro histórico saiu em 1841, e a separação deu-se em 1845.

*

Depois de terem entrado nesta custosa averiguação esses depoimentos, seja-me lícito apresentar também o meu testemunho pessoal.

Nunca falei a meu Pai sobre este assunto, e ele nunca me bosquejou em tal; mas uma vez, em 1852 ou 53, se não me engano, estando nós ambos em casa de um antigo amigo, o General Leoni, este perguntou o que havia. Castilho respondeu o que vou dizer. Como eu estava ansioso por saber a verdade, pois ouvira minha Mãe falar mais de uma vez, e dolorosamente, com Silva Túlio, neste desaguisado, quanto se passou gravei-o na memória; ei-lo:

Castilho confessou a Leoni que o motivo certo da quebra, o ignorava; mas que supunha que o pomo da discórdia tinha sido não sei que artigo crítico que ele escrevera a respeito de uma obra de Herculano, cujo título não retive; nesse artigo dizia-se que essa obra produziria maus discípulos, e teria efeito prejudicial no espírito da mocidade. Os meus doze anos não retiveram, segundo acabo de dizer, o título da obra, nem a questão senão em globo, tal como aqui a exponho. Castilho acrescentou, me parece, que, em seguida a esse tal artigo, Herculano lhe escrevera uma carta muito seca restituindo livros que lá tinha; em consequência do que, Castilho lhe restituíra logo umas moedas que lhe devia, acompanhadas de uma carta igualmente fria.

Nunca tinha chegado a haver explicação entre os dois; tornava-se inútil, porque o génio de Herculano era inflexível.

*

Eis tudo quanto me sugerem os meus apontamentos. Apliquemos alguma atenção a essas interpretações várias.

A explicação dada por Vicente Ferrer, repito, não colhe. O último Quadro histórico tinha saído à luz havia anos quando o desaguisado se deu. Além disso, o ingrato desdém que essa explicação pressupõe não diz com a íntima e cordial amizade dos dois.

Rejeito tal versão.

Restam-nos, como mais credoras de atenção, as duas interpretações dos interessados. Examinemo-las.

*

Herculano supunha a existência de uma qualquer agulha ferrugenta, que indispôs com ele o seu amigo, e julgava ter procedido como obedecendo a uma causa inicial provinda de Castilho.

Castilho acreditava que a hostilidade partira de Herculano, e casava os actos deste com o aparecimento de um artigo crítico.

Quanto a mim, sem duvidar da sinceridade de qualquer dos dois, ambos podem ter razão; e em torno destes factos é possível que se agrupem algumas outras coisas insignificantes.

É minha opinião que Herculano se sentiu arranhado por algum acto ou algum dito imaginário, ou foi colhido por intriga de algum miserável; esfriou; e quando saiu o tal artigo crítico, a sua dignidade de autor viu nesse acto uma animosidade da parte de Castilho; afastou-se, escrevendo a este alguma carta fria. Castilho ferido por ela, Castilho, que no tal artigo julgava ter dado prova de leal ombridade e boa camaradagem, usando a crítica literária com restrições justas, azedou-se, devolveu ao amigo as nove moedas, os livros, e afastou-se também.

Herculano, é claro que falava verdade quando apresentou a sua explicação. Castilho, quando apresentou a sua, é bem claro que também falava verdade. Mas o falar verdade é muita vez relativo. Falamos verdade, sempre que em boa consciência expressamos o que temos por verdadeiro (como o expressavam Castilho e Herculano); e lá vem depois uma circunstância, oculta ao nosso critério, demonstrar que havia em nós engano inconsciente.

Assim pois, respondendo às versões de Herculano e de Castilho, perguntarei:

Não poderia ter chegado, por via de algum intrigante, aos ouvidos de Herculano alguma coisa que determinasse a carta deste e a devolução seca, e por assim dizer hostil, dos livros?

Não poderia ter também chegado, por esse ou algum outro mexeriqueiro, aos ouvidos de Castilho alguma palavra que determinasse a carta dele, e a devolução seca, e não menos hostil, dos livros e do dinheiro?

E não poderiam, a tantos anos de distância, essas friezas recíprocas ter-se confundido no ânimo dos dois, escurecendo as causas primordiais, que assim engendravam essas desavenças aparentemente frívolas e pueris?

Nenhum deles se acusava de ter sido o autor da causa inicial da dissidência; porquê? por um motivo simples: porque nenhum dos dois tinha consciência clara de a ter engatilhado.

É indubitável que houve, antes de mais, uma primeira carta, ou um bilhete, ou um recado, de um deles, que determinou a carta seca do outro; mas como essa primeira carta, bilhete, ou recado, era, creio eu, sem intenção, ambos os amigos omitem isso, não chegam a pensar em tal, nem sequer lhes ocorre, quando interpelados a alguns anos de distância dos factos. Porquê? repito: porque não havia nisso intenção hostil.

E além de tudo, há outro ponto a que é preciso atender com imparcialidade: esses dois homens tinham génio fogoso; um ímpeto, um repente, que não cometeriam na velhice, podiam tê-lo involuntariamente cometido então. Castilho tinha quarenta e cinco anos, e Castilho aos quarenta e cinco anos era um rapaz. Herculano tinha trinta e cinco anos apenas. Dois peninsulares! dois talentos! dois íntimos, com as franquezas, talvez rudes, da intimidade!!!

O que é bem certo, é que às vezes, entre amigos, há gracejos, ditos, observações, conselhos, que, por virem em ocasião intempestiva, acordam susceptibilidades que dormiam, sem que a frase em si mesma envolva a mínima injúria. Às vezes em volta de um acto qualquer, agrupam-se coisas, que o falseiam, e lhe erram a perspectiva, como os nevoeiros matinais nas regiões montanhosas.

Portanto: podia ter havido as duas cartas a que os dois se referiam; e assim, nas suas asserções tinham ambos razão.

*

Procurei com cuidado na Revista Universal algum artigo que pudesse ter sido o pomo da discórdia; e para mim é certíssimo que o achei no número de 16 de Janeiro de 1845. A sua doutrina concorda com o que eu tinha ouvido confusamente dizer Castilho ao General Leoni; portanto merece [ser] estudada a fundo essa importante peça documental.

*

Acabava de sair a lume o Eurico de Herculano. A Revista Universal, que por uso e costume analisava as obras aparecidas, e as analisava com imparcialidade, entendeu dever honrar com exame detido aquele romance, e consagrou-lhe sete colunas; sete colunas de atenção ilustrada, e onde a crítica perfeitamente sã, cortês, e benévola, não é influenciada pela intimidade das relações entre o autor e o crítico. Parece-me, salvo melhor juízo, parece-me aquele o modelo do género.

Achava-se Castilho obrigado, por alguma lei divina ou humana, a admirar sem restrições, sem condições, o Eurico de Herculano ? seria absurda tal suposição. Logo, podia notar máculas naquele como em outro qualquer livro impresso sujeito ao grande julgamento do publico. Corria a Castilho, segundo os antecedentes da Revista o direito, e (direi mais) a obrigação de julgar um livro deposto no tribunal da publicidade? certamente que sim. Logo, tinha não só o direito, mas a obrigação, de julgar o Eurico. Julgou-o; e julgou-o da seguinte maneira:

Começou por declarar a dificuldade de se apreciar um livro muito recente, e escrito em género novo. A impressão de uma primeira leitura lembra a impressão de objectos móveis na câmara escura de Daguerre: «alguma luz, muitas sombras - diz Castilho - contornos enleados, imagem exactíssima em partes, mas no todo perturbada». Confessa pois não ter a fátua presunção de sentenciar o livro, «usurpando ao Público e ao tempo um direito, que a eles, e só a eles, compete decisivamente». Limita-se o crítico a expor, «mais em forma de consultas que de afirmações», as ponderações que ocorreram, à proporção que, «arrastado pelo extraordinário talento do autor», devorava o novo romance.

Com ufania nobilíssima diz Castilho:

«Indigno seria do autor e de nós, começarmos, a modo de ressalva, com protestos de quanto respeitamos, nós como todos os Portugueses, o talento extraordinário do Sr. Herculano.

O amor da verdade, para o qual nada concorreu jamais o afecto que sempre lhe tivemos, e lhe conservaremos até ao fim, tem feito com que de todos os louvores que se lhe hão dado, os maiores, os mais enérgicos, os mais sem reserva nem inveja, os mais variados, os mais constantes, e os mais antigos, sejam os nossos».

Oiçam.

«Como filósofo, como poeta, como historiador, como romanceïro 8, sabem os nossos leitores de que modo, cem vezes, o havemos proclamado na Revista. Fora dela, em quase todas nossas obras havemos sempre procurado e achado ocasião de lhe tributar semelhantes homenagens. Ainda no público se não tinha ouvido o seu nome, quando nós, nós antes de ninguém, o anunciávamos por escritor já distinto, e futuro esplendor das pátrias Letras.

A primeira manifestação brilhante do seu vasto saber e engenho profundo, foi a redacção do Panorama. Para essa redacção, que a nós nos fora oferecida, e de que então nos era impossível encarregarmo-nos, fomos nós quem, afoita e confiadamente, o propusemos, como de todos o mais idóneo para um bom desempenho.

Depois de tudo isto - conclui o expansivo poeta das Cartas d'Eccho -, pueril seria, sobre supérfluo, apresentarmos ainda hoje protestações verbais de amizade e veneração para com a pessoa e escritos do Sr. Herculano» 9.

Prossegue, e confessa que não deseja estragar o enredo do Eurico, resumindo-o friamente, e condensando aquele a episódio histórico-fantástico da destruição da Monarquia goda nas Espanhas, pela invasão dos Árabes»; só reconhece «que é um belo estudo, dos que o Sr. Herculano sabe e costuma fazer».

Vejam agora com que desassombro e mestria avalia Castilho o lado propriamente histórico daquele poema em prosa:

«A topografia da Espanha naquela época, a sua tecnologia vestiária e armamentária, parte dos seus costumes públicos, do seu carácter social, da sua literatura sagrada, tudo foi indagado com sagaz crítica nas próprias fontes, onde as havia, e nos antiquários de maior crédito, ou rastreado por conveniências e conjecturas, que, sendo de pessoa tão exercitada neste género de trabalhos, não deixam de assumir logo uma espécie de autenticidade.

«Continua Castilho - ninguém cultiva em Portugal tão assídua e proveitosamente como o Sr. Herculano, este espinhoso ramo dos conhecimentos».

Pelo que respeita ao rigor das investigações, concede o crítico todo o mais largo elogio ao autor; e, naquele tempo, em que Herculano por assim dizer começava a abrir as asas, exclama Castilho com rara intuição do futuro:

«A arqueologia histórica tem de ser algum dia, se nos não enganamos, o seu principal brasão».

Quanto às tendências sociais, e ao efeito moral, do livro, expõe Castilho com igual lisura as suas opiniões.

O ponto de partida do Eurico é ó mesmo que o do Jocelyn de Lamartine; a saber: o celibato clerical; mas os caminhos seguidos pelos dois escritores são muito diversos, se não contrários: no Jocelyn há a resignação; no Eurico o desespero, e quase o suicídio.

Depois de várias considerações sobre o celibato da classe sacerdotal, diz o douto articulista:

«O celibato clerical não é, em verdade, um dogma; a Igreja, que o estabeleceu, pode inquestionavelmente derrogá-lo.  Mas fá-lo-há ela? Quem se atreveria a asseverá-lo?

E se o não tem de fazer, ou se o não há de fazer imediatamente, parece-nos que melhor é que, ou nesta questão se não toque, ou só a tratem os que têm por melhores as doutrinas estabelecidas».

Segue-se a explicação, que é realmente sensata:

«Com a tendência demasiadamente desenvolvida hoje nas turbas para tudo quanto é demolir e derrocar, no seu frenesim insaciável de inovações, no entibiamento geral de todos os vínculos de deveres (começando pelos religiosos), estas teorias adversas às práticas assentes em leis, e para cuja revogação não chega a soberania do povo, nenhum outro efeito podem produzir que não seja a indisciplina, e (como o povo salta depressa, e nem sempre com a melhor lógica, de consequência em consequência) o escárnio e desprezo dos dogmas, o desacato, a soltura desenfreada, a perdição de todas as coisas humanas, depois da subversão de todas as divinas».

Mais adiante continua explicando os seus receios, que em nada envolviam desrespeito a Herculano:

  «Repetimo-lo para que nos entendam bem:

Cremos firmemente na inocência das intenções que presidiram à composição deste livro (o Eurico); mas firmemente cremos também, em que noventa e nove centésimos do povo o tomarão como uma parábola, que dentro na hipótese encerra toda a tese, como uma reprodução literária do projecto legislativo do Sr. Passos, como uma intenção de predispor pelo sentimentalismo (como dizem) para uma revolução religiosa; revolução, que o Sr. Herculano está de certo tão longe como nós de desejar, e até de julgar possível. Por todos os seus escritos religiosos do tempo em que redigiu o Panorama, e por outros muitos por ele publicados mais recentemente, se demonstraria a quem o não soubesse, quanta injúria lhe faria quem deveras lhe imputasse o sedicioso propósito aquilo que aliás parece inferir-se deste livro».

Depois aprecia Castilho o Eurico sob o ponto de vista meramente literário.

«Considerado em si mesmo, - diz o crítico - e sem relação à sua possível influencia literária, pareceu-nos admiravelmente belo; tomado porém como norma, ou exemplar, perigoso e altamente perigoso.

A severa e sombria invenção do Eurico pedia (nem talvez admitisse outro) um estilo perpetuamente levantado, enérgico, solene; estilo que tem por escolho oculto, e nem sempre declinável, a exageração e a ênfase, e com o qual, até sem se cair no excesso, dificílimo é escrever algumas páginas, que o geral dos leitores hajam de seguir sem canseira e com prazer.

Grande talento, grande habilidade, grande perícia de escritor, mostrou quem no decurso de trezentas, empregando em todas elas uma só cor de estilo, soube conservar-nos o espírito atento e satisfeito. Mas como a reunião desses raros elementos de génio é raríssima, quase todos os que, fascinados pelo brilho desta amostra o procurassem imitar, fariam obra tanto mais desgraçada e insufrível, quanto maior seria a pompa e vaidade, com que no-la quereriam encapar por milagrosa.

A época, elegida pelo Sr. Herculano para fundo da sua acção, é solene. Duas grandes Monarquias, e as duas maiores Religiões do mundo, a braços. Pelágio é um homem sublime, um destes homens que cifram em si um povo e os seus destinos. Eurico, um gigante moral, que se poderia decompor em três grandes homens: o sacerdote solitário, o poeta inspirado pela Religião e pelo amor, e o guerreiro, herói pela sua Pátria.

Tudo isto eram germens de belezas; mas tudo isto eram também dificuldades de primeira plana. O Sr. Herculano cometeu-as; quem o repreenderia? fiava-se nas suas forcas, e não se enganou.

  A História, quem melhor que ele a conhecia?

  O tom filosófico e o estilo alto que ela demandava, quem poderia disputar-lho?

Os três personagens, de que o seu personagem principal se compunha, tinha ele nas  suas recordações, e na sua experiência própria, por onde os rastrear e conseguir.

Soldado ! o Sr. Herculano o fora, e expusera a vida em vinte combates desesperados.

Solitário e meditativo! o Sr. Herculano o é pela sua estudiosa vocação.

Poeta, e poeta religioso! o autor da Harpa do crente não tem nessa parte a quem inveje.

Mas que outrem, com menos habilitações naturais e acidentais, ponha peito a uma façanha semelhante; terá literalmente o fim da rã da fábula a encher-se de vento para igualar o boi, que se passeia majestoso por cima das ervas que a encobrem ».

Insiste Castilho em que numa literatura principiante, como era então a nossa, os imitadores de obras deste génio haviam de dar péssimo fruto.

«O Eurico, em nossa particular e respeitosa opinião, - acrescenta o poeta - é um livro muito notável para ser lido; muito impróprio para ser inculcado por vade-mecum.

...

O de que hoje principalmente carecemos, o que pedimos, e o que esperamos virá aparecendo, são obras correntes, acessíveis a todos os entendimentos, aptáveis a todos os gostos; espelhos do mundo, da alma, e do coração, três coisas em que há sempre misturada toda a sorte de cores e de tons.

Autores podíamos já aqui denunciar - conclui Castilho por quem tais obras nos podem e nos hão de ser trazidas; mas não queremos hoje faltar senão daquele com quem encetámos este artigo, e que de boa vontade citaremos como um dos primeiros entre os primeiros.

«O Monge de Cister», que há de seguir ao Presbítero, formando como ele parte da colecção de romances do Sr. Herculano com o título Monasticon, quanto é possível julgarmo-lo pelas amostras que dele temos visto impressas, há-de ser muito mais obra para se inculcar ao estudo e meditação da mocidade ainda não formada.

Enfim: quando outra prova não tivéramos do muito que se deve aguardar, que se pode e se tem direito para exigir, do talento romanceiro deste estimável escritor, senão a Abóbada, e a Abóbada bastaria para se lhe não recusar um dos lugares mais distintos.»

*

Eis aí, em resumo, o que disse Castilho.

Peço encarecidissimamente a quem se interessar no assunto, que não forme parecer sem ler na íntegra o artigo, e julgue se não é aquele o modo de exercer a missão de crítico. Turibular sem trégua, ou esmordaçar sem dó nem consciência, nunca foi crítica literária; a primeira coisa é ociosidade, a segunda pode ser derramamento de bílis. Expor a opinião do censor, apresentá-la modestamente como persuasão individual, tratar com respeito e benevolência o criticado, mas não dissimular os motivos do desagrado (se os há), restringindo a análise à matéria, e nunca enxovalhando o autor, eis aí os direitos e deveres do juiz ; eis aí tudo que ressumbra do artigo de Castilho.

Herculano era novo; era de si altivo; acabava de publicar aquele livro notável; estava por isso no período psicológico em que o artista, ao levantar mão da sua obra, ainda vibra na comoção íntima do compor; não teve, julgo eu, a fleuma de encarar a sangue frio o que havia li de conselhos paternais de mais velho e mais experimentado; creu-se humilhado diante da turba crescente dos seus admiradores; doeu-se,  ele, religioso, ele autor, da Harpa do Crente, ao ver que um amigo íntimo recusava ao livro as qualidades de modelo moral; sentiu-se ao perceber que esse amigo, habituado a ser ouvido e acatado, aventava nesse livro ideias subversivas, inconscientemente postas aí pelo autor; viu nessa crítica (mas viu muito mal) uma animosidade; casou o facto com alguma questiúncula nossa desconhecida, e quebrou.

Isso, já se vê, é conjectura. Tenho a minha persuasão, mas unicamente como jurado. Não sou juiz. Quem o for (ou antes, quem o pode ser) que sentenceie; e a memória de Herculano, e a de meu Pai, que me perdoem se lhes fiz injustiça.

*

O que não é conjectura, o que sei, de ciência certíssima, e juro, é que minha Mãe tinha profundo desgosto com este estado, e, como alma pura e excelente, não concebia a frieza entre os dois. Pediu, instou, interpôs todas as seduções da sua influência sobre meu Pai, e obteve que este escrevesse em 1851 (salvo o erro) uma cartinha a Herculano abrindo de novo relações, não falando no passado, e estendendo ao velho amigo mão de amigo. Herculano não respondeu; e Silva Túlio, emissário da carta, só dizia frases incompletas e quebradas, ao ter de dar conta da sua incumbência.

Quando em 1860 Castilho entendeu dever convidar todos os literários de Portugal para o grande repositório das Notas dos Fastos, não quiz exceptuar hostilmente Herculano. Dirigiu-se-lhe por carta. Herculano nem com um bilhete respondeu.

E enfim, quando Castilho escreveu acerca do Poema da mocidade do Sr. Pinheiro Chagas, tornou a lembrar-se de Herculano; e, ao dizer que há belos poemas em prosa, cita A Abóbada, e o Eurico 10.

Castilho era muita vez versátil; a sua índole era branda, se bem que às vezes fogosíssima e desmandada; levava-se sempre das primeiras impressões, e depois esquecia, com a melhor vontade, qualquer ofensa recebida ou cometida. Era feito assim.

Herculano (e com isto Deus sabe que o não quero ofender) era, apesar de afectuoso, mais frio, mais lembrado, mais firme, mais lógico.

Diferença entre um poeta, e um historiador.

Muita vez, em casa de Túlio (quando escrevi isso aí estavam as senhoras para o confirmar, assim como o Dr. Tomás de Carvalho, e outras pessoas) muita vez se encontraram Castilho e Herculano; mas como Castilho não via, Herculano saía logo, se o seu antigo amigo entrava, ou retirava-se apenas sabia que ele lá estava já.

Uma vez, tendo Castilho jantado em casa de Túlio, dormia a sesta num sofazinho da sala (na casa do Largo da Biblioteca Pública n.º 8, 1.º andar), quando chegou Herculano. Deteve-se à porta, indeciso se havia de entrar. A Sra. D. Maria Lina de Caldas Aulete, cunhada de Túlio, tinha ido receber o grande historiador à porta da tal sala, e apontando-lhe para aquele velho que ali dormia, sereno, e sem imaginar o que se estava passando, mostrou-lhe aquelas barbas brancas, invocou a amizade de Herculano, e suplicou-lhe (como as Santas sabem suplicar), que desse um passo até aquele sofá. Herculano retirou-se para o escritório de Túlio; e só dizia, aliás comovido:

- Nada; nada; quando se foi muito amigo, e a amizade se rompeu, é para sempre.

Quando Castilho esteve tão doente em 1869, que o julgámos perdido, e que Portugal todo se interessou na melhora do poeta, Herculano foi o único Português que não só não apareceu a informar-se do seu antigo companheiro, mas nem pelo correio se informou.

Quando Castilho enviovou, em 1871, e que todos o vimos delirar de dor, sendo necessário arrancá-lo ao seu lar, e mudá-lo para fora, toda a gente, amiga e não amiga, conhecida e não conhecida, o acompanhou como pôde. Herculano não se nos manifestou.

Um nosso leal amigo disse-me, logo depois da morte de Herculano (e um parente de Herculano mo confirmou depois):

- Soube agora, em Vale de Lobos, que o Alexandre Herculano tinha tido uma grande e sincera pena da viuvez de teu Pai, e que, passeando agitado no seu escritório, depois de ler nos jornais a notícia do falecimento da tua boa Mãe, dizia: «Pobre Castilho! Triste Castilho! O que ele não terá padecido! Vou buscá-lo, para vir estar comigo aqui um tempo.»

- E então porque não foi? - perguntei eu.

- Não sei o que se meteu, que o não deixou cumprir tão bom desejo. Mas por aqui já tu vês quanto ele amava e respeitava teu Pai.

Quando Castilho nos faltou em 1875, a voz de Herculano não soou em parte alguma, nem a sua presença foi vista em nenhuma das Missas e exéquias que se celebraram.

*

Basta deste tristíssimo assunto. Desde o princípio do capítulo até agora criei muitos mais cabelos brancos do que já tinha.

Corolário

O que as várias versões apontadas demonstram, é que motivo sério  não existia, que pudesse (nem por sombras) comprometer a dignidade de qualquer dos dois. Se existisse, teria transparecido, mais por aqui, mais por ali. Entrevejo nisto qualquer questiúnculas de lana-caprina; razões pueris que nada valem; mistério insignificante, cuja chave, ainda assim, só Deus conserva. Genus irritabile vatum.

E convençamo-nos de uma verdade: nada há mais infantil, do que os homens de grande talento.

Falando das terríveis desavenças entre Voltaire e Rousseau (João Baptista), diz certo biógrafo:

«O mais notável é que esses dois homens celebres tivessem querido ostentar desprezos que els não tinham um pelo outro, e aniquilar no seu intimo a recíproca estima, a que, apesar de si próprios, não sabiam fugir.» 11

 

 


Notas:

1. Vide Memórias de Castilho, t. II, pág. 320.

2. A Noite do castello, 1.ª ed., pág. 99.

3. Metamorfoses, Prólogo, pág. XXXVI.

4. Revista Universal, t. IV, pág. 36, art. 3.275.º

5. Idem t. I, pág. 545.

6. Idem, t. III, pág. 342.

7. Excavações poeticas, pág. 16.  

8. Hoje diríamos romancista.

9. Revista Universal, t. IV, pág. 313.

10. Pág. 235.

11. «... Ce qu'il y a de plus singulier, c'est que ces deux hommes célèbres aient voulu inspirer au public un mépris qu'ils n'avaient pas l'un pour l'autre, et anéantir dans leur coeur une estime qu'ils y sentaient malgré eux ...» Dictionnaire universel historique, critique et blibliographique, Paris, 1811, artigo Rousseau, t. XV, pág. 289, col.1.ª

Fonte:

Júlio de Castilho, Memórias de Castilho, Tomo IV: Livro IV - de 1841 a 1847. 2.ª Ed., Coimbra, Imprensa da Universidade («Instituto de Coimbra»), 1930; Capítulo XXIV, págs. 224-244.

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