D. Luís da Cunha

D. Luís da Cunha

(Busto em mármore de
Jan Baptist Xavery)


Testamento Político,
de D. Luís da Cunha

 

«Deus não pôs os ceptros nas mãos dos príncipes
para que descansem, senão para trabalharem
no bom governo dos seus reinos.»

 

O testamento Político de D. Luís da Cunha foi uma das obras políticas mais lidas e conhecidas no Portugal da segunda metade do século XVIII, mesmo que só tenha circulado por meio de cópias manuscritas. Apresentado pela primeira vez em 1815 no Observador Português,  jornal português publicado em Londres, foi impresso em livro em 1820, e só reeditado em 1943 pela «Seara Nova», havendo uma edição brasileira de 1960. 


Parte 2/3

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Texto completo

 

Estes, senhor, são os perigos, os males de que Portugal padece, e tanto mais perigosos quanto são inveterados, e a que V. A., como também pai de famílias deve acudir, sem desesperar de que se lhes possa achar remédio se não para de todo e radicalmente os sarar, ao menos para aliviar em grande parte o enfermo. Grande seria a minha fortuna se erigindo-me em médico consultante, ainda que não consultado, e só pelo amor que tenho ao doente, indico os remédios que se me oferecem, não aprendidos na escola de Avicena 1, mas nas observações que tenho feito em semelhantes enfermidades; e se alguns parecerem violentos bem sabido é o provérbio – in extremis – etc. 2 A fim de que se não acuse o espírito do médico, mas a espécie da enfermidade; de sorte que se também praticar a arte de cirurgia, cortando pelo vivo, é para que os herpes não ganhem a parte que se pode preservar da inteira corrupção.

É constante que se não pode curar algum enfermo sem que o prudente médico observe o seu aspecto, considerando os sintomas, a conformação do seu corpo, a constituição dos seus humores, as suas forças e tome todas as mais indicações para vir, tanto quanto poder ser, no conhecimento da causa do mal, que o aflige; isto não é só para remediar a sua, queixa, mas para prevenir o de que pode estar ameaçado.

Se o médico examinar o aspecto, e conformação de Portugal, verá logo que o seu primeiro mal é a estreiteza dos seus limites, mal, digo, incurável, sem nos podermos queixar da Providência, que assim o permitiu, de que resulta o seu mal, que é a debilidade das nossas forças à proporção das dos seus vizinhos; mas como esta fraqueza seja irreparável, e não tenha remédio específico,  parece se deve recorrer a algum que supra parte daquela falta, recorrendo a forças estrangeiras, como já recorremos quando, fizemos com França o tratado que caducou 3, e com Inglaterra o que ainda existe 4, porque o que no mesmo dia celebrámos com Holanda nunca se ratificou; porém esta precaução será inútil enquanto da nossa parte não fizermos o que devemos e podemos. fazer, para nossa defesa, pois o mesmo Deus nos manda que nos ajudemos para que ele nos ajude.

A este fim V. A. pode ter: 1.º de 25 até 30 mil bons soldados infantes, entretidos, e disciplinados, como se no outro dia se houvessem de pôr em campanha; 2.º bem providos os seus armazéns de armas, e artilharia com todos os mais materiais, munições, e petrechos de guerra; 3.º bem reparadas, e melhoradas as fortificações de todas as suas fronteiras com muitos engenheiros que não estejam, como agora estão, comendo o soldo ociosamente; de maneira que, ajuntando-se-lhe as milícias na forma em que França com tanta utilidade delas se serve, poderá ter um exército muito bom para quando a ocasião se oferecer. A esta força terrestre será ainda mais preciso que lhe corresponda a marítima; porque Portugal se pode contar entre as potências que tomaram este nome pela vizinhança do mar, e pelas frotas que lhe vêm das três partes do mundo; em cujos termos necessita V. A. de ter pelo menos 20 navios de guerra de 50 até 64 peças de artilharia, dos quais se poderá servir para comboiar as frotas, e guardar as costas dos insultos dos Mouros. Mas como não basta ter navios sem marinheiros para os navegar, dissera que V. A. se servisse do método que se pratica na Marinha de França, mandando alistar todos os do seu reino, repartindo-os em diferentes classes para deles se servir nas ocasiões que se lhe oferecerem; e não transcrevo aqui qual seja este método por andar impresso nas suas ordenações.

Ainda que ignoro a quanto montam as rendas não casuais da coroa, ninguém me diga que ela não pode sustentar as forças de que acima falo; pois todos sabem as rendas da Suécia, e Dinamarca, e no que consiste o seu comércio, e com tudo a primeira entretém 30 navios de guerra, e a segunda 25 com tropas à proporção; e se nos quisermos lembrar do tempo em que o senhor rei D. João IV a restaurou, veremos que sem primeiro haver contratado alguma aliança, sem primeiro ter levantado algum exército, nem aparelhado alguma armada, e sem possuir o Brasil, apesar de tudo resistiu o que parece tanto mais impossível, que as primeiras letras de cambio que passou, para tirar de Amsterdão tudo o que lhe era necessário, ninguém quis aceitar, e se apregoaram na Praça, e seriam protestadas, se Jerónimo Nunes da Costa 5 (já se sabe judeu) não as tomasse. E por este tão grande serviço lhe deu o dito senhor a patente de seu agente, que o senhor rei D. Pedro II confirmou depois a seus filhos, Alexandre e Álvaro Nunes da Costa; mas S. Majestade não quis continuar este emprego a seu neto por ser judeu, como se seus pais e avô fossem cristãos.

Se pois V. A. tiver as forças que lhe indico, não digo que Portugal ficaria totalmente curado do mal presente, porque isto não cabe na possibilidade; mas prevendo o futuro, sempre nos darão tempo para resistirmos aos primeiros insultos dos inimigos, e para esperarmos os socorros que tivermos estipulado com os nossos aliados, de que nasce ser necessário reformar o tratado de perpétua aliança defensiva, que fizemos com a rainha Ana de Inglaterra; porque até agora não o renovámos com Jorge I e Jorge II 6, o qual não deixaria de se interessar para que a República de Holanda ratifique o de que já falei, pois a uma e outra potência convéns a conservação de Portugal, e ainda mesmo à França, sem embargo das estreitas inclusões em que se acha com a coroa de Espanha, porque pela conquista de Portugal poderá vir a ser o que dantes era, o que parece impossível vir a ser; mas como o mundo dá tantas voltas, todas concorrerão para que ele nesta parte não a dê, porque se Espanha estivesse senhora da prata e ouro, e mais produtos de Portugal e da América, daria a lei a todas as potências da Europa; e esta razão de Estado é o nosso melhor garante, em que com tudo não devemos pôr toda a nossa confiança.

Isto quanto à segurança do reino; mas a respeito da sua real pessoa, não desconvirá de que V. A. tivesse  duas companhias de guardas de corpo a cavalo, ainda que, como disse, delas não necessita possuindo o amor dos vassalos; mas porque todos os potentados da Europa introduziram este costume, e até o mesmo papa o pratica na consideração de que lhe concilia respeito, sendo que – Ecclesia Dei non est defendenda more castrorum. – É bem verdade que assim nesta parte como nas outras se quer supor que sua santidade é um príncipe temporal: terrível distinção, de que se seguem terríveis consequências. Bem vejo que os capitães da guarda de pé lhe farão oposição pelas prerrogativas que gozam os das guardas a cavalo, o que facilmente se comporia, continuando os primeiros as suas funções dentro do palácio, e os segundos as que lhe competem quando el-rei sair fora das portas da cidade, e o seu capitão não tem a quem mandar. Já S. Majestade teve esta mesma tenção nomeando o conde de Tarouca para capitão de uma delas, mas como não fosse o único, seu pai embaraçou o projecto.

Neste caso se deveria evitar o que el-rei católico pratica com as suas companhias das guardas, a saber, que devem servir na sua cavalaria, de que provêm que toda a nobreza nela assente praça, e por isso é muito luzido o seu uniforme. Dada esta providencia ao referido mal, toda a aplicação e trabalho será perdido, se V. A. não fizer ver que tem grande inclinação, não digo, como já disse, a fazer a guerra, mas a ter tudo o que lhe será necessário para a sustentar, mostrando juntamente que estima os seus cabos e não despreza os soldados, que por tão limitado soldo sacrificam as suas vidas. Para este efeito quisera que V. A. regrasse diferentes tempos, em que certos corpos tanto de infantaria, como de cavalaria e dragões, viessem à corte para que em sua presença passassem mostra, e fizessem o exercício para ter ocasião de louvar os oficiais que tivessem completos, e bem disciplinados os seus regimentos, e de mostrar o seu descontentamento aos que houvessem faltado a esta obrigação; porque isto tem lugar de prémio e de castigo para uns e outros, engendrando entre todos uma nobre e útil, emulação.

O uso das outras nações concorre muito para o que digo, como por exemplo os ingleses, que ordinariamente são valorosos, e não fizeram algum general de grande nome, excepto os duques de Marlborough 7 e Millord Cadogan 8, porque o seu ponto de vista é serem parlamentários para talvez forçarem o príncipe, que deles depende, a lhes dar os empregos cíveis que desejam; e pelo contrário em França, onde o parlamento não tem mais influência, que nos processos que julga, as armas são preferidas às letras, de tal sorte que a mulher do primeiro presidente não tem lugar na corte, e por consequência nem alguma mulher dos becas, quando a de qualquer oficial se pode apresentar às Majestades, e por isso estão todos os seus exércitos cheios de muitos e bons generais.

Diga Cícero o que quiser nos seus ofícios sobre esta preferência, porque fala em republicano, e sendo um do mesmo senado donde emanavam as resoluções, que os generais deviam executar na campanha. Eu fui e sou desembargador, mas não daqueles que correm os bancos para o serem, porém nem por isso deixarei de conhecer que V. A. necessita mais de ter bons generais que grandes jurisconsultos; porque destes com sete anos de Coimbra pode ter muitos, e daqueles são raros, ou os não pode haver, quando lhes falta a experiência, que não se adquire senão vendo e pelejando, como diz o nosso celebrado Luís de Camões; mas não o podendo ter, pois graças a Deus, e pela admirável conduta de S. Majestade, vivemos em uma profunda paz, dissera que V. A. subindo ao trono, escolhesse alguns fidalgos que houvessem tomado a vida militar, para os mandar servir onde a guerra se fizesse, e voltarem bem instruídos do que nela se pratica: assim vejo que praticam as outras potências, enquanto gozam da nossa ventura, para quando a perderem.

Que V. A. se faça informar da bisonharia com que começámos a guerra no século passado, e a do presente, porque os nossos generais e oficiais subalternos a não tinham visto: as gazetas daquele tempo fazem fé, porque nelas nos ridiculizam sobre o pouco que sabíamos das operações militares. Ainda que seja necessário mais tempo, e mais prática para se criarem oficiais que defendam o reino  do que jurisconsultos que administrem a justiça, de que a república necessita por não cair em confusão, por agora falarei somente da punitiva, em que ele é mais interessado para que os delinquentes sejam severamente punidos, no que em Portugal se põe muito pouco cuidado.

Eu fui, como já disse, desembargador da relação do Porto e da de Lisboa e observei que muitos dos meus colegas, cujo mau exemplo talvez segui, punham todo o seu cuidado em achar razões para não condenar à morte os que a mereciam, a título mal entendido de piedade, que só seria meritória se fosse revelado ao ministro piedoso, que o que livra da forca não cometeria outro delito; mas como raramente se corrigem, é sem dúvida que de todos os crimes que depois fizerem, devem dar conta a Deus os ministros que lhes conservaram a vida; e é digno de reparo que de ordinário os maiores delinquentes eram os que tinham mais protectores. Não há dúvida que é santo e bom um dos institutos da santa Casa da Misericórdia, nomeando um mordomo, ou um procurador dos presos; mas ainda seria mais louvável se ele não fizesse um ponto de honra de que no seu ano fosse inútil a forca, por não ser este o objecto daquela caridade, senão o de aplicar os despachos das suas acusações, para que os inocentes sejam prontamente soltos, e castigados os convencidos conforme os seus delitos, pois enquanto se demoram nas cadeias fazem à Casa da Misericórdia uma grande despesa e não a faz menos o mesmo mordomo em procurar os meios para os fazer fugir, e em praticarem muitas falsidades para os salvar do patíbulo, o que no meu parecer se devia advertir à Casa da Misericórdia, para que se desse por muito mal serviria do mordomo que usasse de semelhantes excessos para salvar os presos e ainda os riscasse daquela santa irmandade, pois que na prontidão do castigo consiste uma boa parte da justiça, o que entre nós é tanto pelo contrário, que quando um réu vai a padecer, já ninguém se lembra do seu delito.

Em França não sucede o mesmo, porque os processos dos malfeitores são todos sumários, e o juiz do crime se pode servir de todas as sugestões que lhe parecem próprias para que o acusado confesse o seu delito, de maneira que em pouco mais de 15 dias lhe dá a sua sentença, que confirmada no parlamento, vai, ou para a forca, ou para a roda; depois de se lhe  darem diversos e rigorosos tratos para que confesse e declare, se no seu crime teve alguns sócios e descubra outros criminosos: porém, não basta castigar incessantemente os delitos que se cometem; o ponto está em achar meios para que se não cometam principalmente na corte, debaixo dos olhos do príncipe. O 1.º que me ocorre é o de se mandarem alumiar com lanternas todas as ruas de Lisboa, porque a obscuridade da noite facilita os roubos, as mortes, e outros crimes, com pena de galés advirtam aos que as quebrarem. Assim se pratica em todas as grandes cidades da França e Inglaterra, Holanda, etc. E para esta despesa devem concorrer os moradores por ser para comodidade e sossego da sociedade comum; a que ajuntarei que as lanternas não se deveriam acender somente desde o mês de Setembro até o mês de Março, mas todo o ano, ainda que faça luar, porque o verão sempre tem noites em que se pode fazer o que se pretende evitar. E mandar proibir as espadas e qualquer outra arma ofensiva a todas as corporações da cidade e mercadores de loja aberta, deixando-as porém a todos que tiverem algum emprego na república; de que resultaria que muitos por terem a liberdade de trazerem espada se fariam soldados; 2.º que do mesmo regimento de cavalaria, que está aquartelado em Lisboa, se destacasse um certo número de soldados  com seu oficial, à imitação do Guet a cavalo de Paris 9, e passeassem muito devagar por toda a cidade para acudir prontamente a qualquer cousa que acontecesse. E para se imitar o de pé, também quisera que em cada rua houvesse um quadrilheiro, para que todos lhe acudissem tanto que ouvissem a sua matraca ou qualquer outro instrumento que lhe servisse de sinal, como se pratica em Londres e nas cidades de Holanda, e por este meio não lhe escapa a pessoa que cometeu algumas desordens, ou alguns; 3.º que os corregedores e juizes do crime fossem obrigados a dar ao presidente do paço e ao regedor das justiças todos os meses uma exacta lista das pessoas que moram nos seus bairros, e de que vivem, e como vivem, das companhias que frequentam, e dos que de novo nele vêm habitar para não consentir neles nem ociosos, nem vagabundos, porque são os que matam e roubam por não serem conhecidos. E como as mulheres públicas são pela maior parte a causa destes desatinos, não as sofrerão nas suas jurisdições, de maneira que o regedor das justiças lhes fará culpa das desordens, que nelas acontecerem. Da mesma sorte tomarão conhecimento dos pobres, para lhes não permitir que peçam esmola senão os que absolutamente, e de nenhuma sorte não puderem trabalhar. Isto se pratica em Holanda, onde não se vê um só pobre, nem às portas das igrejas, nem nas ruas, que embaraçam os que vão à missa, e os que por eles passam. A caridade é muito louvável, e o Evangelho a recomenda, mas não para que contribua para a ociosidade, de que resulta toda a espécie de vício.

Sem embargo do que acima digo que a república tem mais interesse na boa administração da justiça punitiva que na distributiva, porque lhe importa pouco que a fazenda que pertence a Paulo se julgue a Pedro, pois não faz mais que mudar o possuidor: contudo convém que o príncipe somente meta no Supremo  Tribunal da Relação as pessoas cuja conhecida probidade vêm de par com a sua ciência, pois devem julgar as honras, as vidas e bens de vassalos; mas como os cargos alteram às vezes as inclinações dos homens e por consequência os seus humores, direi que, chegando aos ouvidos de V. A. algumas queixas deste ou daquele desembargador, será fácil saber se foi susceptível de corrupção, quero dizer, mandando tirar uma exacta informação dos bens que legitimamente possui, porque senão ignora o que lhe vale o seu emprego com a pendanga 10 de que é conservador de alguma nação estrangeira, que eu desejara abolir por ser uma quase servidão que a todos pagamos não sem alguns inconvenientes, de que agora seria inútil falar. E combinando a renda que tiver o tal desembargador com a despesa que faz, sem escrúpulo se pode inferir, que sai das partes tudo o que a despesa exceder à receita, para se lhe tirar o cargo, ou a ocasião de ser pior que o pior ladrão, que talvez tem mandado enforcar; porque este se rouba nas estradas, é arriscando de toda a sorte a sua vida, e o ministro, sentado na sua cadeira, rouba sem o menor perigo os bens das partes, vendendo-lhes a justiça.

Se digo que na punitiva se devem evitar as dilações, também é justo que na distributiva se abrevie o procedimento das causas, em que muitas vezes assim os autores como os réus têm despendido mais do que elas valem, sem lhe verem o fim; porém, não só em Portugal é onde se sofre este abuso e sente o mesmo prejuízo. Porque observei que em França, em Inglaterra e Holanda, não são os pleitos menos dilatados, antes excessivamente maiores as despesas que se fazem com letrados, escrivães, notários, procuradores e requerentes, de maneira que nas mãos de todos vem a ficar muita parte da importância dos processos; do que porém resulta uma certa utilidade e vem a ser que as partes algumas .vezes se acomodam, ou não intentam as suas acções por evitarem as ditas despesas e incomodidades dos pleitos.

O primeiro motivo deste desconcerto provém na minha opinião do grande enxame de advogados que temos em Lisboa, uns bons e outros maus, mas que todos para comerem devem precisamente aconselhar as demandas, de que resultam os ódios, as separações dos pais com os filhos, dos irmãos com irmãos, e as inimizades das famílias inteiras, que passam aos seus descendentes. Pelo que me parecia, que se o seu número excedesse o de que se necessita para a administração da justiça, dentre todos se escolhessem os de maior reputação, tanto nas letras, como nos costumes, possa que só eles pudessem advogar parte nas causas cíveis e parte nas criminais; ao que ajuntaria que os formados nos sagrados cânones não pudessem advogar, mas somente os formados em leis, pois vemos que os clérigos tomam também este modo de vida; e se devo dizer tudo, não deviam entrar na Relação, pois que pelou mesmos cânones lhes é defendido de concorrerem por qualquer modo que seja para a morte de qualquer género de pessoa.

Desta reforma dos advogados, que se deveria também observar na Relação do Porto, se seguiria: 1.º que os admitidos, vendo que nenhum dos outros lhe tiraria o pão da boca, antes teriam o que lhes sobrasse para se sustentarem com decência, seriam mais circunspectos em aconselharem os seus clientes conforme a justiça que lhe achassem e não a indigência, ou a ambição que tivessem; 2.º que nesta suposição seriam menos as demandas, porque sendo o processo instruído para se aclarar a justiça de cada qual, o grande número de advogados os obriga a escurecê-la com os seus sofismas, para chuparem a subsistência das mesmas partes que defendem.

El-rei da Prússia, reconhecendo a exorbitância dos advogados, ordenou no novo plano que fez para a boa e breve administração da justiça civil, que não fossem pagos senão depois de dadas as últimas sentenças e avaliando-se o seu trabalho; mas no meu entender este remédio não evita os inconvenientes, que ele quis prevenir, porque sempre fica nas mãos das partes ir dando ao seu advogado o que lhe parecer até à final sentença; e também me parece bem difícil a avaliação do seu trabalho por ser necessário haver respeito à importância da causa, à qualidade dos contendores, à reputação dos advogados e aos papéis que fizeram, e que poderão estender como quiserem; além de que uma parte que está de posse de certa fazenda, que se lhe quer reivindicar, sempre pagará sob mão ao seu letrado à proporção dos anos, que, à força de trapaças, o for conservando na mesma posse.

O dito príncipe ainda fez mais, porque decretou que nenhum processo durasse mais de um ano e assim se começou a executar na Pomerania, que quer dizer terra litigiosa, ou dos litígios, a que aqueles povos, como os nossos minhotos, estão sempre dispostos, e assim, dentro do dito ano se julgaram mil e oitocentos processos e com tão boa amostra do pano mandou praticar o código, apartando-se em muitas coisas do direito comum, que diz ser a causa de tantas chicanas. Não creio que seria necessário servirmo-nos de semelhante exemplo para abreviar os pleitos, mas somente de mandar executar a lei, porque examinando a a forma de julgar os processos em França, Inglaterra e Holanda, achei que a nossa é mais justa e menos sujeita a dilações, porque para todo o processo deu a ordenação o termo limitado a saber, para a citação das partes, para darem o seu libelo, para virem com a sua contrariedade, réplica e tréplica, e para produzirem as suas testemunhas e documentos, visto que todos os processos se reduzem a provar ou não provar as acções que se intentam, para pôr o juiz inferior em estado de proferir a sua sentença; e como os letrados para a prolongarem usam das excepções que a mesma ordenação lhes permite, sejam peremptórias, dilatórias ou declinatórias, e ainda das suspeições, dissera que quando nem umas nem  outras procedessem, tendo só por objecto ganhar tempo, que a parte perdesse o processo e o letrado fosse condenado a não poder mais advogar. E quanto aos agravos de petição, que aos desembargadores ocupa uma boa parte do tempo em os julgar, sendo pela melhor parte sobre ordenar o processo e umas meras trapaças para dilatar a causa principal, também dissera que neste caso os advogados não fossem só os condenados em quatro mil réis para a despesa da relação, que todavia a parte paga, mas que a multa fosse muito maior, e a sua prisão efectiva de mais ou menos dias, conforme a velhacaria o merecer.

Lembra-me porém que, reprovando eu a um dos melhores advogados de defender uma causa em que o seu cliente não tinha a menor sombra de justiça, ele me respondeu que ele em consciência o não podia desenganar, por lhe ter sucedido vencer muitas demandas igualmente injustas, porque os juízos dos homens eram diferentes, e assim não desprezava algum fundamento por mais absurdo que fosse, porque muitas vezes o juiz o abraçava sem fazer caso dos mais sólidos fundamentos igualmente a seu favor. Porém este mal, que se não pode evitar; ao menos não será tão grande e tão comum se se praticarem os expedientes que proponho, reduzindo, como digo, a um certo número os advogados, por quanto os que ficarem de fora não perturbarão a sociedade da república.

Bem considero que muitos dos advogados excluídos ficariam sem ter que comer, nem de que viver, ao que se poderia acudir arbitrando-se para cada grande cidade ou grande vila, à proporção dos seus povos, os letrados que fossem necessários para ali se sustentarem: quanto mais que o mal particular deve ceder ao comum. Sobretudo a perda dos processos, devia ter a pena dos que contra a dita disposição se servissem; sob mão de outro letrado que não fosse dos aprovados pelo Desembargo do Paço, aos quais se deveria proibir ter aos que chamamos embandeirados, que não servem mais de que assinar os papéis, que eles fazem, para se livrarem da prisão e das multas, em que na relação são condenados.

Não são somente os advogados os que com as suas trapaças dilatam as sentenças, mas também os mesmos juizes, que por preguiça demoram nas suas mãos os feitos que lhes foram distribuídos, não havendo algum por grande e embaraçado que seja, que não se possa despachar em um mês, antes há muitos que bastariam 24 horas para se sentenciarem, para se evitar o grande prejuízo das partes, que vem de fora solicitar a sua justiça, faltando assim ao governo das suas casas. Também dissera que o regedor das justiças, que, debaixo do docel da Relação, tem a honra de representar a pessoa do príncipe, devesse tomar a inspecção nos ministros que não davam a expedição necessária aos processos que tinham em suas casas, a fim de os admoestar e ainda de dar conta a S. Majestade de que faltavam à sua obrigação. Isto não só quanto aos desembargadores dos agravos, mas também a respeito dos mais juizes que, como adjuntos, despacham na relação os processos das suas incumbências.

Mas passando a outra matéria não de menor importância: acima deixo dito que se V. A., como verdadeiro pai de famílias, quisesse dar uma volta aos seus domínios, observaria em 1.º lugar qual era a sua estreiteza, à proporção dos do seu vizinho, sobre o que discorri conforme me ocorreu; que, em 2.º lugar, acharia muitas porções de terras usurpadas ao comum das cidades, vilas e lugares, para mandar examinar estas usurpações pelos corregedores das comarcas e juizes de fora, a fim de se restituírem às comunidades por lhe serem de grande uso. Acharia muitas terras incultas por serem montanhas ou puras charnecas, para mandar aos mesmos ministros fazer nelas um rigoroso exame e julgar se são capazes de alguma produção, por ser rara a de que se não pode tirar alguma utilidade, e ser constante que na geral cultura das terras consiste a de todo o reino; para obrigarem os proprietários a mandá-las beneficiar e produzirem, quando mais não seja, grossos matos e árvores, que mais convenham aos terrenos, de que em Portugal há tanta falta para a construção dos edifícios, e mais serviço doméstico; do que em todas as partes se tem cuidado tanto, que no eleitorado de Hannover há uma lei, que dispõe que nenhum paisano possa casar sem provar que tem plantado vinte árvores; o que entre nós é tanto pelo contrário, que me lembro muito bem que o senhor rei D. Pedro, querendo sustentar as fábricas de seda, ordenou que todos os ministros obrigados a dar residência, nela mostrassem que cada qual da sua jurisdição tinha plantado uma amoreira no seu quintal, ou na terra que trazia arrendada; o que se observou alguns anos, e há muitos que se não pratica, porque o paisano que um dia plantava uma amoreira, no outro a arrancava, podendo tirar dela o proveito de lhe vender a folha.

E querendo eu examinar o motivo deste desconcerto, não me veio outro à imaginação senão que o lucro, que se procura aos povos, deveria preceder à força; porém hoje sou de diferente opinião, vendo que são rústicos e preguiçosos, que é necessário forçá-los a procurar o seu mesmo proveito, de que se segue, se o proprietário ou rendeiros das tais terras incultas, sem atenderem ao lucro futuro por se pouparem às despesas presentes, as não quiserem cultivar, seria justo que se lhes tirassem, vendendo-se ou aforando-se a quem se obrigasse a frutificá-las, tantas quanto lhe for possível, porque importa pouco que se faça uma injustiça a certo particular, quando dessa resulta a utilidade comum, visto que – salus populi suprema lex est11 , e que a salvação dos povos consiste na cultura das terras; e para prova do referido é necessário saber que os nossos reis foram tão liberais nas doações que fizeram aos frades, principalmente bernardos e bentos, porque supunham que as terras que lhes davam eram matos incapazes de produzir algum fruto; mas eles as cultivaram de maneira que hoje são fertilíssimas e fazem a grande riqueza dos seus conventos.

Isto mesmo sucedeu em Flandres; os religiosos das ditas ordens gozam de grandes abadias, que os príncipes lhes concederam pela mesma razão que acima aponto; e por isso não só todas as nações da Europa põem todo o cuidado na cultura das terras, mas ainda a chinesa; porque o mesmo imperador, para mostrar aos seus vassalos o quanto ela importa, estabeleceu um dia solene em que ele com os principais da sua corte vai lavrar e semear pela sua mão o trigo, em certa porção de terra para isso destinada. Nesta cultura das terras entra a conservação e aumento das árvores, dos bosques e dos matos, quando elas não podem produzir outra coisa, como também dos pastos para a criação dos gados de todas as espécies, porque tudo concorre para a abundância d o país.

Da mesma sorte dissera que V. A. Acharia certas boas povoações quase desertas, como por exemplo na Beira Alta os grandes lugares da Covilhã, Fundão, e cidade da Guarda e de Lamego; em Trás-os-Montes a cidade de Bragança, e destruídas as suas manufacturas. E se V. A. perguntar a causa desta dissolução, não sei se alguma pessoa se atreverá a dizer-lha com a liberdade que eu terei a honra de fazê-lo; e vem a ser que a Inquisição prendendo uns por crime de judaísmo e fazendo fugir outros para fora do reino com os seus cabedais, por temerem que lhos confiscassem, se fossem presos, foi preciso que as tais manufacturas caíssem, porque os chamados cristãos-novos os sustentavam e os seus obreiros, que nelas trabalhavam, eram em grande número, foi necessário que se espalhassem e fossem viver em outras partes e tomassem outros os ofícios para ganharem o seu pão, porque ninguém se quis deixar morrer de fome.

A segundo parte da causa, que não é irreparável, como em seu lugar direi, foi a permissão que S. Majestade deu aos ingleses para meterem em Portugal os seus lanifícios, principalmente os panos, havendo doze anos que o dito senhor os tinha proibido, de que resultava que as nossas manufacturas se iam aperfeiçoando de tal maneira, que eu mesmo vim a França e passei a Inglaterra vestido de pano fabricado na Covilhã ou no Fundão. Para esta desgraça concorreram três coisas, a primeira querer o senhor rei D. Pedro comprazer com a rainha de Inglaterra, com a qual acabava de fazer um tratado de perpétua aliança defensiva e lhe pedia que levantassem pragmática; a segunda ser D. João Methuen [no original Matuen], seu embaixador, irmão de um grande mercador de panos e assim trabalhou em causa própria, sem embargo de que sempre lhe fui contrário; e a terceira, que pôs a foice à raiz, foi que o dito embaixador fez conceber a certos senhores, cujas fazendas pela maior parte consistem em vinhos, que estes teriam melhor consumo em Lisboa pela grande quantidade que deles sairia para fora, se por equivalente desta permissão, Inglaterra se obrigasse a que os vinhos de Portugal pagassem de direitos a terça parte menos que os de França; e isto bastou para que o tratado se concluísse e para que as nossas fábricas, como acima digo, totalmente se perdessem 12.

Não há dúvida que a extracção dos nossos vinhos cresceu incomparavelmente, mas sujeita a que a poderemos perder todas as vezes que os ingleses deixarem de se conformar ao pé da letra com o mesmo tratado, isto é, que os vinhos de França não paguem de direitos a terça parte de mais do que os de Portugal, porque logo não terão [a] saída que agora têm, enquanto os primeiros pagam não só a dita parte de mais, mas metade; e nem por isso se deixe de tirar de Bordéus uma excessiva quantidade por serem melhores, mais baratos e ser mais breve o seu transporte.

Contudo esta grande exportação de vinhos não é tão utilíssima como se imagina, porque os particulares converteram em vinhas as terras de pão, tirando assim delas maior lucro, mas em desconto a generalidade padece maior falta de trigo, de centeio e cevada, de sorte que se o vinho sai de Portugal, é necessário que de fora lhe venha maior quantidade de pão.

Acresce, como deixo dito, que V. A. acharia impraticáveis muitos caminhos, de que em parte provém a decadência do comércio interior do reino, não se podendo, ou sendo muito difícil, transportar as fazendas de umas para outras províncias, o que porém se poderia remediar, obrigando os moradores circunvizinhos a que por seus turnos trabalhassem a fazer mais cómodas as ditas estradas, pois da frequência da sua passagem sempre tirariam alguma conveniência; bem sei que em algumas partes seria inútil o seu trabalho para dar a comodidade dos carros.

De Haia para Amsterdão e de Amsterdão para Haia, além do correio ordinário, partem todos os dias dois carros de posta cobertos e capazes de receber passageiros, e um grande barco para a fazenda que se quer transportar. Da mesma Haia para Delft, e de DeIft para Haia parte um barco todas as meias horas e de três em três parte outro para Roterdão e para Leyde da mesma sorte que destas cidades e de outras partem para Haia, além dos barcos mercantes; tal é a frequente correspondência e tal o comércio que entre elas circula. Para darmos alguma ao nosso, dissera que este negócio se tratasse com o correio-mor, propondo-lhe que devesse ter em cada lugar notável uma boa casa de posta, onde sustentasse um certo número de bestas de carga, destinadas a fazerem os mesmos serviços dos carros, como também cavalos de posta para que deles se possam servir os mercadores; que necessitarem de mais prontos avisos; pois ninguém crerá que entre duas cidades de tão grande comércio, como são Lisboa e o Porto, não podem os negociantes ter resposta senão em quinze dias, de que o mesmo correio-mor pode tirar, o seu proveito; e quando não lhe convenha, poderá S. Majestade tirar-lhe o ofício, pagando-lhe a soma, que por ele deram os seus antecessores, pelo valor da moeda que então corria, ou assinar-lhe no rendimento do dito correio uma conveniente pensão, pois que dela tantas vezes tem tirado os seus interesses. Isto mesmo se praticou com o marques de Torcy, porque as postas pertenciam aos secretários de Estado dos Negócios Estrangeiros. El-rei de Castela o tirou ao Conde de Ugnati sem esta circunstância. França e Inglaterra se servem deste grande fundo. 13

Presentemente as províncias de Holanda o cederam ao novo Stathouder 14 , que generosamente o aplicou ao público. Não quero dizer que o nosso correio produzirá tão grandes somas, porque nem temos tantas correspondências, nem tanto comércio; mas no caso de serem melhor regulados os portes das cartas e mandando-se que tidas as que vêm das conquistas vão ao correio, estou bem certo que em S. Majestade poderá arrendar o dito ofício com muito considerável vantagem da sua real fazenda, ajustando as condições que parecerem ser mais necessárias para que as correspondências, assim domésticas, como estrangeira, sejam regulares.

Como seja de grande consequência que se aumente o comércio interior do reino, são os intendentes das províncias de França obrigados a mandar à corte um exacto extracto do estado da agricultura, matos, águas, pontes, comércio, calçadas, caminhos, estradas, bosques e manufacturas dos lugares da sua jurisdição; e este foi o freio que el-rei cristianíssimo quis pôr aos governadores das mesmas províncias, que não usavam bem do poder que nelas tinham. El-rei da Prússia imitou o exemplo e el-rei católico fez o mesmo em ter intendentes, mas não sei se eles o servem com igual zelo, de maneira que todas as memórias se remetem aos ministros que têm cuidado de darem as ordens necessárias para se reparar o que se achar defeituoso.

Eu creio que não temos necessidade de criar estes novos empregos, porque o bom governo não depende da sua multiplicidade, mas do zelo com que servem os que subsistem, como por exemplo, os corregedores e provedores das comarcas, e os juizes de fora das vilas, que naturalmente devem fazer o mesmo ofício dos intendentes por ser tal a sua obrigação; mas é necessário que o príncipe lhes faça gravemente sentir o seu desagrado, quando a não cumprirem. Eu quisera que fosse um senhor da corte que lhes tirasse a residência e não um ministro de justiça como eles são, por serem uma limitação de regra – Teu inimigo o oficial do teu ofício.

Disse mais que V. A. acharia que a igreja pelo menos possuía a terceira parte do reino, mas não me atreverei a apontar a este grande mal algum remédio, que não seja mais violento que o lenitivo, que a lei lhe aplicou, dispondo no liv. 2.º da Ordenação,  tit. 18, a saber – Que nenhuma igreja, ou mosteiro de qualquer ordem ou religião que seja, possa possuir alguns bens de raiz, que comprarem ou lhe forem deixados, mais que um ano e dia, antes os venderão – . Assim se quis praticar no reinado do senhor D. João IV; mas quando o inter-núncio Ravizza, saindo de Portugal com caixas destemperadas, o deixou excomungado, o Arcebispo de Lisboa, D. Rodrigo da Cunha, 15 tomou sobre si levantar a excomunhão, com tanto que o dito senhor não fizesse executar a sobredita lei, ao que se conformou, porque as cousas estavam muito frescas para dar à corte de Roma mais um pretexto para não o reconhecer.

Também o senhor rei D. Pedro, por conselho dos seus ministros e justas queixas dos seus vassalos, que não achavam em que empregar o seu dinheiro, quis que a lei tivesse o seu efeito; de que resultou que todas as Ordens constituíram por seus procuradores os jesuítas, que souberam atabafar a obrigação, e pôr-lhe em cima a pedra do esquecimento; mas nem por isso deixa de estar na mão do soberano o renová-la. E quando o não queira fazer, por evitar o mal entendido escândalo, que os eclesiásticos afectaram, sempre conviria promulgar uma lei, para que daqui por diante nem os frades, nem as freiras, nem os seus conventos pudessem herdar bens de raiz, antes fossem alienáveis os já adquiridos, sem embargo de que conforme a comum opinião, extremamente prejudicial ao Estado, seja de que são inalienáveis os bens que por qualquer título entram na igreja. De que se segue que pelo decurso do tempo virá a possuir não só a terça parte do reino, como acima digo, mas a metade, porque os confessores abrem as portas do céu aos que na hora da morte deixam às suas Ordens, ou às suas igrejas, o que têm, privando assim os seus sucessores do que naturalmente deviam herdar. A outro abuso se devia ocorrer e vem a ser os falsos patrimónios de certos bens, que os pais fazem a seus filhos para se ordenarem, a fim de que não pagem os impostos, supondo já serem bens da igreja; e assim não deveriam gozar desta isenção, nem estes nem quaisquer outros, sobre este mesmo princípio; antes é justo que todos concorram para as despesas do Estado, que se obriga a conservar-lhes a posse em paz e quietação.

Finalmente disse que não acharia o reino tão povoado corno poderia ser; e assim é, porque o corpo do Estado sofre sucessivamente quatro sangrias, a que será necessário pôr-lhe de algum modo as ataduras para que de todo se não extenue, quando as suas melhores minas consistem nos mesmos braços que trabalham e aumentam a produção das terras. A primeira sangria é a muita gente, que de ambos os sexos entra nos conventos, porque comem e não propagam; e a melhor e mais fácil atadura que se lhe poderia pôr, seria ordenar que os seus prelados não recebessem nem mais frades, nem mais freiras, até se reduzirem ao número que as suas instituições lhes arbitram, para se poder sustentar com as rendas que lhes deixaram.

É verdade que as Ordens Mendicantes não têm rendas, mas por isso mesmo são mais prejudiciais à república; porém, bem se lhes poderá arbitrar um módico número de frades a cada convento, o para celebrarem os ofícios divinos, sem que se pudessem multiplicar, antes as ordens, que se dizem relaxadas, conviria que se reformassem em si mesmas e não parindo novos conventos, que se deveriam extinguir; e esta seria a verdadeira reforma em benefício do público, porque não haveriam nem tantos frades, nem tantas freiras, que por vida e não por vocação, entram nas religiões.

O mesmo digo aqui dos conventos de freiras, onde se acham infinitas mulheres, ou porque seus pais as obrigaram a entrar neles, ou por gozarem da liberdade que não tinham em suas casas. Que V. A. se faça dar uma lista de todos os frades e freiras, que há no reino, e verá, que se metade deles e delas se casassem, seja ou não com desigualdade, o que importa pouco ao Estado, não haveria dúvida em que cresceria o número dos seus sujeitos, e Portugal seria pelo tempo adiante mais povoado; e a este fim seria de opinião que ficasse livre de pagar algum imposto todo o lavrador que tivesse três filhos, porque esta isenção os convidaria a não ficarem  solteiros.

Bem creio que o papa não teria grande dificuldade em conceder o dito breve pelo que respeita às freiras, mas faria muita pelo que toca aos frades, porque perderia tantos súbditos para os dar ao príncipe, de quem naturalmente o são. Outro meio se oferece para evitar o mesmo prejuízo, ainda que não tão eficaz, como por exemplo, que S. Santidade por um novo breve ordenasse que nem os frades nem as freiras pudessem professar, senão de idade de trinta anos; pois é coisa bem estranha que não sejam válidos os contratos, que um menor, de vinte e cinco anos fizer para dispor de quatro mil réis, e que um menor de quinze possa dispor da sua liberdade, tão preciosa como ela é.

Já se vê a utilidade que o Estado retiraria de se adoptar um destes expedientes; porque diminuindo os frades e as freiras, cresceriam os casamentos, e por consequência os povos, ainda que não tanto como entre as nações, onde não há, esta casta de gente. Como os clérigos guardam  o mesmo celibato que os frades, é igualmente preciso que os bispos não ordenem mais que os necessários para o serviço das suas igrejas e que fossem exterminados os que fraudulosamente se fossem ordenar a Castela, com referências falsas. El-rei de Sardenha acudiu a este abuso, mandando que ninguém se pudesse ordenar sem o – Placet  do Síndico; e sobre esta matéria teve uma grande disputa com a corte de Roma, que dizia que a tal resolução infringia a liberdade eclesiástica, mas não teve que dizer quando se replicou que o concílio de Trento arbitrava tantos sacerdotes conforme o número dos povos a que deviam administrar os sacramentos, a que o dito príncipe queria ajuntar mais uma terça parte, mas não privar-se de tantos vassalos para os dar ao papa e deixar de cultivar as terras de seus pais e não pagarem os tributos que lhe competiam. 16

A segunda sangria, que não deixa de enfraquecer o corpo do Estado, e a que não acho remédio, é o socorro da gente que anualmente se manda para a Índia, sem o qual não se poderia sustentar. E como uns morrem na viagem e o que mais é, outros se fazem frades, deveria ser um ponto de instrução do vice-rei não permitir que nenhum soldado, que fosse de. Portugal, entrasse em alguma religião, pois que para se salvarem é bastante a do seu oficio.

A este prejuízo se segue o de que pela mesma razão vêm a faltar os marinheiros, que se debandam e deixam as suas mulheres, de que poderiam ter muitos filhos. O Brasil não sangra menos a Portugal, porque sem embargo de já não ser livre a cada qual passar aquele Estado sem passaporte, conforme ouço dizer, contudo furtivamente se embarcam os que ao cheiro das minas querem lá ir buscar sua vida.

O modo de poder povoar aquelas imensas terras, de que tiramos. tantas riquezas, sem despovoar Portugal, seria permitir que os estrangeiros com as suas famílias se fossem estabelecer em qualquer das suas capitanias que escolherem, sem examinar qual seja a sua religião, recomendando aos governadores todo o bom acolhimento, e arbitrando-lhes a porção de terra que quiserem cultivar. De que se seguiria que sé lá casariam e propagariam, e em poucos tempos os seus descendentes seriam bons portugueses e bons católicos romanos em o caso que seus avós fossem protestantes, no que não acho algum inconveniente, antes vi que os ingleses têm mandado para os seus estabelecimentos, na América; várias colónias do palatinado, e de melhor vontade iriam para o Brasil e cultivariam grande parte daquele vasto país, pois é certo que, depois do descobrimento das minas, tem diminuído a cultura dos açúcares e tabaco, e por consequência o número dos navios que traziam aqueles efeitos e o dos marinheiros que o navegavam.

 

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Notas:  

1. Médico árabe, nascido em Afsana na Pérsia, foi considerado o maior filósofo do Islamismo. Viveu entre 980 a 1037.

2. Correctamente: Extremis morbis, extrema, exquisita remedia optima sunt - Para grandes males grandes remédios.

3. Refere-se ao tratado de 18 de Junho de 1701 com a França, de aliança e de garantia do testamento do rei de Espanha Carlos II. Este tratado caducou com a assinatura do tratado de adesão à Grande Aliança, tendo as relações diplomáticas com a França sido suspensas em Maio de 1704.

4. O tratado de adesão de Portugal à Grande Aliança, assinado em 16 de Maio de 1703 com a Grã-Bretanha, a Coroa de Áustria e as Províncias Unidas (Holanda).

5. Moisés Curiel (1620-1697), conhecido sobretudo pelo seu nome cristão de Jerónimo Nunes da Costa, era agente das Províncias Unidas em Portugal, e tinha sido importante logo a seguir à Restauração de 1640 ao adquirir armas para o exército. Será um dos principais contribuintes para a edificação da Sinagoga portuguesa de Amsterdão, inaugurada em 1675. 

6. Tratado assinado com a Grã-Bretanha, governado pela rainha Ana, e a Holanda em 16 de Maio, no mesmo dia em que foi assinado o de adesão à Grande Aliança

7. John Churchill, 1.º duque de Marlborough (1650-1722), foi a personagem que dominou a vida política inglesa de 1701 a 1711, época em que dirigiu os exércitos aliados que combateram a França de Luís XIV, a Espanha e os seus aliados alemães, durante a Guerra da Sucessão de Espanha, no período do governo pessoal da rainha Ana Stuart, mulher de Guilherme III, de Orange (nota 4 da 1.ª parte)

8. William Cadogan, 1.º conde Cadogan em 1718 (1672-1726) foi o chefe de estado-maior do duque de Marborough, durante o comando deste do exército aliado na Alemanha. 

9. No original Guai, grafia incorrecta da palavra guet. A força de polícia que patrulhava as ruas de Paris. Uma força equivalente só será criada em Lisboa em finais de 1801.

10. No jogo da Garatusa - palavra que significava fraude -, eram cartas que valiam o que se queria; e por isso é aqui usada como significando qualquer coisa que se usa para justificar uma fraude.

11. Que a salvação do povo seja a lei suprema.

12. Refere-se ao Tratado de Methuen, assinado em 27 de Dezembro de 1703, ainda hoje considerado como tendo provocado a destruição das indústrias portuguesas criadas pelo 3.º conde da Ericeira durante o período de 1675 a 1690. Esta visão, muito divulgada e ainda dominante na actual historiografia portuguesa, já foi criticada por Jorge Borges de Macedo e mais actualmente por José Luís Cardoso. Sobre a importância determinante dos vinhos num desenvolvimento sustentado da economia portuguesa deve-se ler Jaime Reis O atraso económico português em perspectiva histórica: estudos sobre a economia portuguesa na segunda metade do século XIX, 1850-1930.

13. Jean-Baptiste Colbert, marquês de Torcy (Torcey no original) (1665-1746) era sobrinho do célebre  ministro de Luís XIV, tendo visitado várias vezes Portugal em missões diplomáticas, foi Superintendente geral dos Correios.

14. Guilherme IV, príncipe de Orange  (1711-1751), foi nomeado em 1718 governador da Frísia e em 1747 stadthouder hereditário das Províncias Unidas, o título de governador militar que os seus antepassados usavam desde a guerra da independência.

15. O arcebispo de Lisboa D. Rodrigo da Cunha (1577-1643), foi um dos governadores do reino que dirigiram o país a partir do dia 1 de Dezembro enquanto D. João IV não chegou a Lisboa. Tinha sido bispo de Portalegre, do Porto a partir de 1619 e arcebispo de Braga de 1627 a 1636.

16. A palavra latina Placet quer dizer está aprovado. Vítor Amadeu II (1666-1732), duque de Sabóia a partir de 1675, rei da Sicília de 1713 a 1720 e da Sardenha a partir de 1720, desde 1701 até 1718 manteve um conflito com a Santa Sé por causa da aplicação daquilo que se chamaria em Portugal o Beneplácito Régio . 

 

Fonte:

Testamento Politico ou Carta Escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao Senhor Rei D. José I. antes do seu Governo, ..., Lisboa, Na Impressão Régia, 1820

A ver também:

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