José Estêvão Coelho de Magalhães
DISCURSO DE JOSÉ ESTÊVÃO
Discurso proferido por José
Estevão na Câmara dos Deputados na sessão de 8 de Janeiro de
1852, no princípio do período
político da Regeneração.
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O discurso foi proferido para defender a lei das
incompatibilidades que tinha sido aprovada em 1851, e que tinha tido a sua entrada
em vigor na Legislatura vigente, a 8.ª desde 1834, devido a terem-se
realizado, em 16 de Novembro de 1851, as primeiras eleições após a
aprovação da lei.
O problema da incompatibilidade apareceu a propósito do deputado Francisco José da Costa Lobo, que era caixa claviculário do contrato do tabaco do Porto, caixa-geral do tabaco e director da Companhia das Vinhas do Alto Douro, e que a lei impedia de ser deputado, quando determinava expressamente que os caixas-gerais do contrato do tabaco, os gestores de rendimentos do Estado assim como arrematadores de concursos de obras públicas estavam impedidos de serem deputados. Mas para José Estêvão o problema não era só legal, era também um problema de princípio; é que com a lei das incompatibilidades não é «o direito eleitoral que se restringe, é a independência do Parlamento que se quer sustentar.» O mandato do deputado não foi aceite, tendo as suas actividades empresariais sido consideradas incompatíveis com as funções de deputado. | |
Sr. Presidente, nós não estamos empenhados numa questão
de pessoas; estamos empenhados numa questão de princípios; ainda mais:
estamos empenhados numa questão de satisfação à opinião pública; um
protesto severo de cercar o Parlamento de todas as condições de prestígio
e de decoro; um protesto que separe bem as nossas doutrinas das doutrinas e
das práticas passadas. Eu não posso deixar de comunicar a esta Câmara a
história curiosíssima desta lei que nos recorda a soberba, o poder e a audácia
destas grandes corporações comerciais e que ainda tem a esperança de nos
mover outra vez. Esta lei fez-se pela primeira vez em 1846; e as considerações
que nos levaram hoje a cercar o Parlamento de todas as condições de
independência levaram os legisladores desse tempo a consignar esse princípio.
Mas na comissão não havia unanimidade e toda a resolução precisa dela
para o aprovar; e nestas circunstâncias eu fui chamado por alguns dos
membros que pertenciam a esta comissão; viam-se-lhes no rosto todos os
sinais da dor; e disseram-me: acuda a este grande princípio, a esta grande
verdade, a esta grande garantia; porque lá está o elemento dos corpos
comerciais que desvirtua com o sofisma o espírito da lei. Eu fui, Sr.
Presidente, e salvei não sei como este princípio que estava já quase em
retirada. Fez-se nova lei em 1851 e apareceram novas lutas e lutas
renhidíssimas; as mesmas hipóteses, os mesmos escrúpulos, as mesmas razões
contra as incompatibilidades, os mesmos embaraços sobre os efeitos
retroactivos, numa palavra, tudo quanto se podia imaginar para fazer
destruir uma garantia que se tem querido afogar com os sofismas mais contrários
à verdade dos princípios. A lei triunfou, mas triunfou, no papel! Pertence
à Câmara, ao primeiro parlamento que foi eleito debaixo da sanção destes
princípios, executá-la com vigor e coragem, dando assim um exemplo de que
é superior a pretensões pessoais, pretensões que já não deviam ter
aparecido no Parlamento. Sr. Presidente, tenho vindo a esta casa quatro ou cinco
vezes, em todas essas quatro ou cinco vezes sempre nesta casa se discute
tabaco, de maneira que há tabaco no princípio, tabaco no meio, tabaco no
fim, há tabaco nas pessoas e há tabaco nas leis. Sr. Presidente, tudo isto vem do vício do modo como entre
nós se administra, vem da política miserável que a tal respeito se tem
seguido. Custa crer que haja ainda quem conserve um contrato que não presta
para nada, que é absurdo, que tem pretensões de uma medida financeira; mas
que não é senão um foco de vexames! (Apoiados.) Não é um contrato financeiro, é um
escândalo. (Apoiados.) Não é útil ao País, é sim vexatório para os
povos. (Apoiados.) Somos nós
os únicos na Europa que conservamos uma coisa tão inaudita, é uma
instituição que cumpre acabar com ela de uma vez para sempre. (Apoiados.)
Só não
acaba com ela a administração que não pode, não sabe ou não tem honra
para administrar os negócios públicos!... Sr. Presidente, eu não tenho nada com o contrato do
tabaco; este contrato, ora aparece como companhia, ora como uma coisa que não
tem grande vulto, ora como uma corporação forte e fortemente regulada e
dirigida, ora como uma coisa que não tem significação, que é apenas
regulada ou dirigida por simples disposições e deste modo vê-se que a
disposição da lei nunca pode chegar ao, contrato do tabaco nem aos
contratadores! Se acaso se diz ao indivíduo que tem parte na gerência
desse contrato: «Vós sois caixa-geral e como tal estais compreendido nas
disposições da lei», vem logo esse indivíduo redarguir, dizendo: «Não
sou caixa-geral; sou claviculário e nesta qualidade não tenho nada com o
que é relativo às funções de caixa-geral.» Se se lhe observa que é
suplente e que por isso, de um instante para outro, pode entrar nas funções
de caixa, vem logo retorquir: «Para isso é necessário que queira e que
tenha uma certa fortuna; e eu nem quero nem tenho a fortuna que se exige;
era homem rico, hoje sou um homem pobre porque perdi toda a minha fortuna.»
Assim, Sr. Presidente, como é que se há-de apanhar um contratador, um
claviculário ou um caixa do contrato do tabaco? É impossível, Sr.
Presidente, corremos atrás da sombra e a sombra foge de nós! Não é possível
encontrá-la. Sr. Presidente, até aqui tenho visto fugir sempre à
questão o ilustre deputado eleito de quem se trata; em todas as questões
que se lhe opõem a respeito da sua capacidade legal vê-se sempre
maltratado e isto quer nas interpretações largas ou restritas; foge a
todas elas logo que têm por fim aplicá-las no sentido de disputar-lhe a
sua entrada nesta casa; de maneira que, deste modo, não pode nunca ser
encontrado para se lhe fazer a devida aplicação da lei. Mas isto não é
admissível, nem se pode tolerar em presença da lei. Sr. Presidente, que diz a lei?... A lei diz que não podem
ser nomeados ou votados para deputados os caixas-gerais do contrato do
tabaco e os gestores principais de quaisquer contratos dos rendimentos do
Estado e os arrematantes das obras públicas. Mas como se quer interpretar
este artigo da lei?... Primeiramente, pretendendo-se distinguir entre
caixas-gerais e gestores principais, a fim de não tornar as palavras da lei
aplicáveis aos claviculários do contrato do tabaco e sim só aos
caixas-gerais propriamente ditos. Mas será isto bastante para iludir a
lei?... Não é, por certo, porque se os caixas pudessem fazer uma pequena
permutação de caixa para caixotes ou bocetas estava iludida a lei. Mas para que é vir aqui com estes subterfúgios que se
apresentaram?... Para que são estes absurdos?... Para que nos empenhamos
tanto em pretender medir a lei por uma medida que lhe é imprópria?... Para
que querem ir atrás deste ramerrão da hermenêutica política?
Consideremos este objecto de mais alto; vamos buscar a fonte e origem desta
lei ou desta disposição da lei. Onde está ela? Está no espírito público;
é em atenção a ele que esta lei foi feita e são essas as circunstâncias
dentro das quais a lei foi feita. O espírito público e as necessidades públicas
é que a ditaram e para atender a ambos é que ela foi criada. Quem a
interpretar de outro modo engana-se e discorre absurdamente. Sr. Presidente, cada incompatibilidade tem limites
naturais e próprios; qual é o fim destas incompatibilidades? O fim é não
aparecerem representadas no Parlamento as grandes companhias e as grandes
corporações comerciais que têm os seus interesses ligados ao Governo,
para poder deixar ao Parlamento toda a liberdade de votar e discutir todas
as questões que tenham relação com os interesses dessas companhias e não
tornar suspeitas as suas decisões com a presença das pessoas
particularmente interessadas nessas corporações. Qual é o limite destas incompatibilidades? O limite é
marcar que as pessoas que estão no caso de directa ou indirectamente
representarem esses interesses e terem parte neles não poderem estar onde
esses interesses tenham de ser debatidos e, se não se seguir isto, então
é inútil a disposição da lei. Pergunto: está o Sr. Deputado eleito Costa Lobo neste
caso? Poderá S. Ex.ª dizer-nos, com a mão na consciência, que não está
neste caso e, por consequência, no caso da lei? E digo isto mesmo em relação
à circunstância de ser claviculário. S. S.a é claviculário
– pois que são os claviculários do contrato do tabaco no Porto? Deixemos
a terminologia marcada na lei e vamos à terminologia dos factos; e por eles
ver-se-á que os caixas-gerais são positivamente os caixas claviculários,
porque de facto os claviculários exercem as funções de caixas-gerais; têm
tanto poder e influência nesses círculos que lhes estão submetidos que os
caixas-gerais nos círculos dessas províncias não são caixas-gerais, não
dão ordens aos claviculários, são os caixas-gerais que fazem pedidos aos
claviculários. Portanto, já se vê que o cargo de claviculário não
difere, em todas as suas relações, do cargo de caixa-geral. Mas, Sr. Presidente, disse o ilustre deputado: «Quando
chegar a ser caixa, isto é, quando me pertença esse lugar, eu renunciarei
a ele; eu, por ora, não sou caixa-geral, sou claviculário, e como tal
posso aqui ter assento. De modo, Sr. Presidente, que pela doutrina do Sr.
Deputado, enquanto S. S.a se não sentar na cadeira de
caixa-geral do contrato não é caixa, não tem nada com a gerência do
contrato, não se lhe pode aplicar a lei e assim será necessário termos no
contrato dois malsins e quando virem o Sr. Deputado sentado na cadeira de
caixa-geral, dizer-lhe: -Agora sim; agora é ocasião de aplicar a lei,
agora não sois claviculário, sois caixa.» Sr. Presidente, argumentou o Sr. Deputado também com os
exemplos de outros países e trouxe o exemplo do que se passou em Inglaterra
com Rothschild. Agora não é ocasião de fazer largas dissertações sobre
esta moléstia que nós temos nesta facilidade de compararmos os objectos
sem conhecermos os objectos comparados e fazer comparações que não têm
cabimento nem aplicação ao negócio em questão, o que dá lugar muitas
vezes a querermos trazer para cá o que cá não se pode admitir, a fazermos
uma ideia falsa a respeito do adiantamento desses países sobre o objecto
dado ou alegado e também a indicar que estamos, em relação a esses países,
em circunstâncias muito inferiores às que na realidade estamos. Ora
Rothschild nunca fez contratos de tabaco (apoiado), nunca vendeu nem geriu objecto de
tabaco; Rothschild é um grande comerciante, é um grande comprador de
fundos; o Rothschild faz grandes transacções sobre fundos nas grandes praças
de crédito e o Sr. Deputado, que sabe como se fazem grandes transacções,
que sabe que se não fazem por contratos como o do tabaco, vê que não
podem ser aplicáveis de modo nenhum a Rothschild as mesmas considerações
e condições que se podem aqui aplicar aos contratadores do tabaco; isso é
uma coisa totalmente diversa. (Apoiados.) Rothschild é, como já disse, um grande
negociador de fundos políticos e particulares e se S. S.a, por
esta circunstância, quer aplicar-lhe a sua doutrina, então no mesmo caso
estavam entre nós os indivíduos possuidores de fundos públicos e que os têm
na Junta do Crédito Público e todos os indivíduos que compram na praça
os papéis de crédito; mas é certo que o argumento do Sr. Deputado não
tem cabimento algum. Mas disse o Sr. Deputado, em referência a Rothschild, que
não são os contratos que impedem a entrada no Parlamento; o Sr. Deputado
está enganado; Rothschild não entrou no Parlamento, mas Rothschild não
entrou porque não estava no caso de lá entrar. Agora a respeito de incompatibilidades em Inglaterra, esse
princípio também lá triunfou e por causas pouco mais ou menos semelhantes
às nossas, porque se reconheceu que a entrada desses indivíduos no
Parlamento não era conveniente nem para os povos nem para eles; porque
muitas vezes há pessoas que comprometem a sua causa com a sua própria
presença e a alguns contratadores do tabaco já aconteceu isso. Por consequência,
dizer ao País «O indivíduo que estiver em tais e tais casos não pode ser
eleito deputado» não é restringir o direito eleitoral, é estabelecer a
independência do Parlamento. Não é o direito eleitoral que se restringe,
é a independência do Parlamento que se quer sustentar. Sr. Presidente, eu não quero prejudicar a justiça com a
política; se o Sr. Deputado atendesse à letra e ao espírito da lei devia
dar-se por satisfeito neste caso.
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Fontes: Diário das Sessões da Câmara dos Deputados, Sessão de 8 de Janeiro de 1852.
Joaquim Simões Franco José Estevão Joel
Serrão (sel.)
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