Antero de Quental, c.1865 |
DISCURSO DE ANTERO DE QUENTAL.
Discurso proferido por Antero de Quental, numa sala do
Casino Lisbonense, em Lisboa, no dia 27 de Maio de 1871, durante a 1.ª sessão das
Conferências Democráticas
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CAUSAS
DA DECADÊNCIA DOS POVOS PENINSULARES Parte 2/3 1.ª Parte | 3.ª
Parte Rasga-se
porém o século XVI, tão prodigioso de revelações, e com ele aparece no
mundo a Reforma, seguida por quase todos os povos de raça germânica. Esta
situação cria para os povos latinos, que se conservavam aliados a Roma, uma
necessidade instante, que era ao mesmo tempo um grande problema. Tornava-se
necessário responder aos ataques dos protestantes, mostrar ao mundo que o espírito
religioso não morrera no seio das raças latinas, que debaixo da corrupção
romana havia alma e vontade. Um grito unânime de reforma saiu do meio dos
representantes da ortodoxia, opondo-se ao desafio, que, com a mesma palavra,
haviam lançado ao mundo católico Lutero, Zwingle, Ecolampado, Melanchthon e
Calvino. Reis, povos, sacerdotes, clamavam todos reforma! Mas aqui aparecia o
problema: que espécie de reforma? A opinião dos bispos e, em geral, das populações
católicas pronunciava-se no sentido duma reforma liberal, em harmonia com o espírito
da época, chegando muitos até a desejar uma conciliação com os protestantes:
era a opinião episcopal representante das igrejas nacionais. Em Roma, porém, a
solução que se dava ao problema tinha um bem diferente carácter. O ódio e a
cólera dominavam os corações dos sucessores dos apóstolos. Repelia-se com
horror a ideia de conciliação, da mais pequena concessão. Pensava-se que era
necessário fortificar a ortodoxia, concentrando todas as forças, disciplinando
e centralizando; empedernir a Igreja, para a tornar inabalável. Era a opinião
absolutista, representante do Papado. Esta opinião (para não dizer este
partido) triunfou, e foi esse triunfo uma verdadeira calamidade para as nações
católicas. Nem era isso o que elas desejavam, e o que pediram e sustentaram os
seus bispos, lutando indefesos durante 16 anos contra a maioria esmagadora das
criaturas de Roma! Pediam uma verdadeira reforma, sincera, liberal, em harmonia
com as exigências da época. O programa formulava-se em três grandes capítulos
fundamentais. 1 ° Independência dos bispos, autonomia das igrejas nacionais,
inauguração dum parlamentarismo religioso pela convocação amiudada dos concílios,
esses estados gerais do cristianismo, superiores ao Papa e árbitros supremos dó
' mundo espiritual. 2 ° O casamento para os padres, isto é, a secularização
progressiva do clero, a volta às leis da humanidade duma classe votada durante
quase mil anos a um duro ascetismo, então talvez necessário, mas já no século
XVI absurdo, perigoso, desmoralizador. 3 ° Restrições à pluralidade dos
benefícios eclesiásticos, abuso odioso, tendente a introduzir na Igreja um
verdadeiro feudalismo com todo o seu poder e desregramento. Destas reformas saía
naturalmente a humanização gradual da religião, a liberdade crescente das
consciências, e a capacidade para o cristianismo de se transformar dia a dia,
de progredir, de estar sempre à altura do espírito humano, resultado imenso e
capital que trouxe a Reforma aos povos que a seguiram. Os graves prelados, que
então combatiam pelas reformas que acabo de apresentar, não desejavam,
certamente, nem mesmo previam estas consequências, o próprio Lutero as não
previu. Mas nem por isso as consequências deixariam de ser aquelas. Bartolomeu
dos Mártires e os bispos de Cádis e Astorga não eram, seguramente, revolucionários:
representavam no Concílio de Trento a última defesa e o protesto das igrejas
da Península contra o ultramontanismo invasor: mas a obra deles é que era,
pelas consequências, revolucionária; e, trabalhando nela, estavam na corrente
e no espírito do grande e emancipador século XVI. Se houvessem alcançado essa
reforma, teríamos nós talvez, Espanhóis e Portugueses, escapado à decadência.
Quem pode hoje negar que é em grande parte à Reforma que os povos reformados
devem os progressos morais que os colocaram naturalmente à frente da civilização?
Contraste significativo, que nos apresenta hoje o mundo! As nações mais
inteligentes, mais moralizadas, mais pacíficas e mais industriosas são
exactamente aquelas que seguiram a revolução religiosa do século XVI:
Alemanha, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Suíça. As mais decadentes são
exactamente as mais católicas! Com a Reforma estaríamos hoje talvez à altura
dessas nações; estaríamos livres, prósperos, inteligentes, morais... mas
Roma teria caído! Roma não
queria cair. Por isso resistiu longo tempo, iludiu quanto pôde os votos das nações
que reclamavam a convocação do concílio reformador. Não podendo resistir
mais tempo, cede por fim. Mas como o fez? Como cedeu Roma, dominada desde então
pelos Jesuítas? Estamos em Itália, meus senhores, no país de Machiavelli !...
Eu não digo que Roma usasse deliberada e conscientemente duma política maquiavélica:
não posso avaliar as intenções. Digo simplesmente que o parece; e que,
perante a história, a política romana em toda esta questão do Concílio de
Trento aparece com um notável carácter de habilidade e cálculo... muito pouco
evangélicos! Roma, não podendo resistir mais à ideia do concílio, explora
essa ideia em proveito próprio. Dum instrumento de paz e progresso, faz uma
arma de guerra e dominação; confisca o grande impulso reformador, e fá-lo
convergir em proveito do ultramontanismo. Como? Duma maneira simples: 1 °,
dando só aos legados do Papa o direito de propor reformas: 2°, substituindo,
ao antigo modo de votar por nações, o voto por cabeças, que lhe dá com os
seus cardeais e bispos italianos, criaturas suas, uma maioria compacta e
resolvida sempre a esmagar, a abafar os votos das outras nações. Basta dizer
que a França, a Espanha, Portugal e os estados católicos da Alemanha nunca
tiveram, juntos, número de votos superior a 60, enquanto os italianos contavam
180, e mais! Nestas condições, o concílio deixava de ser universal: era
simplesmente italiano; nem italiano, romano apenas! Desde o primeiro dia se pôde
ver que a causa da reforma liberal estava perdida. Provocado para essa reforma,
o concílio só serviu contra ela, para a sofismar e anular! Composta e
armada assim na máquina, vejamo-la trabalhar. Para sujeitar na Terra o homem,
era necessário fazê-lo condenar primeiro no Céu: por isso o concílio começa
por estabelecer dogmaticamente, na sessão 5.ª, o pecado original, com todas as
suas consequências, a condenação hereditária por seus merecimentos, mas só
por obra e graça de J. Cristo. Muitos teólogos e alguns poucos sínodos
particulares se haviam já ocupado desta matéria: nenhum concílio ecuménico a
definira ainda. Um concílio verdadeiramente liberal deixava essa questão na
sombra, no indefinido, não prendia a liberdade e a dignidade humanas com essa
algema: o Concílio de Trento fez dessa definição o prólogo dos seus
trabalhos. Convinha-lhe logo no começo condenar sem apelação a razão humana,
e dar essa base ao seu edifício. Assim o fez. De então para cá, ficou
dogmaticamente estabelecido no mundo católico que o homem deve ser um corpo sem
alma, que a vontade individual é uma sugestão diabólica, e que para nos
dirigir basta o Papa em Roma e o confessor à cabeceira. Perinde ac cadaver,
dizem os estatutos da Companhia de. Jesus. Na sessão
13.ª confirma-se e precisa-se o dogma da eucaristia, já definido, ainda que
vagamente, no 4.° Concílio de Latrão, e vibra-se o anátema sobre quem não
crer na presença real de Cristo no pão e no vinho depois da consagração. É
mais um passo (e este decisivo) para fazer entrar o cristianismo no caminho da
idolatria, para colocar o divino no absurdo. Poucos dogmas contribuíram tanto
como este materialismo da presença real para embrutecer o novo povo, para fazer
reviver nele os instintos pagãos, para lhe sofismar a razão natural! Parece
que era isto o que o concílio desejava! Na sessão
14.ª trata-se detidamente da confissão. A confissão existia há muito na
Igreja, mas comparativamente livre e facultativa. No 4.° Concílio de Latrão
restringira-se já bastante essa liberdade. Na sessão 14 a de Trento é a
consciência cristã definitivamente encarcerada. Sem confissão não há remissão
de pecados! A alma é incapaz de comunicar com Deus, senão por intermédio do
padre! Estabelece-se a obrigação de os fiéis se confessarem em épocas
certas, e exortam-se a que se confessem o mais que possam. Funda-se aqui o
poder, tão temível quanto misterioso, do confessionário. Aparece um tipo
singular: o director espiritual. Daí por diante há sempre na família, imóvel
à cabeceira, invisível mas sempre presente, um vulto negro que separa o marido
da mulher, uma vontade oculta que governa a casa, um intruso que manda mais do
que o dono. Quem há aqui, espanhol ou português, que não conheça este estado
deplorável da família, com um chefe secreto, em regra hostil ao chefe visível?
Quem não conhece as desordens, os escândalos, as misérias introduzidas no lar
doméstico pela porta do confessionário? O concílio não queria isto, decerto:
mas fez tudo quando era necessário para que isto acontecesse. Na parte
disciplinar e nas relações da Igreja com o Estado predomina o mesmo espírito
de absolutismo, de concentração, de invasão de todos os direitos. Na sessão
5 a tornam-se as ordens regulares independentes dos bispos, e quase
exclusivamente dependentes de Roma. Que arma esta na mão do Papado, que já de
si não era mais do que uma arma na mão do jesuitismo! Na sessão 13 a só o
Papa, pelos seus comissários, pode julgar os bispos e os padres. É a
impunidade para o clero! Na sessão 4 a põem-se restrições à leitura da Bíblia
pelos seculares, restrições tais que equivalem a uma verdadeira proibição.
Ora, o que é isto senão a suspeição da razão humana, condenada a pensar e a
ler pelo pensamento e pelos olhos de meia dúzia de eleitos? Nas sessões 7.ª,
9.ª, 18.ª e 24.ª estabelecem-se igualmente disposições tendentes todas a
sujeitar os governos, a impor aos povos a polícia romana, apagando
implacavelmente por toda a parte os últimos vestígios das igrejas nacionais.
Finalmente, a superioridade do Papa sobre os concílios triunfa nas sessões 23.ª
e 25.ª, pela boca do jesuíta Lainez, inspirador e alma do concílio... se é
permitido, ainda metaforicamente, falando dum jesuíta, empregar a palavra
alma... A redacção dum catecismo vem coroar esta obra de alta política. Com
esse catecismo, imposto por toda a parte e por todos os modos aos espíritos moços
e simples, tratou-se de matar a liberdade no seu gérmen, de absorver as gerações
nascentes, de as deformar e torturar, comprimindo-as nos moldes estreitos duma
doutrina seca, formal, escolástica e subtilmente ininteligível. Se se
conseguiu ou não esse resultado funesto, respondam umas poucas de nações
moribundas, enfermas da pior das enfermidades, a atrofia moral! Sim, meus
senhores! essa máquina temerosa de compressão, que foi o catolicismo depois do
Concílio de Trento, que podia ela oferecer aos povos? A intolerância, o
embrutecimento, e depois a morte! Tomo três exemplos. Seja o primeiro a Guerra
dos Trinta Anos, a mais cruel, mais friamente encarniçada, mais
sistematicamente destruidora de quantas têm visto os tempos modernos, e que por
pouco não aniquila a Alemanha. Essa guerra, provocada pelo partido católico, e
por ele dirigida com uma perseverança infernal, mostrou bem ao mundo que
abismos de Pódio podem ocultar palavras de paz e religião. O padre não
dirigia somente, assistia à execução. Cada general trazia sempre consigo um
director jesuíta: e esses generais chamavam-se Tilly, Picolomini, os mais
endurecidos dos verdugos! Salvou então a Alemanha e a Europa a firmeza indomável
de um coração tão grande quanto puro, sereno em face dessas hordas fanáticas.
O verdadeiro herói (e único também) dessa guerra maldita, o verdadeiro santo
desse período tenebroso, é um protestante, Gustavo Adolfo. Enquanto ao Papa,
esse aplaudia a matança! O segundo exemplo é a Itália. O terror que inspirava
ao Papado a criação em Itália dum estado forte, que lhe pusesse uma barreira
à ambição crescente de dia para dia, tornou-o o maior inimigo da unidade
italiana. É o Papado quem semeia a discórdia entre as cidades e os príncipes
italianos, sempre que tentam ligar-se. É o Papado quem convida os estrangeiros
a descerem os Alpes, na cruzada contra as forças nacionais, cada vez que
parecem querer organizar-se. «O Papado», diz Edgard Quinet, «tem sido um
ferro sagrado na ferida da Itália, que a não deixa sarar.» Hoje mesmo, se
essa suspirada unidade se consumou, não foi no meio das maldições e cóleras
do clero e de Roma? O único pensamento, que hoje absorve o Papado, é
desmanchar aquela obra nacional, chamar sobre ela os ódios do mundo, o ferro
estrangeiro, podendo ser; é assassinar a Itália ressuscitada! Estes factos são
por todos sabidos. O que talvez nem todos saibam é o papel que o catolicismo
representou no assassínio da Polónia. «A intolerância dos jesuítas e
ultramontanos», diz Emílio de Lavelaye, «foi.a causa primária do,
desmembramento e queda da Polónia.» Esta nação heróica, mas pouco
organizada, ou antes, pouco unificada, era uma espécie de federação de
pequenas nacionalidades, com costumes e religiões diferentes. Encravada entre
monarquias poderosas e ambiciosas, como a Áustria, a Rússia e a Turquia de então,
a Polónia só podia viver pela liberdade política, e sobretudo pela tolerância
contra o inimigo comum, os grupos autonómicos de que se compunha. A essa tolerância
deveu ela, com efeito, a força e importância que teve na história da Europa
até ao século XVII: católicos, gregos cismáticos, protestantes, socinianos,
viveram muito tempo como irmãos, numa sociedade verdadeiramente cristã porque
era verdadeiramente tolerante. Um dia, porém, os jesuítas, lá do centro de
Roma, olharam para a Polónia como para uma boa presa. Aquela nação era
efectivamente um escândalo para os bons padres. Tanto intrigaram que em 1570
tinham já logrado introduzir-se na Polónia: o rei Estêvão Bathory
concede-lhes, com uma culpável imprudência, a Universidade de Wilna. Senhores
do ensino, e em breve das consciências da nobreza católica, os jesuítas são
um poder: começam as perseguições religiosas. Em 1548, João Casimiro, que
antes de ser rei fora cardeal e jesuíta, quer obrigar os camponeses ruténios,
sectários do cisma grego, a converterem-se ao catolicismo. Estes levantam-se,
unem-se aos cossacos, também do rito grego, e começa uma guerra formidável,
cujo resultado foi separarem-se cossacos e ruténios da federação polaca,
dando-se à Rússia, em cujas mãos se tornaram uma arma terrível sempre
apontada ao coração da Polónia. Nunca esta nação teve inimigos tão encarniçados
como os cossacos! Sem eles, a Polónia, enfraquecida entre vizinhos formidáveis,
devia cair, e caiu efectivamente. A partilha espoliadora de 1772 não fez mais
do que confirmar um facto já antigo, a nulidade da nação polaca. Assim
pois, meus senhores, o catolicismo dos últimos séculos, pelo seu princípio,
pela sua disciplina, pela sua política, tem sido no mundo o maior inimigo das
nações, e verdadeiramente o túmulo das nacionalidades. «O antro da Esfinge»,
disse dele um poeta filósofo, «reconhece-se logo à entrada pelos ossos dos
povos devorados.» E a nós,
Espanhóis e Portugueses, como foi que o catolicismo nos anulou? O catolismo
pesou sobre nós por todos os lados, com todo o seu peso. Com a Inquisição, um
terror invisível paira sobre a sociedade: a hipocrisia torna-se um vício
nacional e necessário: a delação é uma virtude religiosa: a expulsão dos
judeus e mouros empobrece as duas nações, paralisa o comércio e a indústria,
e dá um golpe mortal na agricultura em todo o Sul da Espanha: a perseguição
dos cristãos-novos faz desaparecer os capitais: a Inquisição passa os mares,
e, tornando-nos hostis os índios, impedindo a fusão dos conquistadores e dos
conquistados, torna impossível o estabelecimento duma colonização sólida e
duradoura: na América despovoa as Antilhas, apavora as populações indígenas,
e faz do nome de cristão um símbolo de morte; o terror religioso, finalmente,
corrompe o carácter nacional, e faz de duas nações generosas hordas de fanáticos
endurecidos, o horror da civilização. Com o jesuitismo desaparece o sentimento
cristão, para dar lugar aos sofismas mais deploráveis a que jamais desceu a
consciência religiosa: métodos de ensino, ao mesmo tempo brutais e
requintados, esterilizam as inteligências, dirigindo-se à memória, com o fim
de matarem o pensamento inventivo, e alcançam alhear o espírito peninsular do
grande movimento da ciência moderna, essencialmente livre e criadora: a educação
jesuítica faz das classes elevadas máquinas inteligentes e passivas; do povo,
fanáticos corruptos e cruéis: a funesta moral jesuítica, explicada (e
praticada) pelos seus casuístas, com as suas restrições mentais, as
suas subtilezas, os seus equívocos, as suas condescendências, infiltra-se por
toda a parte, como um veneno lento, desorganiza moralmente a sociedade, desfaz o
espírito de família, corrompe as consciências com a oscilação contínua da
noção do dever, e aniquila os caracteres, sofismando-os, amolecendo-os: o
ideal da educação jesuítica é um povo de crianças mudas, obedientes e
imbecis, realizou-o nas famosas -missões do Paraguai; o Paraguai foi o reino
dos céus da Companhia de Jesus; perfeita ordem, perfeita devoção; uma coisa só
faltava, a alma, isto é, a dignidade e a vontade, o que distingue o homem da
animalidade! Eram estes os benefícios que levávamos às raças selvagens da América,
pelas mãos civilizadoras dos padres da Companhia! Por isso o génio livre
popular decaiu, adormeceu por toda a parte: na arte, na literatura, na religião.
Os santos da época já não têm aquele carácter simples, ingénuo, dos
verdadeiros santos populares: são frades beatos, são jesuítas hábeis. Os
sermonários e mais livros de devoção, não sei por que lado sejam mais
vergonhosos; se pela nulidade das ideias, pela baixeza do sentimento, ou pela
puerilidade ridícula do estilo. Enquanto à arte e literatura, mostrava-se bem
clara a decadência naquelas massas estúpidas de pedra da arquitectura jesuítica,
e na poesia convencional das academias, ou nas odes ao divino e jaculatórias
fradescas. O génio popular, esse morrera às mãos do clero, como com tanta
evidência o deixou demonstrado nos seus recentes livros, tão cheios de
novidades, sobre a literatura portuguesa, o Sr. Teófilo Braga. Os costumes saídos
desta escola sabemos nós o que foram. Já citei a Arte de Furtar, os
romances picarescos, as farsas populares, o teatro espanhol, os escritos de D.
Francisco Manuel e do Cavaleiro de Oliveira. Na falta destes documentos,
bastava-nos a tradição, que ainda hoje reza dos escândalos dessa sociedade
aristocrática e clerical! Essa funesta influência da direcção católica não
é menos visível no mundo político. Como é que o absolutismo espiritual podia
deixar de reagir sobre o espírito do poder civil? O exemplo do despotismo vinha
de tão alto! os reis eram tão religiosos! Eram por excelência os reis católicos,
fidelíssimos. Nada forneceu pelo exemplo, pela autoridade, pela doutrina, pela
instigação, um tamanho ponto de apoio ao poder absoluto como o espírito católico
e a influência jesuítica. Nesses tempos santos, os verdadeiros ministros eram
os confessores dos reis. A escolha do confessor era uma questão de Estado. A
paixão de dominar, e o orgulho criminoso de um homem, apoiavam-se na palavra
divina. A teocracia dava a mão ao despotismo. Essa direcção via-se claramente
na política externa. A política, em vez de curar dos interesses verdadeiros do
povo, de se inspirar de um pensamento nacional, traía a sua missão, fazendo-se
instrumento da política católica romana, isto é, dos interesses, das ambições
de um estrangeiro. D. Sebastião, o discípulo dos jesuítas, vai morrer nos
areais de África pela fé católica, não pela nação portuguesa. Carlos V,
Filipe II, põem o mundo a ferro e fogo, porquê? Pelos interesses espanhóis?
Pela grandeza de Espanha? Não: pela grandeza e pelos interesses de Roma!
Durante mais de 70 anos, a Espanha, dominada por estes dois inquisidores
coroados, dá o melhor do seu sangue, da sua riqueza, da sua actividade, para
que o Papa desse outra vez leis à Inglaterra e à Alemanha. Era essa a política
nacional desses reis famosos: eu chamo a isto simplesmente trair as nações. Tal é uma
das causas, se não a principal, da decadência dos povos peninsulares. Das
influências deletérias nenhuma foi tão universal, nenhuma lançou tão fundas
raízes. Feriu o homem no que há de mais íntimo, nos pontos mais essenciais da
vida moral, no crer, no sentir – no ser: envenenou a vida nas suas fontes mais
secretas. Essa transformação da alma peninsular fez-se em tão íntimas
profundidades que tem escapado às maiores revoluções; passam por cima dessa
região quase inacessível, superficialmente, e deixaram-na na sua inércia
secular, Há em todos nós, por mais modernos que queiramos ser, há lá oculto,
dissimulado, mas não inteiramente morto, um beato, um fanático ou um jesuíta!
Esse moribundo que se ergue dentro em nós é o inimigo, é o passado. É
preciso enterrá-lo por uma vez, e como ele o espírito sinistro do catolicismo
de Trento. Esta causa
actuou principalmente sobre a vida moral: a segunda, o absolutismo, apesar de se
reflectir no estado dos espíritos, actuou principalmente na vida política e
social. A história da transformação das monarquias peninsulares é longa, e,
para a minha pouca ciência, obscura e até certo ponto desconhecida: não a
poderia eu fazer aqui. Basta dizer que o carácter dessas monarquias durante a
Idade Média contrasta singularmente com o que lhe encontramos no século XVI e
nos seguintes. Os reis então não eram absolutos; e não o eram porque a vida
política local, forte e vivaz, não só não lhes deixava um grande círculo de
acção, mas ainda, dentro desse mesmo círculo, lhes opunha à expansão da
autoridade embaraços e uma contínua vigilância. Os privilégios da nobreza e
do clero, por um lado, e, pelo outro, as instituições populares, os municípios,
as comunas, equilibravam com mais ou menos oscilações o peso da coroa. Para as
questões sumas, para os momentos de crise, lá estavam as Cortes, onde todas as
classes sociais tinham representantes e voto. A liberdade era então o estado
normal da Península. Parte 2/3
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