Antero de Quental

Antero de Quental, c.1865

DISCURSO DE ANTERO DE QUENTAL.

 

Discurso proferido por Antero de Quental, numa sala do Casino Lisbonense, em Lisboa, no dia 27 de Maio de 1871, durante a 1.ª sessão das Conferências Democráticas

Antero de Quental tenta explicar as razões do atraso português, e do espanhol, desde o século XVII. 

Para ele as causas são três:
1) a reacção religiosa, conhecida como Contra-Reforma, consumada no Concílio de Trento e dirigida pelos jesuítas;
2) a centralização política realizada pela monarquia absoluta, com a consequente perda das liberdades medievais, e
3) o sistema económico criado pelos descobrimentos, de rapina guerreira, que tinha impedido o desenvolvimento de uma pequena burguesia.

A conferência sistematiza teses apresentadas há muito por Alexandre Herculano, todas de carácter político e com pouca confirmação histórica. A primeira tese foi apresentada por Herculano no seu estudo Da Origem e do estabelecimento da Inquisição em Portugal, de 1854. A segunda é a tese de  Montesquieu expressa no Esprit des Lois, e «confirmada» para Portugal pela História de Portugal de Alexandre Herculano. A terceira tese, sobre a causa económica tem origem em autores dos séculos 17 e 18.

Foi publicada em folheto, tendo exercido posteriormente uma grande influencia, sobretudo em Oliveira Martins, que escreverá a História da Civilização Ibérica e  a História de Portugal, em 1879, e o Portugal Contemporâneo, em 1881, tendo como base as teses de Antero e de Herculano.

O discurso está dividido em três partes. 

CAUSAS DA DECADÊNCIA DOS POVOS PENINSULARES
NOS ÚLTIMOS TRÊS SÉCULOS

Parte 1/3

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Meus Senhores:

A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa história aparece aos olhos do historiador filósofo. Como peninsular, sinto profundamente ter de afirmar, numa assembleia de peninsulares, esta desalentadora evidência. Mas, se não reconhecermos e confessarmos francamente os nossos erros passados, como poderemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva? O pecador humilha-se diante do seu Deus, num sentido acto de contrição, e só assim é perdoado. Façamos nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar.

Conheço quanto é delicado este assunto, e sei que por isso dobrados deveres se impõem à minha crítica. Para uma assembleia de estrangeiros não passará esta duma tese histórica, curiosa sim para as inteligências, mas fria e indiferente para os sentimentos pessoais de cada um. Num auditório de peninsulares não é porém assim. A história dos últimos três séculos perpetua-se ainda hoje entre nós em opiniões, em crenças, em interesses, em tradições, que a representam na nossa sociedade, e a tornam de algum modo actual. Há em nós todos uma voz íntima que protesta em favor do passado, quando alguém o ataca: a razão pode condená-lo: o coração tenta ainda absolvê-lo. É que nada há no homem mais delicado, mais melindroso, do que as ilusões: e são as nossas ilusões o que a razão critica, discutindo o passado, ofende sobretudo em nós.

Não posso pois apelar para a fraternidade das ideias: conheço que as minhas palavras não devem ser bem aceites por todos. As ideias, porém, não são felizmente o único laço com que se ligam entre si os espíritos dos homens. Independente delas, se não acima delas, existe para todas as consciências rectas, sinceras, leais, no meio da maior divergência de opiniões, uma fraternidade moral, fundada na mútua tolerância e no mútuo respeito, que une todos os espíritos numa mesma comunhão - o amor e a procura desinteressada da verdade. Que seria dos homens se, acima dos ímpetos da paixão e dos desvarios da inteligência, não existisse essa região serena da concórdia na boa-fé e na tolerância recíproca! Uma região onde os pensamentos mais hostis se podem encontrar, estendendo-se lealmente a mão, e dizendo uns para os outros com um sentimento humano e pacífico: és uma consciência convicta! É para essa comunhão moral que eu apelo. E apelo para ela confiadamente, porque, sentindo-me dominado por esse sentimento de respeito e caridade universal, não posso crer que haja aqui alguém que duvide da minha boa-fé, e. se recuse a acompanhar-me neste caminho de lealdade e -tolerância.

Já o disse há dias, inaugurando e explicando o pensamento destas Conferências: não pretendemos impor as nossas opiniões, mas simplesmente expô-las: não pedimos a adesão das pessoas que nos escutam; pedimos só a discussão: essa discussão, longe de nos assustar, é o que mais desejamos, porque; ainda que dela resultasse a condenação das nossas ideias, contanto que essa condenação fosse justa e inteligente, ficaríamos contentes, tendo contribuído, posto que indirectamente, para a publicarão de algumas verdades. São prova da sinceridade deste desejo aqueles lugares e aquelas mesas, destinadas particularmente aos jornalistas, onde podem tomar nota das nossas palavras, tornando-lhes nós assim franca e fácil a contradição.

Meus Senhores:

A Península, durante os séculos XVII, XVIII e XIX; apresenta-nos um quadro de abatimento e insignificância, tanto mais sensível quanto contrasta dolorosamente com a grandeza, a importância e a originalidade do papel que desempenhámos no primeiro período da Renascença, durante toda a Idade Média, e ainda nos últimos séculos -da Antiguidade. Logo na época romana aparecem os caracteres essenciais da raça peninsular: espírito de independência local e originalidade de génio inventivo. Em parte alguma custou tanto à dominação romana o estabelecer-se, nem chegou nunca a ser completo esse estabelecimento. Essa personalidade independente mostra-se claramente, na literatura, onde os espanhóis Lucano, Séneca, Marcial, introduzem no latim um estilo e uma feição inteiramente peninsulares, e singularmente característicos. Eram os prenúncios da viva. originalidade que ia aparecer nas épocas seguintes. Na Idade Média a Península, livre de estranhas influências, brilha na plenitude do seu génio, das suas qualidades naturais. O instinto político de descentralização e federalismo patenteia-se na multiplicidade de reinos e condados soberanos, em que se divide a Península, como um protesto e uma vitória dos interesses e energias locais, contra. a unidade uniforme, esmagadora e artificial. Dentro de cada uma dessas divisões as comunas, os forais, localizam ainda mais os direitos, e manifestam e firmam, com um sem-número de instituições, o espírito independente e autonómico das populações. E esse espírito não é só independente: é, quanto a época o comportava, singularmente democrático. Entre todos os povos da Europa central e ocidental, somente os da Península escaparam ao jugo de ferro do feudalismo. O espectro torvo do castelo feudal não assombrava os nossos vales, não se inclinava, como uma ameaça, sobre a margem dos nossos rios, não entristecia os nossos horizontes com o seu perfil duro e sinistro. Existia, certamente, a nobreza, como uma ordem distinta. Mas o foro nobiliário generalizara-se tanto, e tornara-se de tão fácil acesso, naqueles séculos heróicos de guerra incessante, que não é exagerada a expressão daquele poeta que nos chamou, a nós Espanhóis, um povo de nobres. Nobres e populares uniam-se por interesses e sentimentos, e diante deles a coroa dos reis era mais um símbolo brilhante do que uma realidade poderosa. Se nessas idades ignorantes a ideia do Direito era obscura e mal definida, o instinto do Direito agitava-se enérgico nas consciências, e as acções surgiam viris como os caracteres.

A tais homens não convinha mais o despotismo religioso do que o despotismo político: a opressão espiritual repugnava-lhes tanto como a sujeição civil. Os povos peninsulares são naturalmente religiosos: são-no até de uma maneira ardente, exaltada e exclusiva, e é esse um dos seus caracteres mais pronunciados. Mas são ao mesmo tempo inventivos e independentes: adoram com paixão: mas só adoram aquilo que eles mesmos criam, não aquilo que se lhes impõe. Fazem a religião, não a aceitam feita. Ainda hoje duas terças partes da população espanhola ignoram completamente os dogmas, a teologia e os mistérios cristãos: mas adoram fielmente os santos padroeiros das suas cidades: porquê? porque os conhece, porque os fez. O nosso génio é criador e individualista: precisa rever-se nas suas criações. Isto (junto à falta de coesão do maquinismo católico da Idade Média, ainda mal definido e pouco disciplinado pela inexorável escola de Roma) explica suficientemente a independência das igrejas peninsulares, e a atitude altiva das coroas da Península diante da cúria romana. Os papas eram já muitos: mas os bispos e as cortes eram ainda bastantes. Para as pretensões italianas havia um não muito franco e muito firme. E essa resistência não saía apenas da vontade e do interesse de alguns: saía do impulso incontrastável do génio popular. Esse génio criador via-se no aparecimento de rituais indígenas, numa singular liberdade de pensamento e interpretação, e em mil originalidades de disciplina. Era o sentimento cristão, na sua expressão viva e humana, não formal e ininteligente: a caridade e a tolerância tinham um lugar mais alto do que a teologia dogmática. Essa tolerância pelos Mouros e Judeus, raças infelizes e tão meritórias, será sempre uma das glórias do sentimento cristão da Península da Idade Média. A caridade triunfava das repugnâncias e preconceitos de raça e de crença. Por isso o seio do povo era fecundo; saíam dele santos, individualidades à uma ingénuas e sublimes, símbolos vivos da alma popular, e cujas singelas histórias ainda hoje não podemos ler sem enternecimento.

No mundo da inteligência não é menos notável a expansão do espírito peninsular durante a Idade Média. O grande movimento intelectual da Europa medieval compreende a filosofia escolástica e a teologia, as criações nacionais dos ciclos épicos, e a arquitectura. Em nada disto se mostrou a Península inferior às grandes nações cultas, que haviam recebido a herança da civilização romana. Demos à escola filósofos como Raimundo Lúlio; à Igreja, teólogos e papas, um destes português, João XXI. As escolas de Coimbra e Salamanca tinham uma celebridade europeia: nas suas aulas viam-se estrangeiros de distinção atraídos pela fama dos seus doutores. Entre os primeiros homens do século XIII está um, monarca espanhol, Afonso, o Sábio, espírito universal, filósofo, político e legislador. Nem posso também deixar esquecidos os mouros e judeus, porque foram uma das glórias da Península. A reforma da escolástica, nos séculos XIII e XIV, pela renovação do aristotelismo, foi obra quase exclusiva das escolas árabes e judaicas de Espanha. Os homens de Averróis (de Córdova), de Ibn-Tophail (de Sevilha) e os dois judeus Maimónides e Avicebron serão sempre contados entre os primeiros na história da filosofia na Idade Média. Ao pé da filosofia, a poesia. Para opor aos ciclos épicos da Távola Redonda, de Carlos Magno e do Santo Graal, tivemos aquele admirável Romancero, as lendas do Cid, dos Infantes de Lara, e tantas outras, que se teriam condensado em verdadeiras epopeias, se o espírito clássico da Renascença não tivesse vindo dar à Poesia outra direcção. Ainda assim, grande parte, a melhor parte talvez, do teatro espanhol saiu da mina inesgotável do Romancero. Para opor aos trovadores provinciais, tivemos também trovadores peninsulares. Dos nossos reis e cavaleiros trovaram alguns com tanto primor como Beltrão de Born ou o conde de Tolosa. Quanto à arquitectura, basta lembrar a Batalha e a Catedral de Burgos, duas das mais belas rosas góticas desabrochadas no seio da. Idade Média. Em tudo isto acompanháramos a Europa, a par do movimento geral. Numa coisa, porém, a excedemos, tornando-nos iniciadores: os estudos geográficos e as grandes navegações. As descobertas, que coroaram tão brilhantemente o fim do século XV, não se fizeram ao acaso. Precedeu-as um trabalho intelectual, tão científico quanto a época o permitia, inaugurado pelo nosso infante D. Henrique, nessa famosa escola de Sagres, de onde saíam homens como aquele heróico Bartolomeu Dias, e cuja influência, directa ou indirectamente, produziu um Magalhães e um Colombo. Foi uma onda que, levantada aqui, cresceu até ir rebentar nas praias do Novo Mundo. Viu-se de quanto eram capazes a inteligência e a energia peninsulares. Por isso a Europa tinha os olhos em nós, e na Europa a nossa influência nacional era das que mais pesavam. Contava-se para tudo com Portugal e Espanha. O Santo Império alemão oferece a orgulhosa coroa imperial a um rei de Castela, Afonso, o Sábio. No século XV, D. João I, árbitro em várias questões internacionais, é geralmente considerado, em influência e capacidade, como um dos primeiros monarcas da Europa. Tudo isto nos prepara para desempenharmos, chegada a Renascença, um papel glorioso e preponderante. Desempenhámo-lo, com efeito, brilhante e ruidoso: os nossos erros, porém, não consentiram que fosse também duradouro e profícuo. Como foi que o movimento regenerador da Renascença; tão bem preparado, abortou entre nós mostrá-lo-ei logo com factos decisivos. Esse movimento só foi entre nós representado por uma geração de homens superiores, a primeira. As seguintes, que o deviam consolidar, fanatizadas, entorpecidas, impotentes, não souberam compreender nem praticar aquele espírito tão alto e tão livre: desconheceram-no, ou combateram-no. Houve, porém, uma primeira geração que respondeu ao chamamento da Renascença; e enquanto essa geração ocupou a cena, isto é, até ao meado do século XVI, a Península conservou-se à altura daquela época extraordinária de criação e liberdade de pensamento. A renovação dos estudos recebeu-a nas suas Universidades novas ou reformadas, onde se explicavam os grandes monumentos literários da Antiguidade, muitas vezes na própria língua dos originais. Entre as 43 Universidades estabelecidas na Europa durante o século XVI, 14 foram fundadas pelos reis de Espanha. A filosofia neoplatónica, que substituía por toda a parte a velha e gasta escolástica, foi adoptada pelos espíritos mais eminentes. Um estilo e uma literatura novos surgiram com Camões, com Cervantes, com Gil Vicente, com Sá de Miranda, com Lope de Vega, com Ferreira. Demos às escolas da Europa sábios como Miguel Servet, precursor de Harvey, filósofos como Sepúlveda, um dos primeiros peripatéticos do tempo, e o português Sanches, mestre de Montaigne. A família dos humanistas, verdadeiramente característica da Renascença, foi representada entre nós por André de Resende, por Diogo de Teive, pelo bispo de Tarragona, Antonio Augustin, por Damião de Góis, e por Camões, cuja inspiração não excluía uma erudição quase universal. Finalmente, a arte peninsular ergue nessa época um voo poderoso, com a arquitectura chamada manuelina, criação duma originalidade e graça surpreendentes, e com a brilhante escola de pintura espanhola, imortalizada por artistas como Murillo, Velásquez, Ribera. Fora da pátria guerreiros ilustres mostravam ao mundo que o valor dos povos peninsulares não era inferior à sua inteligência. Se as causas da nossa decadência existiam já latentes, nenhum olhar podia ainda então descobri-Ias: a glória, e uma glória merecida, só dava lugar à admiração.

Deste mundo brilhante, criado pelo génio peninsular na sua livre expansão, passamos quase sem transição para um mundo escuro, inerte, pobre, ininteligente e meio desconhecido. Dir-se-á que entre um e outro se meteram dez séculos de decadência: pois bastaram para essa total transformação 50 ou 60 anos! Em tão curto período era impossível caminhar mais rapidamente no caminho da perdição.

No princípio do século XVII, quando Portugal deixa de ser contado entre as nações, e se desmorona por todos os lados a monarquia anómala, inconsistente e desnatural de Filipe II; quando a glória passada já não pode encobrir o ruinoso do edifício presente, e se afunda a Península sob o peso dos muitos erros acumulados, então aparece franca e patente por todos os lados a nossa improcrastinável decadência. Aparece em tudo; na política, na influencia, nos trabalhos da inteligência, na economia social e na indústria, e como consequência de tudo isto, nos costumes. A preponderância, que até então exercêramos nos negócios da Europa, desaparece para dar lugar à insignificância e à impotência. Nações novas ou obscuras erguem-se e conquistais no mundo, à nossa custa, a influência de que nos mostrámos indignos. A coroa de Espanha é posta em leilão sangrento no meio das nações, e adjudicada, no fim de doze anos de guerra, a um neto de Luís XIV. Com a dinastia estrangeira começa uma política antinacional, que envilece e desacredita a monarquia. E esse rei estrangeiro custa à Espanha a perda de Nápoles, da Sicília, do Milanês, dos Países Baixos! Em Portugal, é a influência inglesa, que, por meio de cavilosos tratados, faz de nós uma espécie de colónia britânica. Ao mesmo tempo as nossas próprias colónias escapam-nos gradualmente das mãos: as Molucas passam a ser holandesas; na índia lutam sobre os nossos despojos holandeses, ingleses e franceses: na China e no Japão desaparece a influência do nome português. Portugueses e Espanhóis, vamos de século para século minguando em extensão e importância, até não sermos mais que duas sombras, duas nações espectros, no meio dos povos que nos rodeiam!... E que tristíssimo quadro o da nossa política interior! As liberdades municipais, à iniciativa local das comunas, aos forais, que davam a cada população uma fisionomia e vida próprias, sucede a centralização, uniforme e esterilizadora. A realeza deixa então de encontrar uma resistência e uma força exterior que a equilibre, e transforma-se no puro absolutismo; esquecendo a sua origem e a sua missão, crê ingenuamente que os povos não são mais do que o património providencial dos reis. O pior é que os povos acostumam-se a crê-lo também! Aquele espírito de independência que inspirava o firme si no, no! da Idade Média adormece e morre no seio popular. O povo emudece; negam-lhe a palavra, fechando-lhe as Cortes; não o consultam, nem se conta já com ele. Com quem se conta é com a aristocracia palaciana, com uma nobreza cortesã, que cada vez se separa mais do povo pelos interesses e pelos sentimentos, e que, de classe, tende a transformar-se em casta. Essa aristocracia, como um embaraço na circulação do corpo social, impede a elevação natural de um elemento novo, elemento essencialmente moderno, a classe média, e contraria assim todos os progressos ligados a essa elevação. Por isso decai também a vida económica: a produção decresce, a agricultura recua, estagna-se o comércio, deperecem uma por uma as indústrias nacionais; a riqueza, uma riqueza faustosa e estéril, concentra-se em alguns pontos excepcionais, enquanto a miséria se alarga pelo resto do país: a população, dizimada pela guerra, pela emigração, pela miséria, diminui de uma maneira assustadora. Nunca povo algum absorveu tantos tesouros, ficando ao mesmo tempo tão pobre! No meio dessa pobreza e dessa atonia, o espírito nacional, desanimado e sem estímulos, devia cair naturalmente num estado de torpor e de indiferença. É o que nos mostra claramente esse salto mortal dado pela inteligência dos povos peninsulares, passando da Renascença para os séculos XVII e XVIII. A uma geração de filósofos, de sábios e de artistas criadores, sucede a tribo vulgar dos eruditos sem crítica, dos académicos, dos limitadores. Saímos duma sociedade de homens vivos, movendo-se ao ar livre: entrámos num recinto acanhado e quase sepulcral, com uma atmosfera turva pelo pó dos livros velhos, e habitado por espectros de doutores. A poesia, depois da exaltação estéril, falsa, e artificialmente provocada do gongorismo, depois da afectação dos conceitos (que ainda mais revelava a nulidade do pensamento), cai na imitação servil e ininteligente da poesia latina, naquela escola clássica, pesada e fradesca, que é a antítese de toda a inspiração e de todo o sentimento. Um poema compõe-se doutoralmente, como uma dissertação teológica. Traduzir é o ideal: inventar considera-se um perigo e uma inferioridade: uma obra poética é tanto mais perfeita quanto maior número de versos contiver traduzidos de Horácio, de Ovídio. Florescem a tragédia, a ode pindárica, e o poema herói-cómico, isto é, a afectação e a degradação da poesia. Quanto à verdade humana, ao sentimento popular e nacional, ninguém se preocupava com isso. A invenção e originalidade, nessa época deplorável, concentra-se toda na descrição cinicamente galhofeira das misérias, das intrigas, dos expedientes da vida ordinária. Os romances picarescos espanhóis e as comédias populares portuguesas são irrefutáveis actos de acusação, que, contra si mesma, nos deixou essa sociedade, cuja profunda desmoralização tocava os limites da ingenuidade e da inocência no vício. Fora desta realidade pungente, a literatura oficial e palaciana espraiava-se pelas regiões insípidas do discurso académico, da oração fúnebre, do panegírico encomendado – géneros artificiais, pueris, e mais que tudo soporíficos. Com um tal estado dos espíritos, o que se podia esperar da arte? Basta erguer os olhos para essas lúgubres moles de pedra, que se chamam o Escorial e Mafra, para vermos que a mesma ausência de sentimento e invenção, que produziu o gosto pesado e insípido do classicismo, ergueu também as massas compactas, e friamente correctas na sua falta de expressão, da arquitectura jesuítica. Que triste contraste entre essas montanhas de mármore, com que se julgou atingir o grande, simplesmente porque se fez o monstruoso, e a construção delicada, aérea, proporcional e, por assim dizer, espiritual dos Jerónimos, da Batalha, da Catedral de Burgos! O espírito sombrio e depravado da sociedade reflectiu-o a Arte, com uma fidelidade desesperadora, que será sempre perante a história uma incorruptível testemunha de acusação contra aquela época de verdadeira morte moral. Essa morte moral não invadira só o sentimento, a imaginação, o gosto: invadira também, invadira sobretudo a inteligência. Nos últimos dois séculos não produziu a Península um único homem superior, que se possa pôr ao lado dos grandes criadores da ciência moderna: não saiu da Península uma só das grandes descobertas intelectuais, que são a maior obra e a maior honra do espírito moderno. Durante 200 anos de fecunda elaboração, reforma a Europa culta as ciências antigas, cria seis ou sete ciências novas, a anatomia, a fisiologia, a química, a mecânica celeste, o cálculo diferencial, a crítica histórica, a geologia: aparecem os Newton, os Descartes, os Bacon, os Leibniz, os Harvey, os Buffon, os Ducange, os Lavoisier, os Vico – onde está, entre os nomes destes e dos outros verdadeiros heróis da epopeia do pensamento, um nome espanhol ou português? Que nome espanhol ou português se liga à descoberta duma grande lei científica, dum sistema, duma facto capital? A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência: foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos. A alma moderna morrera dentro em nós completamente.

Pelo caminho da ignorância, da opressão e da miséria chega-se naturalmente, chega-se fatalmente, à depravação dos costumes. E os costumes depravaram-se com efeito. Nos grandes, a corrupção faustosa da vida de corte, onde os reis são os primeiros a dar o exemplo do vício, da brutalidade, do adultério: Afonso VI, João V, Filipe V, Carlos IV. Nos pequenos, a corrupção hipócrita, a família vendida pela miséria aos vícios dos nobres e dos poderosos. É a época das amásias e dos filhos bastardos. O que era então a mulher do povo, em face das tentações do ouro aristocrático, vê-se bem no escandaloso processo de nulidade de matrimónio de Afonso VI, e nas memórias do Cavaleiro de Oliveira. Ser rufião é um ofício geralmente admitido, e que se pratica com aproveitamento na própria corte. A religião deixa -de ser um sentimento vivo; torna-se uma prática ininteligente, formal, mecânica. O que eram os frades, sabemo-lo todos: os costumes picarescos e ignóbeis dessa classe são ainda hoje memorados pelo Decameron da tradição popular. O pior é que esses histriões tonsurados eram ao mesmo tempo sanguinários. A Inquisição pesava sobre as consciências como a abóbada dum cárcere. O espírito público abaixava-se gradualmente sob a pressão do terror, enquanto o vício, cada vez mais requintado, se apossava placidamente do lugar vazio que deixava nas almas a dignidade, o sentimento moral e a energia da vontade pessoal, esmagados, destruídos pelo medo. Os casuístas dos séculos XVII e XVIII deixaram-nos um vergonhoso monumento de requinte bestial de todos os vícios, da depravação das imaginações, das misérias íntimas da família, da perdição de costumes, que corria aquelas sociedades deploráveis. Isto por um lado: porque, pelo outro, os casuístas mostram-nos também a que abaixamento moral chegara o espírito do clero, cavando todos os dias esse lodo, revolvendo com afinco, com predilecção, quase com amor, aquele montão graveolente de abjecções. Todas essas misérias íntimas reflectem-se fielmente na literatura. O que eram no século XVII a moral pública, as intrigas políticas, o nepotismo cortesão, o roubo audaz ou sub-reptício da riqueza pública, vê-se (e com todo o relevo duma pena sarcástica e inexorável) na Arte de Furtar do Padre António Vieira. Quanto aos documentos para a história da família e dos costumes privados, encontramo-los na Carta de Guia de Casados de D. Francisco Manuel, nas forças populares portuguesas, e nos romances picarescos espanhóis. O espírito peninsular descera de degrau em degrau, até ao último termo da depravação!

Tais temos sido nos últimos três séculos: sem vida, sem liberdade, sem riqueza, sem ciência, sem invenção, sem costumes. Erguemo-nos hoje a custo, Espanhóis e Portugueses, desse túmulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os passos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões lúgubres e mortais chegámos ressuscitados! Quais as causas dessa decadência, tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada? Examinemos os fenómenos que se deram na Península durante o decurso do século XVI, período de transição entre a Idade Média e os tempos modernos, e em que aparecem os gérmenes, bons e maus, que mais tarde, desenvolvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada qual o seu verdadeiro carácter. Se esses fenómenos forem novos, universais, se abrangerem todas as esferas da actividade nacional, desde a religião até à indústria, ligando-se assim intimamente ao que há de mais vital nos povos estarei autorizado a empregar o argumento (neste caso, rigorosamente lógico) post hoc, ergo propter hoc, e a concluir que é nesses novos fenómenos que se devem buscar e encontrar as causas da decadência da Península.

Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia: a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista. Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do catolicismo do Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus: a classe média, impondo aos reis os seus interesses, e muitas vezes o seu espírito, é o oposto do absolutismo, esteado na aristocracia e só em proveito dela governando: a indústria, finalmente, é o oposto do espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio.

Assim, enquanto as outras nações subiam, nós baixávamos. Subiam elas pelas virtudes modernas; nós descíamos pelos vícios antigos, concentrados, levados ao sumo grau de desenvolvimento e aplicação. Baixávamos pela indústria, pela política. Baixávamos, sobretudo, pela religião.

Da decadência moral é esta a causa culminante! O catolicismo do Concílio de Trento não inaugurou certamente no mundo o despotismo religioso: mas organizou-o duma maneira completa, poderosa, formidável, e até então desconhecida. Neste sentido, pode dizer-se que o catolicismo, na sua forma definitiva, imobilizado e intolerante, data do século XVI. As tendências, porém, para esse estado vinham já de longe; nem a Reforma significa outra coisa senão o protesto do sentimento cristão, livre e independente, contra essas tendências autoritárias e formalísticas. Essas tendências eram lógicas, e até certo ponto legítimas, dada a interpretação e organização romana da religião cristã: não o eram, porém, dado o sentimento cristão na sua pureza virginal, fora das condições precárias da sua realização política e mundana, o sentimento cristão, numa palavra, no seu domínio natural, a consciência religiosa. É necessário, com efeito, estabelecermos cuidadosamente uma rigorosa distinção entre cristianismo e catolicismo, sem o que nada compreenderemos das evoluções históricas da religião cristã. Se não há cristianismo fora do grémio católico (como asseveram os teólogos, mas como não podem nem querem aceitar a razão, a equidade e a crítica), nesse caso teremos de recusar o título de cristãos aos luteranos, e a todas as seitas saídas do movimento protestante, em quem todavia vive bem claramente o espírito evangélico. Digo mais, teremos de negar o nome de cristãos aos apóstolos e evangelistas, porque nessa época a catolicismo estava tão longe do futuro que nem ainda a palavra católico fora inventada! É que realmente o cristianismo existiu e pode existir fora do catolicismo. O cristianismo é sobretudo um sentimento: o catolicismo é sobretudo uma instituição. Um vive da fé e da inspiração: o outro do dogma e da disciplina. Toda a história religiosa, até ao meado do século XVI, não é mais do que a transformação do sentimento cristão na instituição católica. A Idade Média é o período da transição: há ainda um, e o outro aparece já. Equilibram-se. A unidade vê-se, faz-se sentir, mas não chega ainda a sufocar a vida local e autonómica. Por isso é também esse o período das igrejas nacionais. As da Península, como todas as outras, tiveram, durante a Idade Média, liberdades e iniciativas, concílios nacionais, disciplina própria, e uma maneira sua de sentir e praticar a religião. Daqui, dois grandes resultados, fecundos em consequências benéficas. O dogma, em vez de ser imposto, era aceite, e, num certo sentido, criado: ora, quando a base da moral é o dogma, só pode haver boa moral deduzindo-a dum dogma aceite, e até certo ponto criado, e nunca imposto. Primeira consequência, de incalculável alcance.

O sentimento do dever, em vez de ser contradito pela religião, apoiava-se nela. Daqui a força dos caracteres, a elevação dos costumes. Em segundo lugar, essas igrejas nacionais, por isso mesmo que eram independentes, não precisavam oprimir. Eram tolerantes. A sombra delas, muito na sombra é verdade, mas tolerados em todo o caso, viviam Judeus e Mouros, raças inteligentes, industriosas, a quem a indústria e o pensamento peninsulares tanto deveram, e cuja expulsão tem quase as proporções duma calamidade nacional. Segunda consequência, de não menor alcance do que a primeira. Se a Península não era então tão católica como o foi depois, quando queimava os judeus e recebia do geral dos Jesuítas o santo e a senha da sua política, era seguramente muito mais cristã, isto é, mais caridosa e moral, como estes factos o provam.

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