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D. João V |
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D. João V, esse
rapazola «un peu fou», como dizia Mathieu Marais no seu Journal,
trouxe à corte sorna e beata do princípio do século XVIII uma verdadeira
convulsão. Revolucionou tudo, transformou tudo. Com o avô D. João IV, o paço
fora uma capela; com o tio Afonso VI, uma cavalariça; com o pai Pedro II, um
mosteiro. D. João V sacudiu dos seus manguitos de renda toda a poeira do
passado, – e acabou com o mosteiro, com a cavalariça e com a capela. Pois
quê? Os seus vinte, anos haviam de deixar-se abafar naquela corte sem
mocidade e sem mulheres, por cujos corredores soturnos, em silêncio, não
passavam senão velhos e frades? Não. O sonho de Versalhes, que ele nunca
vira, deslumbrava-o, acenava-lhe de longe. Uma corte não podia ser uma
sacristia, nem uma picadeiro, nem um claustro. Uma corte como ele a entendia,
como ele a sentia – ele, afilhado do Rei Sol – devia ser alguma coisa de
vivaz, de brilhante, de luminoso, de magnífico, um gineceu doirado por onde a
galo real passeasse, ruflando a asa e encrespando a crista, com a Jarreteira
no joelho, a impertinência no olhar e o Tosão de Oiro ao pescoço. No Paço
da Ribeira só havia salas bafientas, escuras, monásticas, com tetos de tumba
e chão de tijolos? Que importava! Faziam‑se outras. As mulheres
fechavam-se, embiocavam‑se, aferrolhavam‑se à mourisca nas suas câmaras,
com medo de que os homens as comessem? Pois bem: o rei era ele, a moda era ele
Haviam de vir danar com os homens, falar com os homens, conviver com os
homens, – fazer cintilar naquela Versalhes saloia, à luz de quinhentas
velas acesas, a sua nobreza e a sua graça, a sua mocidade e as suas jóias.
Iam murmurar os Catões do Paço? Que importavam os Catões velhos à
juventude insolente de D. João V! Mariana de Áustria chegou, com os seus
jesuítas, os seus cães, a sua fealdade, os seus cravos holandeses. O rei
casou‑se. E da sombra do velho Paço do século XVIII, da capela de D.
João IV, da cavalaria de Afonso VI, do mosteiro de Pedro II, jorrando luz, faúlhando
talhas, sacudindo polvilhos, revoando pinturas, enchendo, dum topo a outro, a
nova Sala dos Embaixadores, entre leques e espadins, púrpuras de cardeal e
casacas de seda, cabeleiras de França e músicos de Itália, acanhada ainda,
hesitante ainda, tonta de liberdade e de claridade, – a corte de D. João V
surgiu.
Sem luta? Não. Não
se afastam séculos de tradição, ligeiramente, com o tacão vermelho dum
sapato. O «Portugal novo» aplaudiu; mas o «Portugal velho», tudo quanto
havia de anacrónico, de conservador, de vieux‑jeu
na nobreza palatina, não duvidou protestar, respeitosamente embora», contra
hábitos estrangeiros de licença e de escândalo que vinham perturbar a
serenidade patriarcal da corte portuguesa. O tecto da Sala dos Veados
dividiu‑se. Formaram‑se dois partidos: o da «moda nova»,
capitaneado pelo conde da Ericeira, D. Francisco, homem elegante,
desempoeirado, jovial; o da «moda velha», pelo conde de Vimioso, espécie de
duque de Saint Simon, azedo e formalista, taciturno e devoto, para quem o lar
era um mosteiro, a virtude uma clausura, e uma mulher ‑ o diabo. O
primeiro tinha por si o rei. O segundo tinha por si a tradição. «Fui ao Paço
(conta o desembargador Brochado para Londres, em carta ao conde de Viana) a
ternir com a minha beca a alegria de tão espaçosas salas, onde me dizem que
há grandes disputas entre os cavalheiros para a constituição da nova corte;
por que uns querem que as senhoras se deixem ver e venham conversar com eles
nas antecâmaras; que joguem e bailem sem distinção de sexo e de idade;
outros, pelo contrário, pregam retiro, silêncio e recato, e detestam com
positivo anátema o comércio de damas e cavalheiros, ainda que seja em presença
da mesma Diana». Não era fácil encontrar uma fórmula de conciliação
entre a observância da Cartuxa e as festas do Grand
Trianon. Venceu quem tinha de vencer: o partido «moda nova», o partido
do conde da Ericeira, – o partido do rei. No dia 4 de Novembro de 1708, dia
de Carlos, as salas dos Tudescos, dos Embaixadores; dos Leões,
abriram‑se, inundaram‑se de luz, armaram‑se de panos de Arrás:
damas acanhadas, deslumbradas, salpicadas de jóias, entraram aos bandos, tímidas,
escorregando, escondendo-se, encostando-se umas às outras como ovelhas
medrosas; pela primeira vez, desde os bons tempos de D. Manuel, homens e
mulheres encontraram-se, conheceram-se, cortejaram-se nas salas do Paço; a
rainha tocou cravo; a infanta D. Francisca, muito gorda, muito corada, muito
empoada, danou; os moralistas de biôco do Portugal velho cuidaram que se
tinha acabado o mundo, e a vergonha, – e Luís Manuel da Câmara, alarmado,
apreensivo, contava para a Holanda, seis dias depois, em carta a D. Luís da
Cunha: «houve um baile no dia de S. Carlos, em que danaram, e cantaram as
damas do paço na presença de damas e fidalgos; el-Rei está teimado em
estrangeirar o nosso país, e não sei até onde acabará...»
Desde esse dia
produziu-se – era inevitável – uma profunda modificação nos costumes e
na moral da corte. A sedução nasceu. A graça revelou-se. Cultivou-se a elegância.
Balbuciou a intriga. Surgiu o amor. A nobreza portuguesa do princípio do século
XVIII, carrancuda e beata, sorna e patriarcal, que mandava casar as filhas sem
elas saberem com quem, teve de contar, daí por diante, com um elemento novo.
A menina fidalga, a frança do Paço, requestada, galanteada, perseguida, pôde
amar e escolher. Escolhendo, – dignificou-se. Dignificando-se, – dominou.
O motivo sentimental começou a intervir nos casamentos da corte. Dois Amores
cor-de-rosa assentaram-se, sorrindo, sobre o livro do Armeiro-Mor. As mulheres
das grandes casas fidalgas continuavam a viver reclusas como cónegas, a sete
chaves, de pernas encruzadas sobre a sua esteira? D. João V trouxe-as ao Paço,
– e insensivelmente, inconscientemente, foi fazendo desse Paço uma escola
de convivência e de galantaria, que as poliu, que as sociabilizou, que as
libertou, que as revelou a si mesmas, que as educou na arte subtil de
conversar, de perturbar, de seduzir. É por isso que, a partir de D. João V,
o culto da mulher ganha em interesse, em curiosidade, em volúpia. As grandes
belezas da corte, na primeira metade do século XVIII, deixam de ser sombras
impessoais e misteriosas, ventres fecundos destinados à perpetuação de
estirpes, – para se tornarem criaturas vivas, reais, conhecidas, discutidas,
admiradas, celebradas, a quem os poetas fazem versos, os moralistas sátiras,
e cujas alcunhas correm na corte, de mão em mão, em papeis que chegaram até
nós, cheias de alusões às suas intrigas de amor e tiradas dos títulos das
comédias famosas de Espanha. Quem lhas põe? O «Pinto renascido»?
Ignora-se. Mas as alcunhas chovem, crivam-nas, zumbem-lhes à volta como zângãos,
picam todas as costelas de oiro do Paço, não perdoam nem às casadas, nem às
viúvas, nem às freiras. A marquesa da Fronteira é – «mas
muere quien mas ama»; a marquesa de Marialva - «el impossible mas facil»; D. Luísa Ponce – «no hay burlas con
el amor»; a condessa de Pombeiro – «sufrir por querer mas»; D. Violante
de Portugal «la presumida y Ia hermosa»; a marquesa de Arronches - «Ia
Babylonia de amor»; a condessa de Viana - «agradecer y no amar»; D. Maria
de Noronha - «el desden con el desden», – e quantas outras, traços
fugitivos de amorosas, névoas ligeiras de sonho, restos desbotados de flor,
que D. João v aspirou talvez, cujos encantos viveram a eternidade de um dia,
cuja memória viveu o instante duma hora, e de quem ficou apenas, como a
sombra dum perfume, num título de Calderon ou de Fray Lope, de Tirso ou de
Moreto, a suspeita de que amaram muito e de que foram perdidamente amadas...
Mal sabem hoje as
mulheres, ao evocar a figura fútil deste rei de vinte anos, quanto ele
concorreu, sem querer, amando e brincando, para a dignificação do seu
sentimento e para a redenção do seu sexo!
Júlio
Dantas
© Manuel Amaral
2009-2010
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