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Na Igreja |
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No século XVII, durante os últimos anos da dominação
castelhana, Madrid formigou de portugueses. Conheciam-se à légua. Em se
vendo um ferragoulo de baeta negra, um chapéu castorenho de abalroar atirado
para a nuca à laia de donato vagabundo, um grande bigode, uma grande espada,
uma grande guitarra, - não havia errar: era um português. Mais orgulhosos,
que se lhes arruassem nas portadas do coche os caldeiros de oiro dos marqueses
de Las Sirgadas; mais pobretões, que se lhes pojasse às costas um alforge de
franciscano. Apontavam-nos a dedo quando eles passavam na Plaza, as balonas brancas abanando ao sol, a pêra de chibo
farejando no jeito cornicabro dum sátiro moço, se acaso apontava da calle
fronteira um capotinho roxo de espanhola.
Eram portugueses? Se eram! Os homens podiam enganar-se
mas as mulheres, mesmo sem o ver, conheciam quando lhes andava perto um picão
namorador de Lisboa. Bastava meterem-se em meio do povo, numa procissão da
Semana Santa de Sevilha, ou numa missa da Iglesia
Mayor de Valladolid: se sentiam um beliscão ferroar-lhes a anca ou
morder-lhes a polpa do braço, já sabiam: - estava, ali um português. Foi o
beliscão que nos fez célebres em Espanha. Foi o beliscão que nos abriu para
o amor o estribo doirado de todos os coches, a reixa verde de todas as
janelas, a romã madura de todos os lábios. As niñas
holgonas de Toledo ficaram chamando ao beliscão «mimo de Portugal».
Enchemos de nódoas negras o corpo das mais lindas mulheres da Castela-Velha.
Mas - nombre de Dios! - pagámos
generosamente: démos-lhes Velasquez para as pintar.
Não se suponha, entretanto, que nós só beliscámos
espanholas. Não. O português beliscou sempre a mulher dos outros por toda a
parte onde a encontrou. Foi uma obstinação. Foi uma fatalidade. Sentir
refegar-se-lhe nos dedos, bem arpoada, a carne tronchuda duma perna ou a polpa
firme dum peito, rija e doirada como os pêssegos dos coutos de Alcobaça, -
era para os nossos avós uma delícia só comparável à certeza
resplandecente da bem-aventurança. Seguiam de jornada para Flandres, para a
Itália, para a Holanda? Levavam na bagagem, com a guitarra e a espada, - o
beliscão português. Ficavam em casa? Ai da primeira rascoa guaparrona que
lhes passasse à flor dos dedos, com dois seios redondos a apojar no
corpetinho! Quanto mais ela chiava, beliscada «de pincho» ou «de estorcegão»,
- mais feliz, mais saciado, mais radiante se sentia o picão português de
1630. Correram os anos; mudaram os tempos: o beliscão ficou, como um vício
do sangue, como um estigma da raça. Foi, como o «escarrinho», a herança
amorosa que o século XVIII português recebeu do século XVII. O faceira
herdou-o do chomberga, - para o passar depois ao casquilho, e o casquilho ao
bandalho, e o bandalho ao peralta, e o peralta ao pisa-flores. O próprio D.
João V, conta o bispo do Grão-Pará, disfarçou-se de mendigo para ir
beliscar mulheres a S. Roque. O faceira real, primeiro faceira do seu tempo,
podia ter ensinado aos turinas de cabeleira de França e casaca de mosquito, a
arte de conhecer pela ponta dos dedos todas as mulheres bonitas de. Lisboa. Se
no século de 1700 o «namoro de estafermo» realizou o tipo do amor português
na sua forma contemplativa, - o beliscão caracterizou-o admiravelmente na sua
expressão sensual.
O faceira beliscador de 1720 teve um campo de operações
predilecto: a Igreja. Nunca um lugar tão sagrado abrigou um passatempo tão
profano. Foi precisamente na Igreja que o namoro do século XVIII revestiu as
suas formas menos platónicas. E compreende-se porquê. Mantidos a distância
pela imposição duma moral monástica que reduzira a sociabilidade ao mínimo,
- era na Igreja que os dois sexos se encontravam, se aproximavam e se sentiam.
«Chague
relation de voyage en Portugal parle des galanteries qui ont lieu pendant Ia
messe, diz o alemão Link, que nos visitou em 1797; - les jeunes filles ne sortent presque jamais de Ia maison que pour
aller à l'eglise; on imagine aisément que l'amour ne néglige pas Ia seule
occasion qu'il a de se montrer». As Igrejas de Lisboa, sobretudo as mais favorecidas pela obscuridade - S.
Roque, Loreto, S. Domingos - foram Cítaras de sobrepeliz. Missas, tríduos,
novenas, sermões, eram as nossas «festas galantes». Em França, o amor do século
XVIII foi uma pastoral; em Portugal, um Lausperene. Pan amoroso, em vez se
rebolar na relva, ao sol, como nas pastorais de Boucher, andava pelas igrejas,
acocorado atrás das pias de água-benta. E quando as franças e as sécias,
as casquilhas e as gaivotas, com o seu bioco pela cara, chocalhando rosários,
peneirando o donaire, trejeiteando o leque, lhe passavam à babugem dos dedos
na penumbra de oiro das arquinaves, - a mão hirsuta, a mão felpuda do fauno
avançava, metia-se como uma toupeira por debaixo dos mantos, o próprio Deus
sorria, choviam os beliscões ferroando a carne, e enquanto no altar a casula
do padre faulhava Gloria tibi, Domine! -
gritinhos surdos, aqui e além, iam picando o silêncio da Igreja:
-Ai! Ai!
Como a missa, que ela seguia de perto, a sensualidade
sonsa do beliscão português também teve o seu ritual. O faceira, ou
beliscava no «lugar dos leques», parte elegante da nave central onde se
reuniam as bandarras, ou então junto à pia da água-benta. Se o lugar dos
leques estava cheio e era possível beliscar a coberto, - lá ia ele, furando,
farejando, acotovelando, cortejando a um lado e a outro como lançadeira de
tear, ajoelhando ao pé das ajoelhadas, acocorando-se ao pé das acocoradas,
pinchando, estorcegando, palpando, fazendo o possível por meter as criadas de
permeio, e ,obedecendo sempre ao bom preceito do faceira beliscador, que
mandava olhar para o lado da Epístola enquanto se beliscava para o do
Evangelho. Como os arcas de ferro dos donaires defendiam as mulheres da
cintura para baixo, o frança, para poder dar o beliscão «de sétimo céu»,
que era o da anca, tinha de aprender a solapar a mão por debaixo dos guarda-pés
e das polheiras, até levantar, de leve, tôda a armação de arame. Esta
operação era tão arriscada, que valeu em 1743 o degredo, por devasso, ao
procurador-geral dos Dominicanos. Já nesse ano o escândalo dos beliscões
chegara a tal ponto, sobretudo na igreja de S. Domingos, que foi preciso, diz
o n.° 38 do Mercúrio Histórico, construir em todas as igrejas teias altas de
madeira que separassem os homens das mulheres. Daí por diante, vedado o
acesso ao lugar dos leques, o faceira teve de recorrer à pia da água-benta.
Era mais grave, por que operava isolado - e a descoberto. Entrava a arrastar
os pés, descalçava uma luva, benzia-se de «signo saimão»,
desdenhosamente, estendia pela igreja um olharzinho de enjoo, deixava sair o
padre, principiar a missa, - e ia encostar-se à pia da água-benta, à espera
do primeiro bioco retardatário. Era sabido: quando a embuçada assomava, ele
sorria, piscava o olho, cortejava-a de mergulho, esvaziava na água um
frasquinho de Córdova, que era o melhor perfume do tempo, esperava sorrindo
que ela se chegasse, - e enquanto com a mão direita a borrifava de cruz, a
esquerda, sorrateira, sofraldava-lhe o manto e metia-lhe um beliscão aos
peitos. - «Por que será que as mulheres riem quando as beliscam?» -
perguntava Arlequim, numa comédia de Goldoni. A portuguesa ria como as
italianas, - mas, primeiro, gritava. Era esse gritinho comprometedor que
denunciava o beliscão do faceira. Se havia parente perto, iam espadas fora,
luziam quitós, levantava-se o povo - e então já não era ela que gritava,
era ele, corrido a pontapés pelo adro soalheiro, verde de medo como uma
convalescença de sezões, a sapatorra dos pais e dos irmãos a pontuar-lhe o
sítio que ele mais gostava de beliscar nas mulheres:
- Ai! Ai!
Júlio Dantas
© Manuel Amaral
2009-2010
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