Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

INÍCIO      ARTIGOS

O Casamento

O Casamento

O Casamento


 

"Nunca se casou tanto em Portugal!" - dizia o conde de Coculim para Londres a D. Luís da Cunha, em carta de 6 de Fevereiro de 1711.

Com efeito, nunca se tinha casado tanto. Por toda a parte, nas casas fidalgas de Lisboa, cheias de cães e de prata mareada, se armavam de damasco salas novas para a leitura de contratos antenupciais. Por toda a parte se combinavam; diante de tabeliães circunspectos de óculos redondos e hábitos de Cristo ao pescoço, longas escrituras por dote e arras, ou por carta de metade com exclusão dos bens de vínculo e dos provenientes da Coroa. Por toda a parte os ourives da cidade, os Lázaros, os Frezi, os Justos, batiam salvas de prata para presentes a noivos. Por toda a parte, das lojas dos Genoveses às das Capelas, do arco dos Pregos aos arcos do Rocio, não coalhavam as caias de leques da China que era moda dar de presente às noivas, nem as plumas que, segundo a carta de Lauso Tolo, eram o “inseparável ornato da nobreza do matrimónio". Quase todos os dias D. João V despachava licenças para casamentos; e ai do fidalgo que se esquecesse de lhas pedir antes de apregoado, que ia malhar com os ossos a Angola como o moço Luís Francisco Sanches de Baena, ou dizia mal da sua vida como Sebastião José de Carvalho, que o cardeal da Mota repreendeu por se ter casado em Viena de Áustria sem licença de Sua Majestade. Sabido que todos os fidalgos mais chegados ao Paço eram muitíssimo primos, choviam para Roma os pedidos de dispensa de parentesco, - que custavam novecentos mil réis quando feitos por intermédio do cardeal Patriarca, como em 1745, quando o sumptuoso conde de Aveiras se casou com a linda D. Constança Manuel, filha do conde da Atalaia. A frequência dos casamentos tornou o negócio das licenças tão rendoso, que o italiano Vicente Fargini veio estabelecer em Lisboa, na rua das Flores, uma espécie de agência que se encarregava de obter de Roma, pelo preço da dataria, todas as dispensas matrimoniais. Era raro o fidalgo moço que não trazia na abotoadura da casaca a fita de cor que, diz o autor da Description de la Ville de Lisbonne, era sinal de promessa de casamento. Na mesma grandiosa vertigem, Portugal arruinava-se e casava. Houve – dizia o médico Ortigão – um verdadeiro “frenesi de himeneus”. E porquê? Porque o homem enlouquecera? Não. Porque a mulher se transformara. Arrancada um instante aos seus hábitos árabes de recolhimento e de mistério, revelada a si própria, trazida pelo braço do rei para os trezentos lumes deslumbrantes das Salas dos Tudescos e dos Embaixadores, - a mulher fidalga deixou de ser, a adoração sombria e taciturna dos lares monástico do século XVII, para se tornar, na corte estrangeirada e galante de D. João V, a sedução, a tentação e a volúpia. Baixou em respeito? Mas subiu em encanto. Perdeu em adoração? Mas ganhou em desejo. Pôde finalmente dominar, triunfar, - escolher. Já não era a imagem bisonha da virtude, fiando, de mantéu de roca e chapins de Valença, a sua teia de Penélope; era a beleza viva, requestada, disputado, orgulhosa do seu poder, consciente da sua força, vencendo num sorriso, ordenando num olhar, marcando destinos, desdenhosamente, com as varetas doiradas do leque. A primeira metade do século XVIII foi caracterizada, na Lisboa solarenga e fidalga de D. João V, pelo prestígio crescente da mulher. Vivia-se sob o seu influxo voluptuoso. Era ela que mandava, – mesmo quando parecia obedecer. O destino amoroso do faceira fidalgo de 1720 estava de antemão traçado: ter uma cómica por luxo, namorar uma freira por moda, possuir uma dama por gosto, e casar com uma prima – por amor.

Mas a verdadeira revolução operada na sociedade portuguesa pela sociabilização, direi melhor, pela dignificação da mulher, se aumentou, na corte de D. João V, o número dos casamentos de amor, não conseguiu abalar os preconceitos de estirpe e as fortes razões de tradição que regularam sempre, na nobreza portuguesa, as alianças de família. Os casamentos da corte continuaram a ser feitos pela vontade dos pais. Simplesmente, as imposições paternas já não encontravam, como dantes, corações livres, vontades de cera, docilidades tímidas aferrolhadas, como em prisões, nos lares fidalgos do século XVII. As resistências foram constantes e os dramas familiares repetiram-se com frequência. Os pais tinham por si a lei de 13 de Novembro de 1651, reforçada, mais tarde, pela lei de 19 de Junho de 1775, aplicável a todos aqueles que casassem contra a vontade patriarcal da família. Os filhos, nessa luta desigual, contavam apenas com a sua mocidade, com a força moral que lhes provinha da dignidade do seu amor perseguido, e, ou fugiam renunciando a todos os direitos na casa paterna, se eram homens, ou se amortalhavam para sempre, se eram mulheres, num hábito humilde de capucha ou num burel branco de carmelita calçada. São inúmeras as anedotas de amor que chegaram até nos, através das memórias e dos jornais manuscritos do tempo. Uma das mais interessantes refere-se ao casamento do filho do estribeiro-mor Luís Guedes com a feíssima filha do conde de Aveiras, em 15 de Janeiro de 1707. Quando já estavam, dizem as memórias inéditas do tempo, “a cama feita e a camisa pendurada”, o filho do estribeiro-mor declarou terminantemente que não casava, alegando, perante o assombro do pai e do conde de Aveiras, a sua inaptidão física para o matrimónio. A noiva, consultada, disse que não lhe falassem em mosteiros e que casava assim mesmo. Mas os pais hesitaram; remorderam-lhes nas consciências escrúpulos canónicos; consultaram os frades parentes, e resolveu-se, de comum acordo, convocar uma junta de cirurgiões. A junta examinou o fidalgo, achou-o “um valente rei dos romanos”, prometeu ao conde e a Luís Guedes uma ninhada de netos, e o filho do estribeiro-mor, vexado, apanhado, de olhos baixos e beiço caído, não teve remédio senão casar com a primogénita do conde de Aveiras. Sucedeu quase o mesmo com a filha de João de Saldanha, que fingiu acidentes para não se casar com o tio conde da Ponte; com D. Teresa Josefa de Meneses, filha do conde de Marialva, que chegou a vestir o burel da aprovação para fugir ao seu projectado casamento com D. João Patalim; com o filho de D. Luís de Portugal, que desapareceu da corte precisamente no dia em que devia assinar escrituras antenupciais com a filha do morgado da Oliveira. Casamento prometido e tratado, com fita posta na abotoadura do noivo e pratas compradas para os esponsais, - era gravame de honra e crime comum rompê-lo. Júlio de Melo, primo dos condes das Galveias, espécie de Juan de Maraña sem escrúpulos useiro e vezeiro em perder mulheres, já estava noivo da filha da condessa de Vila Pouca (1707), quando D. João V o mandou prender na Torre de Belém até que dotasse e metesse freira na Esperança certa rapariga a quem tinha dado escrito de casamento. O mesmo sucedeu em 1733 ao conde da Vidigueira, filho do marquês de Nisa, preso por se ter apregoado com uma filha do marquês de Cascais, dama do Paço, depois de ter prometido desposar-se com D. Francisca de Melo, filha do conde da Ponte: a marquesa mãe assinou uma petição a D. João V para que não fosse obrigado o filho a um casamento violento e canonicamente nulo, e D. Francisca de Melo, exemplo de nobre resignação, recolheu ao mosteiro das carmelitas descalças de Évora, onde foi abadessa e onde aprendeu a esquecer, nos esplendores do báculo, do gremial e da mitra, a sua triste paixão de mocidade.

Mas, a par destes dramas de família, quantos casamentos de amor! E que fidalga, que respeitosa galanteria nas festas de esponsais, nos “púcaros de água” de casamento das casas solarengas de Lisboa, no “beija-mão das noivas novas”, dado pela rainha no Paço às françazinhas de costelas de oiro, empenachadas de plumas e radiosas de felicidade! Os noivos não se acercavam das noivas senão de joelhos: - e eram tantos os presentes de pratas e de jóias em que se despicava o orgulho português das casas nobres, que a pragmática de 1749 teve de proibir expressamente as dádivas de casamento, a não ser no próprio dia das escrituras.

       Uma notícia que insere o n.° 48 do Mercúrio de Lisboa, gazeta manuscrita de 30 de Novembro de 1743, acerca do noivado da filha segunda de Diogo de Mendonça     Corte Real e do filho primogénito do senhor de Fonte Boa, dir-se-ia uma graciosa pintura de Pedro António Quillard:

“Na terça-feira da semana passada, 19 do corrente, concorreram as senhoras a casa de D. António José de Melo a darem parabéns à Ex.ma Sr.ª D. Mariana Josefa de Bourbon, sua irmã, pelo casamento ajustado com seu primo D. Miguel de Melo e Abreu, o qual se achou presente ao primoroso púcaro de água que a mesma senhora lhe deu, sempre em pé ou de joelhos, lucrando por prémio daquele sacrifício a prenda de uma fita que sua tia Ex.ma Sr.ª D. Luísa Josefa de Mendonça tirou da futura noiva para lhe dar, e que ele recebeu com grandes rendimentos. De noite a foi acompanhar até ao Paço, onde não falta todos os dias: a primeira vez que a Aia da mesma senhora lhe trouxe a resposta de um recado, lhe deu um adereço de valor guarnecido de 12 topázios com laços de diamantes”.

Esta notícia de jornal e certa frase que a respeito de mulheres disse um dia na Sala dos Archeiros o dom abade de Alcobaça, bastariam       para caracterizar o século XVIII português. Ia frei Pedro de Lencastre geral dos bernardos, a entrar no Paço da Ribeira, quando uma revoada branca de açafatas da rainha passou, fugindo, duma sala para a outra. O frade abençoou-as de longe, sorveu voluptuosamente o rasto do seu perfume de mocidade, e resmoneou de esguelha, piscando o olho para o archeiro que o acompanhava:

- Amigo, as mulheres são falsas enredadeiras, mentirosas, poços de vícios e de maldade, - mas Deus Nosso Senhor não nos falte com uma!

Júlio Dantas

 

Anterior: Cartas de Amor Topo da página Seguinte: Visitas de Parida

 

 

© Manuel Amaral 2009-2010