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Uma
carta de amor |
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Ao pé duma guarda-porta armoriada de baetão vermelho, onde pesam a cruz-dobre
e os seis besantes de oiro dos Almeidas, o negrinho da casa espera, sentado
no chão, a comer castanhas. Que espera ele? Que saia alguma visita
importuna? Que Sua Senhoria dê despacho? Que um frade mariano, chocalhando
camânduIas, absolva os escrúpulos de consciência da Senhora? Que o marquês
moço receba a sua lição de espada preta? Não. Nada disso. O negrinho da
casa espera que a menina acabe de escrever.
Uma campainha retine. É ela que chama. O mochila, vestido por graça como
os pretos da procissão de S. Jorge, guarda as castanhas num bolsinho,
espreita os corredores não venha alguém, levanta cautelosamente a
guarda‑porta, e entra aos pulos. Uma frança fidalga; menina de dezoito
anos, assentada diante duma papeleira aberta de charão vermelho com topetes
de talha doirada, sorri, relê, e, de dedo na boca, deita areia sobre as
folhas dum papel, húmidas de tinta. O negro segue-lhe os movimentos, oleoso,
numa chapada de sol. Ela volta a deitar a areia no areeiro de prata; com uma
tesoura, recorta, ao alto do papel, um pequenino coração; borrifa a carta
com água da rainha da Hungria, ou, melhor ainda, com água de Córdova, para
a perfumar e fingir que chorou quando a escreveu; dobra-a em pastel de três
cantos ou em chapéu à Anastácia; mete-lhe a obreia, - e com a língua
mordida ao canto da boca e os dedos mendinhos no ar como bichos de seda
enfiados de jóias, arranha as palavras costumadas do endereço: «Senhor D.
António de Melo, às Chagas». Não há dúvida. É uma carta de amor. A
menina sorri ainda para ela, mira-a de todos os lados, beija-a, palpa-a,
afaga-a, acaricia-a, considera-a longamente, como quem se despede, e deixa-a
escorregar num enlevo para as mãos do negrinho, que pincha, e salta, e
desaparece aos guinchos, às upas, as sapatorras amarelas de boca de vaca a
tairocarem no sobrado.
Que dizia esse pedaço de papel? Que costumavam dizer as cartas de amor do século
XVIII?
As portuguesas apaixonadas tiveram sempre fama de escrever bem. Sessenta
anos antes de Noel Bouton, conde de Chamilly, «de gueules à la fasce d'or»,
ter espalhado pelo mundo as cartas da freira clarissa de Beja, já Tomé da
Veiga dizia, falando da graça picante das castelhanas de Valhadolid colos
doirados de sol e floridos de craves que um rebuço negro amantilhava:
- «Têm bom pico, mas falta-lhes a pena, por que não escrevem tão bem
como as portuguesas».
E, mais tarde, Madame de Sevigné dizia em carta à filha, a condessa de
Grignan:
«Brancas má ecrit ume lettre si excessivement tendre, qu'elle recompense
tout son oubli passé: il me parle de son coeur à toutes les lignes; si je
lui faisois reponse sur, le même ton, se seroit une portugaise».
Já influência das cartas de Soror Mariana? É possível. Mas quantas
freiras, antes dela, escreveram deliciosas cartas, - desde soror Inês de
Jesus, uma das «décimas musas», até sóror Simoa de Castilho, agostinha
calçada de Sant'Ana; desde a galante madre Francisca Xavier, professa no
convento da Rosa, até soror Maria das Saudades, freira em Via Longa, amante in partibus de Afonso VI, que trazia bordado no seu escapulário de
estamenha um banco de pinchar de oiro de três pendentes! Foram elas,
pequeninas Gongoras de véu preto e coro, que ensinaram a mulher portuguesa do
século XVIII a sentir, a escrever e a amar. Elas todas, e, com elas, a
encantadora bernarda D. Feliciana de Milão, encarregaram-se de inventar essa
«língua freira ou freirática», que encheu as cartas de amor dos séculos
de seiscentos e de setecentos, que Filinto descreveu como «certa linguagem
delambida, ininteligível por muito refinada e confeitada de frases de
conventual invenção», e a que D. João V, de óculo de ouro na órbita,
eminentemente prático na sua grosseira sensualidade, chamou desdenhosamente
«linguagem de triques-traques». Foi nessa «linguagem de triques-traques»
que todo o século XVIII português amou. Foi esse mesmo gongorismo monástico
que produziu os Cristais de Alma e o
Alívio de Tristes, o Retiro
de cuidados e o Coco de convertidos,
verdadeiros secretários-dos-amantes que os cegos das folhinhas vendiam pelos
arcos do Rossio e pelo Adro do Monte, pelos soalheiros da Ribeira das Naus e
no Cano Real aos domingos, e em cujas páginas cheias de conceitos e de
subtilezas, de enigmas e de obscuridades, os faceiras e as franças, os
turinas e as bandarras do tempo de D. João V encontraram toda a sua ingénua
moral amorosa e toda a sua monótona literatura de sentimento. A carta de amor
do século XVIII nasceu gémea do folheto amoroso de cordel. Ambos, folheto e
carta, tiveram a sua Mère Gigogne
ria grade dos mosteiros. Foi a freira que inventou os vários géneros da
carta de amor seiscentista e setecentista, e que criou para cada um deles uma
expressão e uma intenção próprias. Havia as cartas chamadas «de ausência»,
que principiavam sempre por «meus olhos», «meu bem», «meu coração», «minha
lembrança», «meu pensamento», picadas de flores secas, cheias de
trocadilhos obrigados sobre a saudade, e de que as Ordenações galantes das
freiras de Sant'Ana diziam: «para as cartas de ausência terá a freira dois
tinteiros, um para escrever, e outro de água para fingir as lágrimas»;
havia as «cartas de recado», curtas, simples, começadas cortesmenle por «meu
senhor» e acabadas sempre com o conceito subtil de Feliciana de Odivelas: «lembro-lhe
a vossa mercê que lhe não lembro e que me não esquece»; as «cartas
contemplativas», discorrendo em tese sobre o amor, desenvolvendo problemas de
sentimento, longas dissertações inúteis em que se andavam léguas sobre uma
folha de rosa; as «cartas de equívocos», graciosas, picantes, com toda a
prata quebrada de ditos com que se escudeirava nas ruas; as «cartas de
despique»; as «de arrufos»; as «de ciúmes», que a mulher devia escrever
sempre antes que o homem lhas escrevesse; as «de apartamento», tristes como
o sino grande da Capela Real. Nos últimos anos da velhice de D. João V, as
cartas de amor estavam em plena moda; mas já tão pueris, tão ridículas, tão
cheias de anexins, tão eriçadas de frases francesas, tão «mouche à miel»,
que Marco António de Azevedo Coutinho, morto de riso, não resiste à tentação
de mandar para Viena de Áustria, ao futuro marquês de Pombal, as cartas que
o marquês de Valença escrevera a uma mulher-dama de Lisboa. O abuso
principia. Nos conventos de clarissas passa-se a vida a escrever cartas. «O
frade não é obrigado a dar resposta aos escritos da sua freira senão de
seis em seis meses», ordenam os Estatutos burlescos do Doutor Vasco Bugalho. A carta de amor começa
a ser perseguida nos mosteiros pelas abadessas; fora deles, pelas mães. Na
Veneza do século XVIII, conta Gasparo Gozzi, eram as próprias mães que
acabavam de escrever as cartas amorosas das filhas: «finischo Ia letera io
della mia figlia, la quale non hano potuto andar levanti, per un gran male...»
Em Portugal, as mães do tempo de D. José chegavam a impedir que as filhas
aprendessem a ler e a escrever, só para não se corresponderem por carta com
os namorados. Com a lei de 19 de Junho de 1775, a carta de amor, que já era
um delito galante, passou a ser um crime punido com galés e com degredo para
Angola...
- Truz, truz!
Batem de manso com os nós dos dedos. A guarda-porta de baetão vermelho,
pesada da cruz-dobre e dos seis besantes de oiro dos Almeidas, oscila, arregaça-se,
corre guinchando no varão de ferro. O corarão da frança bate apressado. E o
negrinho que volta, luzidio, aos pinchos, às upas. Traz numa das mãos a
resposta do fidalgo, em carta perfumada como uma pastilha de âmbar, e na
outra um cruzado, cuja prata nova reluz ao sol como um espelho pequenino.
Júlio
Dantas
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