Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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CÓMICA ITALIANA

A Signorina Zamperini

A Signorina Zamperini



Nessa noite, acenderam-se as duzentas velas de cera da sala nobre do Senado da Câmara de Lisboa. Nos painéis do teto, faulhantes de talha doirada, as pinturas de Pedro Alexandrino resplandeceram. O conde presidente, Henrique José de Carvalho e Melo, convocara para as nove horas o encarregado dos negócios de França e alguns dos mais ricos negociantes portugueses e estrangeiros que assistiam na corte. Para quê? Ninguém o sabia. A hora indicada pelo moço conde de Oeiras nas convocações escritas pelo seu próprio punho, as pesadas guarda-portas de damasco vermelho principiaram a afastar-se para dar passagem às mais representativas figuras da plutocracia pombalina de 1770. O primeiro a entrar, Anselmo José Braamcamp, de sapatos de veludo por causa da gota, pintado de carmim e mosqueado de sinais como uma menina, não pôde conter-se que não perguntasse ao porteiro se de facto sua excelência o senhor marquês se lembrara dele para conselheiro do Senado da Câmara da Cidade. Inácio Pedro de Quintela, provedor da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, muito alto e muito surdo, uma casaca negra pingando, uma cruz de Cristo ao pescoço, passeava dum lado para o outro da sala, a bater os pés e a gritar que lhe tinham estragado a partida de whist com os padres de S. Domingos. O inglês May, da Fábrica de Faianças, elegante, fleumático, espetando as luvas, assestando o óculo de punho de prata, cumprimentava os espelhos das paredes. Uma massa gorda e ronflante rebolara sobre uma cadeira: era Teotónio Gomes de Carvalho. Um homenzinho arguto, vivaz, buliçoso, empoado, pequenino, as mãos cintilantes de anéis, um livro de Lausperenes na algibeira, uma caixa de rapé na mão, falava em francês com o cavalheiro de Montigny, encarregado dos negócios de França: era Alberto Meyer. Vinha já subindo a escada o riquíssimo António Soares de Mendonça, espécie de Sileno decrépito, a arrastar-se encostado à sua bengala de Londres e a perguntar que queria dele àquela hora sua senhoria o conde presidente. E já dentro da sala, Joaquim José Estolano de Faria, uma cabeleira de alcachofa a dançar-lhe na cabeça, apoplético como um cónego da Patriarcal, avarento como um judeu holandês, gritava de punhos cerrados para o magríssimo João da Silva Telo:

- Se é mais dinheiro, não dou.

Ás nove horas e meia, o conde de Oeiras chegava de coche, embrulhado num enorme capotão de saragoça forrado de selim branco, e entrava de repelão pela sala com o seu amigo Goubier de Barrault. Logo depois, paravam à porta outros dois coches, esticando os correões. Criados e sota-cocheiros, vestidos de vaqueiros vermelhos da Casa Real, apearam-se. O conde deu ordens. Quem viera mais? Todas as atenções dos negociantes se fixaram nas guarda-portas de damasco, à espera que elas oscilassem. Não entrou ninguém. Henrique José de Carvalho descalçou as luvas, sorriu com intimidade a cada um dos amigos de seu pai, tomou a presidência como para urna sessão do Senado da Câmara, franzindo num sorriso os lábios finos onde havia a expressão nobre e voluntariosa da mãe austríaca, expôs àqueles oito respeitáveis velhos a razão por que os molestara a vir ali. Tratava-se dum negócio de interesse para a cidade. Tratava-se dum negócio de cómicas italianas. Não se admirassem suas senhorias. Era preciso que a corte de Lisboa tivesse uma ópera e que essa ópera fosse digna da grandeza do rei e do nome do senhor Marquês seu pai. A boceta dourada do teatro de Belém, com o solidéu vermelho do patriarca D. Francisco a cabecear na frisura e dez homens vestidos de bailarinas por causa dos ciúmes da Rainha, – não passava de uma antecâmara do paço, onde se cantava o terço e se rezava nas contas. O pátio do Bairro Alto, tão querido da senhora marquesa sua Mãe, tinha sido invadido pela mafrabaixa do povo. Quem aturava já os fandangos da Juana e da Pepa Olivares, os travestis indecentes da Angiola Bruzza, os “Arlequins” idiotas do Trebi, os acidentes histéricos da Rosa Campora, – o eterno Scolari a cuspir para as prima-donas, e o eterno Todi a quebrar a rabeca na cabeça do Scolari? Era preciso criar uma ópera nova nos Condes e doar à corte o benefício duma grande companhia italiana de cómicos-cantores. Onde estava essa companhia? Ali, na sua mão. Tinha como primeira figura a zentildona veneziana Zamperini, que fora chamada a Lisboa, de acordo com o núncio cardeal Conti, por Monsenhor Galli, notário apostólico da Nunciatura e banqueiro em negócios da cúria romana. Chegara há dois dias à corte. Simplesmente, os encargos e despesas dessa grande companhia de ópera eram consideráveis, e os espetáculos não podiam principiar sem que uma forte sociedade empresária se constituísse com um fundo não inferior a cem mil cruzados. Onde estava essa sociedade? Ali, há sua frente. Eram suas senhorias. Contava com suas senhorias o marquês primeiro ministro. Restava combinar a forma por que seriam repartidas entre os sócios as cem ações de quatrocentos mil réis. Com quantas ficava Inácio Pedro de Quintela? E Braamcamp? E Meyer? E Estolano de Faria? E os outros? Os velhos olharam-se, estupefactos. A sua sisuda decrepitude tudo podia esperar, – menos que o filho do seu amigo marquês os fizesse, fulminantemente, empresários de cómicas italianas. O gordo Teotónio de Carvalho ria, tremendo na sua cadeira como um pudim gelado. Quintela, de mau humor, pensando no whist dos padres de S. Domingos, via as horas no enorme relógio de ouro que lhe tangia minuetes na algibeira da véstia. Meyer, que falava sempre, – calou-se. May, lembrando-se da sova que, por causa da bailarina Guadagnini, o duque do Cadaval aplicara no marechal inglês Duarte Smith, punha objeções respeitosas ao projeto da sociedade, afirmando que as cómicas italianas não eram, precisamente, o ramo de negócio que melhor conhecia. Braamcamp queixava-se da gota. E Estolano de Faria, quando o conde de Oeiras, combinando a divisão das ações da Zamperini, lhe atribuía a responsabilidade de cinco pelo menos, levantou-se congestionado, atou as mãos à cabeça e vociferou:

- Cinco ações? Então Vossa Senhoria pede-me cinco mil cruzados para uma mulher que eu nunca vi?

A atmosfera turvava-se. Mas o apaixonado conde presidente previra tudo. A campainha retiniu, o porteiro assomou com a sua cabeleira de coco mal polvilhada, e Henrique José de Carvalho ordenou-lhe numa voz áspera onde se percebia um longínquo sotaque estrangeiro:

– Diga a Monsenhor Galli e a Monselhor Antonini que os esperamos aqui.

Daí a pouco, o reposteiro afastou-se, e na luz viva das duzentas velas de cera da sala do Senado, uma admirável mulher surgiu, risonha, toucada dum chapéu enorme como a “Condessa de Devonhsire”, de Gainsborough, e seguida das sumptuosas batinas de seda roxa dos monsenhores da Nunciatura. Houve um instante de silêncio e de sensação. O cavalheiro de Montigny levantou-se. Os velhos negociantes, deslumbrados, imobilizaram-se em atitudes de assombro. O conde presidente avançou, beijou num sorriso a mão de anéis que se lhe estendia, e apresentou, familiarmente:

Signorina Zamperini.

Era uma maravilha. A Veneza do século XVIII, doirada de sol e de palácios, misteriosa de felze e de gôndolas negras, – a Veneza da Zuéca e de S. Biaggio, das miniaturas de Rosalba e das comédias de Goldom, do zendaletto no ombro e do tricorne na orelha, nunca tinha produzido, depois de Vicenza Arnani, anunciada no palácio da Senhoria por arautos com maças de prata, depois da loira Angela Tiepolo, que passeava nua bela Piaza como a Vénus de Médicis, uma tão surpreendente expressão da Beleza eterna e da Tentação dominadora. Envolvia-a toda a volúpia do Aretino. Pintava-a toda a cor do Veroneso. Filha do acaso ou do “Livro de Ouro” – que importava? – Veneza inteira resplandecia nas suas joias, cantava na sua boca, sorria com ela, caminhava com ela. Perante a majestade e a graça da Zamperini, perante as suas “moscas” italianas, perante o seu penteado às três pancadas, perante o seu formidável chapéu inglês que recordou a May a elegância de Miss Siddons, - a senilidade nestoriana dos burgueses pombalinos estremeceu. Braamcamp dançava-lhe cortesias em volta. Meyer, comovido, suplicava-lhe que lhe desse a honra de o arruinar. O obeso Teotónio de Carvalho babava-se. O velhíssimo Soares de Mendonça, como um fauno decrépito, aspirava, de ventas palpitantes, o perfume perturbador da italiana. Quintela, deslumbrado, perdido, fazia considerações inconvenientes ao ouvido de monsenhor Galli. Montigny pensava, com o provérbio veneziano, que “era mais difícil guardar uma mulher do que um saco de pulgas”. E já no fim da noite, depois da Zamperim ter cantado a ária do “Amor di Ballo”, com que se estreara no S. Mose de Veneza; depois de quatro criados com a libré do marquês e o hábito de Cristo ao pescoço terem vindo servir um dilúvio de chá; no momento em que o conde de Oeiras lia o borrão da escritura da sociedade e o projeto de distribuirão das ações, – o avarento Estolano de Faria, já doido pela italiana, a cabeleira de alcachofa a dançar-lhe na cabeça, os punhos de renda muito espetados nos braços, levantou-se de chofre, atirou um murro à mesa, e gritou na sua voz de trovão:

– Que pouca vergonha é esta? Então eu tenho só cinco ações?

A partida estava ganha. Quinze dias depois, abria-se a ópera italiana no teatro da rua dos Condes e a Zamperini caía nos braços do conde de Oeiras.

  

Júlio Dantas 

 


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