Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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A FREIRA CASQUILHA

A freira casquilha

A freira casquilha



Sabem para que era que, no século XVIII, as meninas fidalgas se faziam freiras? Para que era que se amortalhavam numas varas de burel e se sepultavam vivas numa claustra de mosteiro? Para terem liberdade. Nada mais absurdo; e, entretanto, nada mais verdadeiro. As grades dos conventos chegaram a representar, para a mulher portuguesa de 1700, alguma coisa de parecido com uma libertação. Porque era severa a tirania patriarcal da família? Porque era rigorosa a reclusão quase monástica do lar? Porque a casa paterna era um cárcere? Por todas estas razões, – e ainda pela razão oposta de que no século XVIII, mercê da absoluta falta de observância das constituições e das regras, a vida dos mosteiros de freiras foi a coisa mais divertida deste mundo. E, se não o tivesse sido, como se compreenderiam as fugas constantes de mulheres nobres, sobretudo para os claustros seráficos – fugas com todo o carácter ligeiro de raptos amorosos – como em 1728 a da filha dos condes de Tarouca, D. Mariana Josefa, que iludiu a vigilância dos pais e abalou de noite para o mosteiro das carmelitas calçadas de Carnide, protegida na fuga pelo conde de Alvor e pelo próprio D. João V, que lhe mandou um coche e criados da Casa Real? Se rezar antífonas no coro, fazer doce na cozinha e namorar freiráticos na grade não fossem ofícios leves e risonhos, teria porventura sido preciso, sob a ameaça de despovoar o Brasil dos seus mais floridos ventres, expedir o alvará de 10 de março de 1732, proibindo o embarque da multidão de mulheres brasileiras que queria vir professar a Portugal? Se o hábito de brígida ou de capucha, de agostinha ou de bernarda, de cónega sumptuosa de Chelas ou de maltesa fidalga de Estremoz não fosse mil vezes preferível à clausura mourisca dos lares nobres e ao ciúme tenebroso dos maridos portugueses, – onde estaria a mulher que se sentisse respirar a plenos pulmões, que se considerasse, enfim, feliz e liberta, no instante em que lhe vestiam, depois dum ano de noviciado, a estamenha tremenda da aprovação? Nos versos galantes de todos os poetas menores do século XVIII que se referem a profissões religiosas, surge, a cada passo, a mesma ideia insistente de liberdade. Não o vago conceito místico da redenção espiritual pela comunhão com um esposo divino; mas a ideia precisa, grosseira e clara da libertação para o gozo sensual de todas as temporalidades e para o exercício instintivo de todas as seduções. Podiam, enfim, amar, respirar, viver. Sobre a cerimónia pungente da profissão, os poetas já não choravam uma renúncia; sorriam para uma promessa. O hábito branco das carmelitas suaves e das bernardas orgulhosas já não era uma mortalha que se abria; era uma flor que desabrochava.

O claustro tornara-se urna emancipação. A profissão, uma festa galante. A grade, uma indústria. Nuns versos inéditos do tempo (F. A., Mss. códice 8581), descreve-se certa madre discreta de Sant'Ana felicitando uma freira bonitinha, que professara de manhã:

Dou-vos o parabém de professar,
Menina; agora tendes liberdade.
E visto estar na vossa mocidade,
Podeis buscar devoto a quem amar.
Olhai as mãos, mas sem o rosto olhar;
Arrematai-vos sem diversidade
A quem mais der; por que julgo, em verdade,
Que quem mais dá, mais se deve estimar.
Não repareis se é torto ou se é direito,
Oficial, fidalgo ou mercador,
Leigo, frade, estudante pago ou micho;
Não vos deixeis levar desse capricho,
Menina: se ele dá, tomai-o a jeito,
Que a honra duma freira é o proveito.
 

Este conceito da vida conventual, tão excessivamente profano e utilitarista, que não era fácil conciliá-lo com os votos de castidade e de pobreza, fez convergir todas as energias da freira para uma preocupação única: a sedução do homem. As freiras moças só tinham um pensamento: agradar. As freiras velhas só tinham uma ocupação: tirar o maior partido possível dos encantos das freiras moças. Todas estavam de acordo, desde as hierarquias solenes, trôpegas e septuagenárias, até à virgindade tímida das últimas professas: o dever da freira era, antes de tudo, procurar ser bela. A regra proibia-o? A constituição opunha-se? Atirava-se a constituição e a regra por cima dos moinhos. Em breve e os mosteiros portugueses, que Besenval considerava tão impuros como o próprio D. João V, trasbordaram de freiras-bandarras, de freiras-sécia, de freiras-franças, de freiras-casquilhas. A elegância entrou nos claustros. Hábito, escapulário, cordão, toalha, véu, as próprias sandálias das capuchas, das carmelitas, das agostinhas descalças, insígnias de renuncia e de expiação, de penitência e de humildade, transformara-se pouco a pouco, sobre a carne rósea e doirada dessas pródigas de amor, em armas terríveis de sedução e de escândalo. Nos flirts do locutório, nas comédias do convento, nas grades de doce, nos tonos de viola, nos outeiros de abadessado, as freiras casquilhas principiaram a aparecer pintadas, mosqueadas de sinais, perfumadas de água de Córdova, as mãos finas metidas em regatos de arminho, o hábito decolado “o abanico desinquieto no reparo do rosto”, sofraldando-se, dançando minuetes, mostrando as pernas – diz frei Manuel Velho, em 1730, nas Respostas duma freira capucha – calçadas “de meias e de sapatos picados, rocados de seda, de tissum, com fivelas de oiro, de prata, de pedras preciosas”. As bernardas portuguesas tornaram-se célebres, entre todas, pela elegância profana dos seus hábitos, pelo excesso ridículo das suas pinturas. Nuns versos inéditos do mesmo códice 8581, as freiras de Santa Clara de Coimbra acusam sem rebuço as bernardas de Celas de “caiarem os rostos”, de "porem cores vermelhas” e de se mostrarem aos amantes “disfarçadas e cobertas como pírulas douradas”. Frei Manuel de S. Luís, psicólogo admirável das demi-vièrges monásticas do século XVIII, descreve, na Vida da Venerável Madre Francisca do Livramento, a forma por que as freiras claristas de 1700 compunham o rengo da toalha e amantilhavam o véu preto, aconchegando-o à cara para fazer realçar mais a brancura pintada da pele, e assomando à grade “com os olhos revirados, a voz afetada e melindrosa, o hábito aberto no peito, passos requebrados, corpo ligeiro, pescoço estendido”. Fossem lá os bispos, os arcebispos, os vigários capitulares, os padres provinciais, os abades gerais, os confessores, os visitadores, compeli-las à reforma dos trajos, à observância da regra e ao respeito da Ordem! Expulsavam-nos do mosteiro, como fizeram as freiras do Salvador ao seu vigário, em 1706, ou abriam as portas e saíam em procissão, de cruz alada, entoando ladainhas, insultando os padres, alarmando o povo. Quase todos os grandes conflitos no tempo de D. João V e de D. José, entre os padres claustrais e as comunidades de religiosas, tiveram a sua origem em intrigas de toucador ou de alcova: hoje, porque queriam um toucado redondo, que as remoçava, em togar dum toucado de bico, que as fazia velhas; amanhã, porque o calo da touca havia de nascer da testa, em vez de nascer do nariz; um dia, porque queriam licença para, usar moscas de tafetá ao canto da boca; outro dia, porque já não podiam andar sem tacões encarnados nos sapatos; agora, a história dos regalos no coro, por causa do frio; logo, a invenção dos decotes na grade, por causa do calor: – e se o rei hesitava, se o ministro da Ordem proibia, se o núncio carregava os sobrolhos, lá estava a abadessa a remangar do báculo, as hierarquias velhas a alçarem cruzes, os sinos a dobrarem no mosteiro, as bentas, as claristas, as bernardas, hábitos ao vento, a coalharem as ruas, a cavalaria a sair dos quartéis para lhes cortar caminho, e o rei, paralítico, imbecil, opado, risonho, a mandar-lhes todos os coches, todas as berlindas, todos os florões dourados da Casa Real, para suas reverências profaníssimas se darem ao incómodo de recolher ao mosteiro. O escândalo das freiras-casquilhas chegara a tal ponto, que em 1778, diz o ci-devant duque de Châtelet, “poucas eram as bernardas de Odivelas que não tinham o seu amante, e raras as que vestiam os hábitos da Ordem”. Das casas de religiosas portuguesas do século XVIII, e, em especial, dos mosteiros ricos de bernardas, de beatas, de maltesas e de cónegas, podia dizer-se sem grande injustiça o que o grave Saint-Simon disse um dia de certo convento de capuchas da Bretanha:

– “Se alguma freira sai de lá, é porque quer ser uma mulher honesta”.

  

Júlio Dantas 

 


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