A FREIRA CASQUILHA | |||||||||
|
Sabem
para que era que, no século XVIII, as meninas fidalgas se faziam freiras?
Para que era que se amortalhavam numas varas de burel e se sepultavam vivas
numa claustra de mosteiro? Para terem liberdade. Nada mais absurdo; e,
entretanto, nada mais verdadeiro. As grades dos conventos chegaram a
representar, para a mulher portuguesa de 1700, alguma coisa de parecido com
uma libertação. Porque era severa a tirania patriarcal da família? Porque
era rigorosa a reclusão quase monástica do lar? Porque a casa paterna era
um cárcere? Por todas estas razões, – e ainda pela razão oposta de que
no século XVIII, mercê da absoluta falta de observância das constituições
e das regras, a vida dos mosteiros de freiras foi a coisa mais divertida
deste mundo. E, se não o tivesse sido, como se compreenderiam as fugas
constantes de mulheres nobres, sobretudo para os claustros seráficos –
fugas com todo o carácter ligeiro de raptos amorosos – como em 1728 a da
filha dos condes de Tarouca, D. Mariana Josefa, que iludiu a vigilância dos
pais e abalou de noite para o mosteiro das carmelitas calçadas de Carnide,
protegida na fuga pelo conde de Alvor e pelo próprio D. João V, que lhe
mandou um coche e criados da Casa Real? Se rezar antífonas no coro, fazer
doce na cozinha e namorar freiráticos na grade não fossem ofícios leves e
risonhos, teria porventura sido preciso, sob a ameaça de despovoar o Brasil
dos seus mais floridos ventres, expedir o alvará de 10 de março de 1732,
proibindo o embarque da multidão de mulheres brasileiras que queria vir
professar a Portugal? Se o hábito de brígida ou de capucha, de agostinha
ou de bernarda, de cónega sumptuosa de Chelas ou de maltesa fidalga de
Estremoz não fosse mil vezes preferível à clausura mourisca dos lares
nobres e ao ciúme tenebroso dos maridos portugueses, – onde estaria a
mulher que se sentisse respirar a plenos pulmões, que se considerasse,
enfim, feliz e liberta, no instante em que lhe vestiam, depois dum ano de
noviciado, a estamenha tremenda da aprovação? Nos versos galantes de todos
os poetas menores do século XVIII que se referem a profissões religiosas,
surge, a cada passo, a mesma ideia insistente de liberdade. Não o vago
conceito místico da redenção espiritual pela comunhão com um esposo
divino; mas a ideia precisa, grosseira e clara da libertação para o gozo
sensual de todas as temporalidades e para o exercício instintivo de todas
as seduções. Podiam, enfim, amar, respirar, viver. Sobre a cerimónia
pungente da profissão, os poetas já não choravam uma renúncia; sorriam
para uma promessa. O hábito branco das carmelitas suaves e das bernardas
orgulhosas já não era uma mortalha que se abria; era uma flor que
desabrochava. O
claustro tornara-se urna emancipação. A profissão, uma festa galante. A
grade, uma indústria. Nuns versos inéditos do tempo (F. A., Mss. códice
8581), descreve-se certa madre discreta de Sant'Ana felicitando uma freira
bonitinha, que professara de manhã: Dou-vos o parabém de professar, Este
conceito da vida conventual, tão excessivamente profano e utilitarista, que
não era fácil conciliá-lo com os votos de castidade e de pobreza, fez
convergir todas as energias da freira para uma preocupação única: a sedução
do homem. As freiras moças só tinham um pensamento: agradar. As freiras
velhas só tinham uma ocupação: tirar o maior partido possível dos
encantos das freiras moças. Todas estavam de acordo, desde as hierarquias
solenes, trôpegas e septuagenárias, até à virgindade tímida das últimas
professas: o dever da freira era, antes de tudo, procurar ser bela. A regra
proibia-o? A constituição opunha-se? Atirava-se a constituição e a regra
por cima dos moinhos. Em breve e os mosteiros portugueses, que Besenval
considerava tão impuros como o próprio D. João V, trasbordaram de
freiras-bandarras, de freiras-sécia, de freiras-franças, de
freiras-casquilhas. A elegância entrou nos claustros. Hábito, escapulário,
cordão, toalha, véu, as próprias sandálias das capuchas, das carmelitas,
das agostinhas descalças, insígnias de renuncia e de expiação, de penitência
e de humildade, transformara-se pouco a pouco, sobre a carne rósea e
doirada dessas pródigas de amor, em armas terríveis de sedução e de escândalo.
Nos flirts do locutório, nas comédias do convento, nas grades de doce,
nos tonos de viola, nos outeiros de abadessado, as freiras casquilhas
principiaram a aparecer pintadas, mosqueadas de sinais, perfumadas de água
de Córdova, as mãos finas metidas em regatos de arminho, o hábito
decolado “o abanico desinquieto no reparo do rosto”, sofraldando-se, dançando
minuetes, mostrando as pernas – diz frei Manuel Velho, em 1730, nas Respostas duma freira capucha – calçadas “de meias e de sapatos
picados, rocados de seda, de tissum, com fivelas de oiro, de prata, de
pedras preciosas”. As bernardas portuguesas tornaram-se célebres, entre
todas, pela elegância profana dos seus hábitos, pelo excesso ridículo das
suas pinturas. Nuns versos inéditos do mesmo códice 8581, as freiras de
Santa Clara de Coimbra acusam sem rebuço as bernardas de Celas de
“caiarem os rostos”, de "porem cores vermelhas” e de se mostrarem
aos amantes “disfarçadas e cobertas como pírulas douradas”. Frei
Manuel de S. Luís, psicólogo admirável das demi-vièrges monásticas do século XVIII, descreve, na Vida
da Venerável Madre Francisca do Livramento, a forma por que as freiras
claristas de 1700 compunham o rengo da toalha e amantilhavam o véu preto,
aconchegando-o à cara para fazer realçar mais a brancura pintada da pele,
e assomando à grade “com os olhos revirados, a voz afetada e melindrosa,
o hábito aberto no peito, passos requebrados, corpo ligeiro, pescoço
estendido”. Fossem lá os bispos, os arcebispos, os vigários capitulares,
os padres provinciais, os abades gerais, os confessores, os visitadores,
compeli-las à reforma dos trajos, à observância da regra e ao respeito da
Ordem! Expulsavam-nos do mosteiro, como fizeram as freiras do Salvador ao
seu vigário, em 1706, ou abriam as portas e saíam em procissão, de cruz
alada, entoando ladainhas, insultando os padres, alarmando o povo. Quase
todos os grandes conflitos no tempo de D. João V e de D. José, entre os
padres claustrais e as comunidades de religiosas, tiveram a sua origem em
intrigas de toucador ou de alcova: hoje, porque queriam um toucado redondo,
que as remoçava, em togar dum toucado de bico, que as fazia velhas; amanhã,
porque o calo da touca havia de nascer da testa, em vez de nascer do nariz;
um dia, porque queriam licença para, usar moscas de tafetá ao canto da
boca; outro dia, porque já não podiam andar sem tacões encarnados nos
sapatos; agora, a história dos regalos no coro, por causa do frio; logo, a
invenção dos decotes na grade, por causa do calor: – e se o rei
hesitava, se o ministro da Ordem proibia, se o núncio carregava os
sobrolhos, lá estava a abadessa a remangar do báculo, as hierarquias
velhas a alçarem cruzes, os sinos a dobrarem no mosteiro, as bentas, as
claristas, as bernardas, hábitos ao vento, a coalharem as ruas, a cavalaria
a sair dos quartéis para lhes cortar caminho, e o rei, paralítico,
imbecil, opado, risonho, a mandar-lhes todos os coches, todas as berlindas,
todos os florões dourados da Casa Real, para suas reverências profaníssimas
se darem ao incómodo de recolher ao mosteiro. O escândalo das
freiras-casquilhas chegara a tal ponto, que em 1778, diz o ci-devant
duque de Châtelet, “poucas eram as bernardas de Odivelas que não tinham
o seu amante, e raras as que vestiam os hábitos da Ordem”. Das casas de
religiosas portuguesas do século XVIII, e, em especial, dos mosteiros ricos
de bernardas, de beatas, de maltesas e de cónegas, podia dizer-se sem
grande injustiça o que o grave Saint-Simon disse um dia de certo convento
de capuchas da Bretanha: –
“Se alguma freira sai de lá, é porque quer ser uma mulher honesta”.
|
| |||||||
| |||||||||
© Manuel Amaral 2009-2012