|
|
|
A Freira |
|
O freirático
sofreu muito aos quadrilheiros, aos meirinhos, aos corregedores, ao Ordinário,
à Inquisição, ao ministro Bacalhau, ao Geral de Alcobaça, ao cardeal da
Mota, - ao próprio rei. Foi preso, metido no Aljube, desterrado para Angola,
deslombado pelos alcaides, tosquiado de multas para o Desembargo do Paço,
aferrolhado com os doidos na Casa das Palhas. Mas tudo isto era nada,
comparado com o que ele sofreu à freira.
Porquê, - se era
a freira que ele adorava, se era por ela que ele padecia todas as perseguições,
todos os vexames, todos os escândalos, com uma paciência, uma resignação,
um sentimento do platonismo, que nunca foram excedidos? Por isso mesmo. A
ingratidão da freira estava na lógica do coração feminino. O que eram,
afinal, bentas e clarissas, mónicas e bernardas, capuchas e albertas,
terceiras e jerónimas, brígidas portuguesas de Marvila e cónegas sumptuosas
de Chelas? Mulheres. Apenas mulheres. E a mulher riu-se sempre,
implacavelmente, de todos os tímidos, de todos os hesitantes, de todos os
contemplativos, de todos os platónicos. Parece que, tendo realizado, em amor,
a expressão máxima da adoração, os «devotos de freiras» deviam ter sido
infinitamente amados. Engano. A adoração do homem só interessa e perturba a
mulher quando a audácia, a virilidade e a força a tornam desejo dominador,
posse absorvente, volúpia dolorosa. O êxtase do freirático, inerte e
insexuado como todos os idealismos, foi, na vida amorosa do século XVIII, uma
quantidade negativa. A princípio, a freira limitou-se a escarnecê-lo.
Depois, percebeu que tinha no freirático uma mina, e enquanto viu luzir-lhe
na mão um anel de pedras ou uma pataca de prata do Peru, explorou-o,
depenou-o, arruinou-o. O freirático tornou-se para a religiosa portuguesa uma
indústria tão rendosa como os ladrilhos de marmelada ou como os tapetes de
Arraiolos. «Mostrem-me um homem que tratasse com freira - diz um manuscrito
do tempo, intitulado Advertências Freiráticas
- que não saísse logrado, sevandijado, ultrajado, esfolado, arrastado,
esfalfado, sacudido, consumido, vendido, aborrecido, caído, perseguido,
desfavorecido, banido, tolhido!» Imaginam que o freirático, vítima da
freira, se curava e deixava as grades do convento? Ilusão! Lá ia outra vez
no dia seguinte, cambado, pobre, roto - mas risonho, florido, alegre como um
pucarinho de Natal, o quitó doirado metido entre as pernas, o lenço de
holanda fina caído da boca, um livro de Frei Luís de Granada debaixo do braço,
vender a camisa do corpo por uma hora de grade com sóror Técla, por um
minuto de ralo com madre Pérola. Queixava-se? Mas a sua queixa era um murmúrio.
Arrufava-se? Mas o seu arrufo era um suspiro. E se, às vezes, troçado,
ludibriado, despedido pela freira, enxotado à vassoirada pelas donatas
dispenseiras do convento, sentia a necessidade pecadora, o ímpeto humano de
vingar-se, - limitava-se a cantar, a guinchar da portaria, em falsete, a «ladainha
do freirático», sátira ingénua à freira portuguesa do tempo de D. João
V, conhecida em todos os mosteiros dos quatro cantos de Portugal, - de Santa
Maria de Lorvão a S. Bento de Castris, do Salvador de Braga a Santa Cruz de
Vila Viçosa:
Das freiras desta cidade,
Que correm degrade em grade,
Com quem temos pouca fé,
Libera nos Domine.
Da que ama sem amor,
Da que mente sem temor,
Da que pede sem porquê,
Libera nos Domine.
Da que se finge noviça,
Da que tem tia postiça,
Da que vive d'alquilé,
Libera nos Domine.
Daquela que faz versinhos,
Da que escreve com pontinhos,
Da que fala por cê cê,
Libera nos Domine...
Senhor-Rei, que nos dás caça,
Tu que vês em que desgraça
A nossa freira nos pôs,
Te rogamos audi nos. |
Mas de que artes
se servia a freira para prender, para seduzir, para explorar o freirático?
Como era feito esse trabalho de tentação e de inferno, que trazia um pobre
diabo preso «à manjadoura duma grade» até vender a sege, empenhar a casa,
arruinar a comenda e pedir pelas portas? Sabemo-lo hoje por alguns psicólogos
do amor monástico dos séculos XVII e XVIII, que escreveram Estatutos
e Ordenações freiráticas contando a maneira porque as bentas, as
carmelitas, as agostinhas caladas do Salvador de Vairão, de Santa Teresa de
Carnide, de Sant'Ana de Coimbra costumavam conduzir-se nos seus amores. Que
observação subtil e penetrante a desses Bourgets de cabeleira empoada, a
desses Prévosts de tacão vermelho, em cujos manuscritos desconhecidos e
apagados dormem, há duzentos anos, páginas sempre novas de psicologia
feminina!
Antes de tudo, a
freira escolhia. Os «joanicos», nome que as religiosas davam aos freiráticos
de convicção, chegavam aos cardumes, como peixinhos de retábulo de Santo
António, correndo aos sermões da Quaresma, aos Lausperenes do mosteiro, aos
outeiros de Abadessado. Eram de toda a casta: turinos, baetas, fidalgos,
frades, michos, capigorros, estudantes de verdemilho, - velhos e moços,
gordos e magros, ricos e pobres. Qual deles escolhia a freira? O mais velho, -
por que era o que mais tinha: o mais feio, - por que era o que mais dava.
Chegava a primeira carta de namoro, dobrada em pastel de três cantos, fechada
com três obreias em coração. Que fazia a freira? Devolvia-a sem a abrir.
Vinha a segunda: abria-a sem responder. Nunca dava resposta nem à primeira,
nem à segunda carta de amor que lhe mandavam: esperava sempre pela terceira.
Se não vinha; era por que o namorado não possuía as qualidades de paciência,
de resignação, de perseverança que se exigiam aos verdadeiros freiráticos,
aos «joanicos» puros, - e, por conseguinte, não valia a pena gastar tempo
com ele. Se a carta chegava, se o freirático era dos que teimavam, dos que
suspiravam, dos que sofriam tudo, dos que voltavam sempre, dos que empenhavam
a camisa, dos que largavam a «mosca» até ao último dobrão de oiro, - então,
lá ia a resposta da freira num bilhetinho muito recortado à tesoura, muito
salpicado de àgua de Córdova, dizendo «que não se cansasse Sua Mercê em a
querer, que ela era muito feia, que não prestava para amores». O freirático
insistia; nova carta; nova resposta da freira, - e estava pegado o namoro: «
já que tem de ser, que o seja com todo o segredo de Sua Mercê, para não o
saberem os parentes nem a Abadessa». Começava então o delicioso martírio
do freirático. A freira convidava-o para assistir ao primeiro sermão,
recomendando-lhe que ficasse ao pé do púlpito, para ela o poder olhar sem
ser reparada; o padre subia; abriam-se as cortinas do coro de baixo, onde
estava a comunidade; o freirático, apertado, entalado, espremido entre a
mafra-baixa do povo, suando como uma sezão de Maio, pregava os olhos em êxtase
na grade do coro, empoleirava-se nos bicos dos sapatos para espigar entre os
fiéis, e ao fim de duas horas de tortura, de imobilidade, depois de ter
ouvido a pregação de qualquer frei Caramujo do Deserto, as pernas cheias de
cãibras, a alma resplandecente de amor, recebia um bilhetinho da sua freira a
queixar-se «de que ele não tirara os olhos de Sóror Teresa, e de que nem
sequer olhara para ela». Era a inevitável cena de ciúmes, que a freira
devia fazer sempre antes que o freirático lha fizesse. O desgraçado pedia
perdão do delito que não cometera, - e era-lhe então permitido, a troco de
vinte papéis de solta e duma coroa de prata para o menino Jesus, a suprema
graça de namorar a freira de estafermo. Lá ia o freirático, no dia
seguinte, de lenço nos dentes e chapéu no sovaco, esperar na rua, à
torreira do sol, que um «escarrinho» trilasse e que um vulto branco, vago,
indistinto, surgisse na sombra duma das rótulas do mosteiro. Passava uma
hora, duas horas, três horas de enlevo, - e o vulto não se movia: era uma
toalha, que a freira pendurara na janela. Outras vezes, de repente, a sombra
encrespava-se, sacudia-se; ouvia-se rosnar, ladrar, ganir; era a cadelinha
branca da madre-vigária, que tinha recebido, durante uma tarde inteira, a
adoração do freirático. Ele queixava-se? Havia sempre uma desculpa: a
Abadessa. Ele perdoava? Havia sempre um préêmio: o ralo. Era através dessa
placa de ferro, crivada de cruzes e cheia de teias de aranha, que o freirático
podia, quase boca com boca, falar à sua freira sem a ver. Mas quando colava
os lábios, voluptuosamente, de encontro ao ralo, num longo, comovido beijo em
que lhe parecia sentir, através do crivo de ferro, como um perfume de rosas
frescas, o hálito perturbador da religiosa, - um ardor de labareda
galgava-lhe às ventas, sufocava-o de súbito um cheiro acre de especiaria, e
todo o arcaboiço se lhe retesava, e arfava, e sacudia num arranco de sete
espirros: era pimenta. Cuidam que a freira não encontrava desculpa? Se
encontrava! E tão excelente, que ainda era ao freirático que ficavam as
culpas de lhe terem soprado pimenta até à raiz das goelas. - «Para que
namorou Sua Mercê a Sóror Sicrana, que agora se vinga de Sua Mercê a deixar
e de me querer bem a mim?» Voltavam os arrufos, o freirático acabava por
pedir perdão à freira de ter espirrado tanto, - e só então, depois de
sofrer todas as perfídias, todas as zombarias, todos os escárnios, com a «ladainha
dos freiráticos» a tilintar-lhe na cabeça como uma garrida de portaria, o
pobre devoto via abrir-se enfim diante dele, para um suplício maior ainda, o
paraíso perdido dos mosteiros: a grade.
De freiras que veem à grade,
cheias de tanta maldade
que só El-rei a não vê,
Libera nos Domine...
|
Júlio
Dantas
|
|