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A grade de doces |
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De
vez em quando, no terreirinho soalheiro, à porta do convento de Santa Clara
de Lisboa, paravam coches, liteiras, seges, estufas pesadas de Espanha, florões
doirados de arruar, uma carriagem tumultuosa, atrelada de urcos, ferrolhante
de correões e de rodas, bamboleando, oscilando entre o vozeiro dos
liteireiros, dos cocheiros, dos criados de tábua, dos mochilas vadios. Os
moscões zoavam sobre a garupa das bestas; ladravam cães aos painéis
pintados das berlindas; os vaqueiros vermelhos dos eguariços pareciam
labaredas ao sol, e o povo miúdo que passava, pasmado, negro, devoto, cheio
de escapulários, de bentinhos, de rosários, de cruzes de Caravaca, ficava
olhando, cochichando, esgalgando o pescoço:
-
A comédia em casa das freiras.
-
Ou então, abadessa nova.
-
Ou visita de el-rei...
E
vá de perguntar aos mochilas chamorros que
coçavam a arreigada das orelhas empoleirados nos estribos dos coches e
no tapadouro das roda:
-
Que há hoje no conventinho?
E
mochilas, e cocheiros, e lacaios de tábua, e liteireiros de monteira,
respondiam, piscando o olho, estalando os chicotes, espalmando as manzorras
felpudas sobre o cachaço nédio dos machos:
-
São as freiras que dão «grade de doces... »
O
que era a «grade de doces» nos conventos portugueses do século XVIII? Uma
espécie de chá-das-cinco oferecido pelas freiras, na grade grande, a todos
os freiráticos do convento. Um baltasar de pão-de-ló e de peitos-de-freira,
de covilhetes de marmelada e de morcelas de Arouca, com acompanhamento de êxtases,
de sorrisos, de suspiros, de amuos, de adivinhações em verso, de motetes à
viola, de presentes às madres. Logo de manhã, as rodeiras armavam na
portaria de fóra um bufete de doce; vinha a toalha capucha de holanda, sem
rendas; vinham os pratos 'grossos da índia, que, só serviam naqueles dias,
com os seus cogulos de bolo podre, de sevados, de moletes, de argolinhas, de
melindres, de canelões, de bolinhos do Bispo, muito loiros, de manjar branco
de Chelas, de sequilhos das maltesas de Estremoz; cada religiosa mandava um
bilhete recortado, convidando o seu freirático; à hora aprazada, o terreiro
coalhava-se de coches, de seges, de calejas; formigavam na portaria fidalgos,
baetas, faceiras, capigorros, frades, chiotes de saragoça e casacas de riço
verde, forfúncios de manguito e chapéu à Anastácia, tartarugas,
desembargadores, estudantes, «jarras» velhos piscando olhinhos de sátiro,
toda a corte de amor que, segundo um manuscrito do tempo, «Cupido costumava
reunir no convento de Santa Clara»; as madres rodeiras, corriam a abrir a
cortina da grade maior: e, perante aqueles trinta, quarenta freiráticos
deslumbrados, rendidos, risonhos, curvados em Gloria
Patri, os olhos em alvo, e alma em Lausperene, balbuciando «minha madre!»,
«minha estrela!», «minha Diana!», as freiras vinham assomando, uma a uma,
negras, lentas, graves, as mãos escondidas nas mangas dos hábitos - «louvado
seja Nosso Senhor Jesus Cristo!» -, para daí a pouco atirarem a regra para
cima dos moinhos, cruzarem a perna, zangarrearem na viola os minuetes do
Marques e do Castela, representarem umas com as outras o Entremez
do Macaco, recitarem versos às pulgas que tinham catado na véspera, e
divertirem durante duas, três horas, aquela clientela freirática
trasbordante de êxtase e de pão-de-ló, de ideal e de papos-de-anjos, de
platonismo e de marmelada.
Era
isto uma «grade de doces». Mas não era só isto. O que tornou extremamente
pitorescas as grades de doce do século XVIII, foi á iniciação dos freiráticos
novos. Era nessas «Cortes de Cupido» que os «joanicos», os freiráticos
puros, eram pela primeira vez admitidos à grade. Foi aí que as freiras
educaram os seus apaixonados na arte de as presentear. Como? Muito
simplesmente. A tradição, no mosteiro de Santa Clara, como noutros «conventos
conversativos», mandava que o freirático, convidado para uma grade de doces,
correspondesse à gentileza da sua freira levando-lhe uma prenda. O novato,
que não conhecia a praxe e que ia de mãos a abanar, tinha de assistir
vexado, transido, verde de despeito, capaz de se meter pelo chão abaixo, a
essa exibirão de presentes dos freiráticos velhos, - resplendores; músicas,
presépios, coroas de prata para o menino Jesus, cabeleiras e quitós doirados
para as comédias, casais de pombos, cães de regaço, virginais e espinetas
pintadas por Pedro Quillard, frascos de «água da rainha da Hungria», - um
mundo de coisas ricas e pueris que os mochilas lanzudos, ajoujados, envesgavam
para a roda, e que as freiras recebiam aos gritinhos, aos ais de admiração e
de espanto, rindo, chilreando, revoando pela grade.
-
Ai, mana, que parece de el-rei!
-
Veja Vossa Caridade, que amor de viola!
-
La, ri, ra! Um minuete do Borrinha, minha madre!
-
Ai, o anjinho do cão!
E
o freirático novo, enfiado, aguado, vendido, encolhido a um canto, de olhos
baixos, sem se atrever a bolir nos doces, sem alma para encarar as freiras, não
sossegava, não respirava, não vivia enquanto não se pilhava fóra da grade,
fora da portaria, fora do convento, e corria a casa, e abria a arca, e pojava
a algibeira de meias peças de oiro, e enfiava, como doido, pelas lojas dos
Genoveses, a comprar para a sua freira, para a sua pobre freira, a única
entre todas que não tivera uma prenda naquela tarde, o presente mais
sumptuoso que algum dia um freirático deixou numa roda pobre de capuchas.
Estava ensinado. Já sabia, dali por diante, que os três mandamentos do amor
das freiras eram: «dar, tornar a dar, nunca acabar de dar».
Só
depois deste baptismo a grade se abria francamente ao freirático. Era depois
desta iniciação que a freira o recebia a sós no locutório. Rigorosamente a
sós? Não. Primeiro, porque nas hierarquias dos conventos havia umas madres
velhas, gosmentas, virgindades rancorosas de oitenta anos que serviam o cargo
de gradeiras ou «escutas», e cuja missão era ver e ouvir tudo quanto as
freiras diziam e faziam na grade: depois, por que toda a religiosa tinha a sua
«madrinha», a sua «comadre», a sua «terceira», freira confidente que
vinha antes dela falar à grade com o freirático, dizer-lhe «quanto soror
Sicrana morre por Sua Mercê», desfazer arrufos, provocar presentes, - «não
tem senão dois pares de meias, coitadinha!», - completar essa obra lenta e
maravilhosa de indústria e de mentira de perfídia e de exploração, que
foi, no século de D. João V, o amor da freira portuguesa. Mas o freirático
não exigia mais do que a ilusão de estar só. Pois não o ouvia Deus também,
não o espreitava Deus de toda a parte, das folhas iluminadas dos antifonários,
dos painéis de azulejo do coro, do próprio rosário humilde da freira,
ramalhando cruzes no cordão de esparto? O seu amor, feito de platonismo e de
renúncia, sentia-se bem na sombra daquela dupla grade profunda, misteriosa,
eriçada de púas de ferro na Senhora da Esperança de Beja, doirada nas
bernardas do Salvador de Braga, e em cujo vão, como queria o arcebispo D. Veríssimo,
mal podiam alcançar-se duas mãos estendidas. A obra de sedução, a obra de
inferno da freira principiava então. «Qui
non est tentatus? Quid scit?» Se o freirático lhe pedia a ponta dum
dedo, para a aflorar, para a tocar de leve, para lhe sentir o perfume, - ela,
de olhos baixos, o peito arfando, fingindo-se cheia de pudor, dava-lhe a mão
envolvida castamente no lenço ou na estamenha do hábito. Mas se ele não
pedia nada, se a freira o sentia calmo, frio, indiferente, se era preciso tentá-lo,
perturbá-lo, entontecê-lo, - então, era ela que por acaso, ao desdém - «laus
tibi, Domine!» - remangava, descobria num lampejo a polpa rosada do braço,
sofraldava uma nesga da meia branca de dominica ou de cónega, e gemia, e
ciciava, diante cio êxtase do freirático:
-
Estou muito acabada, meu senhor. Dantes, sim, que me chamavam a rosca e era
feita em carnes...
Mal
o freirático tinha tempo de adivinhar o paraíso, de ver bruxolear um sapato
de fivela, ou aloirar-se e afoguear-se, entre a alvura da toalha, o pêssego
maduro dum peito, logo um gritinho soava, logo vinha um ai postiço de aflição,
e a freira fugia, desaparecia na penumbra doirada da, grade, como uma coruja
aos pulos, «a abadessa! a abadessa!», para ir caír, lá dentro, ofegante,
espeitorada, rindo a trancos, nos braços da moça Brites:
-
Ai o tolo, minha mana!
Júlio
Dantas
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