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- Belchior!
- Siô.
- Onde é hoje o Lausperene?
- Francesinhas, siô.
Depois de bem assobiado e roncado o sono da sesta, o faceira assenta-se na
cama, espreguiça‑se em Santo Cristo, levanta-se em palmilhas de meias,
abre o postigo da janela e vai buscar a sua folhinha de Lausperenes. O mochila
preto não o enganara. O Lausperene é nas Francesinhas.
- Belchior
-
Siô.
- A cabeleira
O negrinho, amestrado, traz a peruca de mostachos espetada na mão como numa
boneca de pau preto, compõe-lhe algum bucre desriçado, dá-lhe o seu penso
de polvilhos de França, e como se lhe metesse dentro um melão do Paul da
Chamusca, enfia-a, repuxando e pinchando, na cabeça de sua Mercê. Depois,
acocora-se; estica-lhe os refegos das meias de espinha grossa; calça-lhe
os sapatos de salto vermelho de perdiz, feitos pelo Domingos Afonso, do Beco
do Vidro; vai buscar-lhe a casaca de riço verde, com botões grandes como
pires de prata, que o faceira veste aos ais e ajusta aos pinchos e às upas;
compõe-lhe as rendas dos manguitos; enfia-lhe o quitó doirado na pala do
boldrié; empoleira-lhe no sovaco o chapéu à Anastácia; dá-lhe umas contas
para rezar o terço de Benditos; mete-lhe na mão um livrinho das Vinte e quatro Adorações, - e aí está o turina de 1720 pronto
para ir «namorar um Lausperene» às francesinhas capuchas de a par de S.
Bento.
- Belchior!
- Siô.
- A sege
Duas rodas enormes de largos tapadouros entalhados
batem como matracas o lajedo da rua; uma pequena caixa de coiro pregado de
ferraria cabeceia sobre os correões, sonolenta; o boleeiro Pangaio faz
estribo das duas mãos enclavinhadas; o faceira galga, empoleira-se, some-se
na sege, e lá vão, negro e boleeiro, faceira e machos, tropeçando,
vacilando, abanando como um andor, subindo primeiro às Chagas, descendo
depois aos Paulistas, tornando a subir o morro verdejante até à formidável
mole de cilharia de S. Bento da Saúde.
- Pronto, fidalgo!
Quando o faceira descia, de nariz no ar, de livro
na mão, ramalhando as contas do terço, já o terreirinho que entestava com o
portal das capuchas da Bretanha estava coalhado duma matula de mendigos, de cães,
de negros, de cegos de sanfona, de frades pedintes, de mulatas marisqueiras,
de beatas de camândulas e rengos brancos, de pés-forçados das escadas do
Hospital, que bezoavam, que se acotovelavam, que praguejavam, que enxameavam
ao sol na névoa de oiro da tarde, pedindo esmola, comendo melancias,
entrapando chagas, subindo aos estribos dos coches, dando relicários a beijar
às crianças, vendendo cordeirinhos-pascais de barro de Estremoz, numa lamúria
fanhosa de ladaínha:
- Agnus Dei,
qui tollis peccala mundi, parce nobis, Domine...
Vinham chegando, - no encalço das bandarras,
revoadas de faceirinhas de gravata de garrote e quitó de nascer; chispavam
olhos amorosos do fundo dos biôcos negros e dos rebuços amantilhados; florões
da Casa Real, com os seus sota-cocheiros de vaqueiro vermelho, despejavam
gente do Paço que vinha rezar o terço ou a hora ao Santíssimo; pouco a
pouco, ia-se enchendo o templo, cujo altar-mor cintilava numa colmeia de
lumes; as freiras, abrindo as cortinas do coro de cima, apareciam, como
corujas, através da reixa miúda da grade; em baixo, o «lugar dos leques»
povoava-se de franças, de cómicas, de damas, arfando abanicos, chocalhando
rosários; - e nesse jubileu de Adorarão Perpétua, desde que começava o terço
de Benditos até que acabava o Tantum
Ergo, não havia na igreja das capuchas francesas um canto, um recesso, um
altar donde não rompesse, não surgisse, não brincasse, da nave para o coro,
do coro para a teia, da teia para o transepto, o mais desaforado, o mais
escandaloso, o mais universal dos namoros. O Lausperene ! Mas o que foi o
Lausperene, na Lisboa do século XVIII, senão uma pastoral galante na
penumbra dum templo? Os faceiras beliscavam as franças: os freiráticos
namoravam as freiras; os mochilas escudeiravam as aias; e enquanto as velhas,
correndo os terços nas mãos, engranzavam Benditos e Glorias; enquanto as
madres, alinhadas nas suas estalas, rompiam do coro a ladainha da Virgem, «Kirie
eleison, Christe eleison, Pater de CaeIis Deus misereré nobis... », -
por toda a igreja cruzavam-se olhares, gemiam suspiros, chilreavam beijos,
palpavam-se polpas loiras de braços; Amores cor-de-rosas adejavam, revoavam,
pousavam nos confessionários e nos púlpitos, na talha doirada dos altares e
nas pias de água benta; um estremecimento dionisíaco agitava o ar, como um
frémito de asa; um vago perfume de sensualidade subia com o incenso da goela
de prata das navetas, e dir-se-ia que do fundo de cada retábulo negro e
sangrento, urna cabeça de sátiro surgia, cornicabra, risonha, arfando as
narina, rebolando os olho, farejando voluptuosamente a primavera...
Pobre cardeal D. Luís de Sousa! Quis combater a
imoralidade, e trouxe, no seu capelo vermelho, uma imoralidade maior ainda.
Quis matar os teatros, - e inventou o Lausperene. Faceiras e fidalgos corriam
os pátios de comédias, enchiam os corros das Arcas e da Betesga, biatiam-se,
tinindo espadas; por um olhar furtivo da Margarita, por um fandango desnalgado
da Josefa Vaca? Pois bem: por cada cómica, - abria-se uma igreja. D. Luís de
Sousa, em cujos ombros ineptos pesava, crucigiado de negro, o pallium
de arcebispo, «homem incapaz e condenado por idiota», no conceito terminante
de frei Alexandre da Paixão, não viu senão um remédio à vida dissoluta
dos pátios de comédias: atrair à mesma hora baetas e nichos, fidalgos e
faceiras, à adorarão perene do Santíssimo Sacramento. Os famulos, que
conheciam a vida licenciosa do prelado, a história de certa freira benta
raptada do mosteiro de S. Salvador de Vairão, as «penitências de capões
assados» feitas pelo cardeal com a abadessa moça de Chelas, aprovaram a
ideia piedosa de Sua Eminência louvaram o zelo que ao seu báculo pastoral
mereciam tantas ovelhas gafas, repetiram a frase do padre Chagas - «teatro,
consistório de vícios, cegueira de olhos abertos!», - e, dali a poucos
anos, em 1682, simulando um rapto angélico de iluminado, o cardeal Sousa
recebia do papa Inocêncio XI a bula do Jubileu do Lausperene para todas as
igrejas de Lisboa. Foi a Sé, num dos domingos do advento, o primeiro templo a
coalhar-se de lumes e a rezar, no seu coro cabidual povoado de murças
brancas, as vinte e quatro Adorações. As mulheres lisboetas, aferrolhadas à
mourisca nos estrados ensombrados de rótulas, mal afeitas a um bochecho de ar
na missa dos domingos e a uma bebedeira de vento nas quatro procissões do
ano, - encontraram um pretexto excelente para sair de casa todos os dias e
para perturbar a gravidade das Igrejas com as práticas profanas do beliscão
e do estafermo, da escudeirice e da estaca. Até ali, o escândalo era só um:
- as comédias; dali por diante, os escândalos foram dois: - as comédias e
os Lausperenes. O cardeal D. Luís de Sousa, degenerado, derrancado, enfermo,
apresentando, entre outros, o estigma das sensibilidades paradoxais, «tremendo
de frio - diz o seu médico cubiculário, Curvo Semedo - quando metia as mãos
numa escudela de água quente; sentindo um fogo de brasas quando aflorava com
os dedos um pedaço de neve», acabou em 1702, desiludido, com a íntima
convicção de que seria preciso mandar fazer mais três pátios de comédias,
mais três corros como o das Arcas, para afastar homens e mulheres do vicio do
Lausperene e da Igreja ....
– Belchior!
- Siô.
- Chama a sege!
E enquanto o mochila negro voava a berrar pelo
Pangaio, - o faceira, ao morrerem as vozes do Tantum Ergo, benzia-se de espirro, rezava ainda uma Ave Maria de «busbus»,
enramava o terço nas mãos, saía o portal das Francesinhas, torcendo o pescoço
para o tímpano de pedra, - e lá ia, feliz, contente, bamboado na sege como
numa charola, inundado da infinita delícia, do supremo êxtase de ter
beliscado sete ancas, palpado vinte braços, piscado o olho a cinco freiras,
dado água benta à senhora marquesa de Angeja e gritando ao negrinho, bem
alto, para o ouvirem todos na rua:
-
Belchior, vamos para o Paço!
Júlio
Dantas
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