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D. João V e os
bispotes |
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O
dia 8 de Setembro de 1720 foi o dia de Juízo no mosteiro de Odivelas.
Mal
tinha apontado a manhã, o tempo de vinte padre nossos antes da hora de prima,
ouviram-se, dum dos quartos das madres, para as bandas da casa do Capítulo,
uns gemidos ansiosos de mulher. Depois, três gritos estridentes, logo,
abafados e amordaçados. Uma donata velha correu ao lugar, a chamar em segredo
a comadre, que entrou de bioco na portaria, umas contas de Jerusalém ao pescoço,
um livrinho de Santa Bárbara na manga. A Prelada atava as mãos à cabeça.
Moças do convento palmilhavam os corredores de tijolo trazendo panelas de água
quente. O vigário frei Timóteo, mal estrovinhado ainda, coçando a
cabeça chamorra de bernardo, não teve remédio senão mandar botar os
atafais à mula, galgar‑lhe ao albardão mourisco e choutear, na raçada
do sol, até Lisa boa. Madre Paula tinha dado à luz um menino de el-rei.
Duas
horas depois, o frade estava em casa do marquês de Gouveia a bichanar-lhe ao
ouvido a grande nova. Chegara um bastardinho a Sua Majestade. O marquês
velho, que também tinha a sua Gamarra nas Mónicas, abriu muito os olhos,
vociferou, assentou-se na cama, vestiu-se à pressa, meteu-se numa sege com o
frade, e lá foram ambos até à Calcetaria, a par das casas da Congregação,
levar a nova do menino a Sua Senhoria o secretário de Estado. Diogo de Mendonça,
risonho, recebeu-os a podar roseiras no quintal. Um bastardinho de el-rei? Um
bastardinho de Odivelas? Não havia tempo a perder. Já! O sota-cocheiro que
metesse os frisões ao coche. Era preciso prevenir imediatamente o cardeal da
Cunha. Onde estaria Sua Eminência, àquela hora? Em casa da bruxa Catarina do
Espírito Santa. E frade, e marquês, e secretário de Estado, bamboleados nos
correões de uma caleja doirada da Casa Real, lá foram os três a caminho da
rua dos Odreiros, a prevenir o cardeal da Cunha - «zelus
domus tuae comedit me!» - de que na nobre casa de S. Bernardo uma
esposa-virgem do Senhor concebera de el-rei D. João V. - «Um menino Jesus!»,
- sorriu o cardeal, benzendo-se, babando-se, palpando o breviário,
despedindo-se da bruxa, agarrando o chapéu vermelho corno uma labareda. E os
quatro, de tropel, ministro, marquês, prelado e frade, descem a escaleira de
azulejos da Catarina do Espírito Santo, galgam aos estribos do coche,
repoltreiam-se espipados, cochichando, sorrindo, piscando os olhos, e eles aí
vão até ao Paço da Ribeira, jubilosos, untuosos, solenes, pedir alvíssaras
a Sua Majestade da graça de nova descendência, de novo banco de pinchar de
oiro, que lhe florira, pela segunda vez, do escapulário sumptuosos duma madre
de Odivelas.
-
É fradinho ou freira? - perguntou o rei.
-
Fradinho professo, meu senhor, que lhe vi eu pendentes os selos da licença -
esguelhou o bernardo, baixando os olhos.
Era
o terceiro bastardo de D. João V. O primeiro nascera-lhe numas casas da rua
do Tronco, em 1714, filho duma das muitas francesas que então enxameavam por
Lisboa no ofício de mulheres-damas; o segundo, que foi o arcebispo de Braga
D. Gaspar, vira a luz em Odivelas, em 1716, filho duma freira bernarda, soror
Madalena Máxima, e aparado nas mãos hábeis do doutor Francisco da Fonseca
Henriques; o último nascera ainda no mosteiro de Odivelas, quase no regaço
da Abadessa escandalizada, filho do primeiro ventre de Dona Paula, freirinha,
brejeira e feia que dos braços do conde de Vimioso passara para os do rei, e
em cujas veias corria o sangue crasso e ardente de um embarcadiço napolitano.
A Prelada, que não tinha nem a tolerância nem o espírito de Feliciana de
Milão, agastou-se, ofendeu-se, achou que o mosteiro não era roda dos
enjeitados de el-rei, chamou as madres discretas, tabaqueou o caso com elas, -
todas as madres velhas de S. Bernardo fungavam o seu estorrinho devoto -,
reuniu capítulo ao som de campa tangida, e, incendiada no zelo da observância,
participou à comunidade a firme resolução em que estava de queixar-se ao Núncio
e de não voltar a receber na portaria, de mitra e báculo, o senhor rei D. João
V. Dias depois, o arcebispo D. José Firrau, núncio apostólico, procurava o
monarca no Paço, e discretamente, delicadamente, com o melhor dos sorrisos,
convidava-o a rodear de mais compostura os seus amores monásticos, a não
obrigar a Abadessa a recebê-lo debaixo de pálio quando ia para a Citéra de
Odivelas, e a atenuar um pouco a prodigalidade, verdadeiramente real, com que
Sua Majestade estava enchendo de filhos as madres.
-
Para que são elas madres, Arcebispo?
D.
João v despediu o Núncio, mas ficou ruminando o caso. D. José Firrau talvez
tivesse razão. Era preciso pensar. Frei Gaspar Moscoso, arrastando as sandálias
de arrábido, chegou do Varatojo, chamado pelo rei. Veio o patriarca D. Tomás,
de liteira, com os machos gualdrapados de vermelho. Veio o Geral dos crúzios.
Veio o marquês mordomo-mor. Veio Alexandre de Gusmão, chegado havia pouco de
Roma, bexigoso, jovial, o nariz socrático debruçado sobre os bacalhaus de
renda. Vieram Diogo de Mendonça; o Frederico, que tratava do dinheiro; o
cardeal da Cunha; o sapateiro Bento Fernandes; todos os amigos, todos os
confidentes de Sua Majestade. Resolveu-se atender as insinuações do Núncio;
mandar um presente de loiça da índia ao Papa, e encarregar o sapateiro e o
varatojano de duas missões delicadas: Frei Gaspar iria buscar os meninos
reais a Odivelas, entregando um ao leite das amas, outro aos cónegos de Santa
Cruz de Coimbra; Bento Fernandes trataria de comprar ou de expropriar certa
morada de casas a par do mosteiro, para instalar nela, com comunicação
interior para casa das madres, a garçonnière
monástica de D. João V. Assim se fez. Sua Majestade escusava já de profanar
todo o claustro de S. Bernardo, para poder assentar nos joelhos a sua freira.
As
aparências estavam salvas. Nem o rei entrava no mosteiro, nem Dona Paula saía
da clausura. O novo ninho de amor era terreno neutro. D. João V não se
limitou a fazer desse ninho uma capela. Fez dele um paraíso.
-
Quanto ouro trouxeram as últimas naus dos quintos?
-
Doze milhões de cruzados, meu senhor, - respondeu Diogo de Mendonça. -
Gastam-se em Roma?
-
Não. Gastam-se em Odivelas!
O
delírio de grandeza, a epilepsia de magnificência de D. João V, crescera,
ateara-se como um clarão. O seu real coração tinha de refugiar-se fora do
mosteiro? Pois bem! Havia de refugiar-se num palácio. A Abadessa
escandalizara-se com o parto de soror Paula? Pois soror Paula havia de viver
no mosteiro como vive uma rainha. O ouro dos quintos ia mobilar, armar de
damascos, rechear de riquezas, pojar de maravilhas não só o ninho amoroso de
D. João v, -mas os' aposentos claustrais da sua freira. O rei, que não
suportava senão as cabeleiras de França e as camisas de França, escolheu,
desta feita, artistas portugueses. Félix Vicente, José de Almeida, o grande
Silvestre de Faria, António Salci Seleiro, que fizera os três coches da
embaixada de André de Melo e Castro a Roma, foram chamados para florir,
brincar, lavrar de talha doirada os tetos profundos, povoar de Amores os
altos-de-porta, abrir molduras de acantos às Vénus nuas pintadas por José
Negreiros e Pedro António Quilard; Francisco de Matos inventou e coseu
cilhares e cabeceiras de azulejos; ensambladores, marceneiros, armadores
portugueses envernizavam charões, entalhavam leitos, papeleiras e armários,
torneavam bufetes e tripeças, armavam de melania paredes e alparavazes; o
relojoeiro Pires, da Rua Nova dos Ferros, vendia os relógios de caixa, que
tangiam minuetes; Cristiano Fresi, uma espineta de Von Brock, `para os dedos
cor de rosa da freira; Francisco Justo e Francisco Lázaro, ourives de Lisboa,
recebiam a formidável encomenda das pratas, dezoito caixões de pesada
ferraria. apojados de púcaras, bacias, gomil, bátegas, escudelas espelhantes,
serpentinas torcidas de seis lumes, três baixelas inteiras de prata doirada
que nunca, em vida de sóror Paula, chegaram a saír das fundas arcas do
Brasil. Só uma encomenda D. João fizera para Londres a D. Luís da Cunha,
que o grande diplomata devia agenciar na Alemanha por intermédio de Francisco
de Belegarde. O que era? Ninguém o sabia. No mosteiro de Odivelas guardava-se
sobre o pedido de el-rei um tão profundo segredo, como se se tratasse dum negócio
de Estado. Havia de ser coisa de peso, porque Sua Majestade andava inquieto, e
o seu «salve-te Deus», todas as manhãs, era perguntar se viera pacabote da
Holanda. Que teria a sumptuosa sensualidade de D. João V mandado vir do
estrangeiro com tanto mistério ? Uns evangelhos em grego, - dizia frei Timóteo.
Algum relicário de diamantes, - supunha a Abadessa. Um retrato de el-rei
feito pelo pintor Mignard, - suspeitava a condessa de Coculim. A garçonnière
de sua Majestade e de sóror Paula estava pronta; só se aguardava a encomenda
feita a D. Luís da Cunha, - quando, Alexandre de Gusmão entrou um dia, de
manhã, pelo quarto do rei:
-
Chegou o pacabote, meu senhor.
Ao
mesmo tempo, o sapateiro Bento Fernandes, risonho, esgalgado, assomava com um
saco de veludo em cada mão. Um riso brejeiro de fauno engelhou a face moça
de D. João V. Arfaram-lhe as narinas voluptuosamente. Dir-se-ia que o aegipan
felpudo entrevira corpos nus de naiade fugindo entre arvoredos azuis. Sobre
uma mesa, em segredo, a encomenda surgiu aos olhos deslumbrados do rei.
Eram
dois bispotes iguais de prata da Alemanha, para cujo fundo em baixos-relevos,
como sucedia à taça de oiro de que fala Brantôme, nenhuma mulher podia
debruçar-se sem corar.
Júlio
Dantas
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