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Ama |
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Tenho
a honra de lhes apresentar o «menino» do século XVIII.
Não faz diferença
alguma do bebé do século XX: é a mesma polpa rosada que uma lanugem de oiro
enevoa e amacia, a mesma boca vermelha que suga e que sorri, os mesmos imensos
olhos profundos, translúcidos e contentes, e essas três deliciosas covinhas
do queixo e das faces, que se diriam a marca amorosa dos três primeiros
beijos da mãe: como acontece com os bebés de hoje, ‑ na casa onde
nascia era ele que mandava. As saias pequeninas mãos cor-de-rosa exerciam,
com a sombra dum gesto, as violências duma tirania. E, entretanto, o «menino»,
nosso antepassado, era muito menos feliz do que o bebé, nosso descendente: em
vez de viver à solta no berro, de barriga para cima, com os pés e as mãos
no ar, esbracejando, esperneando e rindo, na exaltação dessa suprema expressão
da vida, que é o movimento, enfaixavam-no como uma múmia numas ligaduras
largas chamadas «mantilhas», punham‑lhe um diche de oiro ao pescoço,
um vintém furado de S. Luís à cabeceira, e ali tinham em presépio aquele
sorrisinho entrapado, na imobilidade tradicional dos meninos Jesus flamengos
de Van Eyck, dentro duma alcova de terceira luz onde se queimava alfazema,
onde se reunia a família em adoração e onde se fazia tudo quanto há –
menos respirar.
Quanto mais
abastado era o «menino» nosso avô, mais o incomodavam. Em geral, as mães
ricas do século XVIII não alimentavam os filhos. O precioso leite materno
era, quase sempre, substituído pelo leite mercenário das amas. Debalde o
grave doutor Francisco da Fonseca Henriques, médico de D. João V, fulminava
as mães «que, contra os ditames da razão e contra as leis da natureza,
negavam a seus filhos o próprio leite»; debalde o sombrio Curvo Semedo, médico
também da real câmara, repetia que «a melhor ama e o melhor leite para
criar era o da própria mãe». Não estava na moda: eis tudo. Mais tarde, em
1830, as mães românticas tiravam o seio em plenos bailes do Manteigueiro
e da Assembleia Estrangeira, para o
lindo gesto byroniano de aleitar os filhos ao peito cheio de jóias. Mas as «mamãs-franças»,
as «mamãs-casquilhas», as «mamãs-sécias» de Queluz e do Alfeite, da
Ajuda e do Ramalhão, complicadas de donaires, de bambolins, de rosicléres,
de «telónios» empoados, de palatinas de Veneza, gemendo, ceceando,
cabeceando em coches, amparando-se a negrinhos, marcando a vida pelo passo
grave dos minuetes de Avendaño e de David Feres, absolutamente incapazes de
sacrificar a sua beleza à boquita ávida dum filho, - recorriam às amas,
quase todas nesse tempo saloias.
Entretanto, não
se julgue que as mães do século XVIII entregavam os filhos ao primeiro leite
mercenário que se lhes oferecia. Não. Sob esse aspecto, os interesses do
nosso antepassado bebé estavam perfeitamente assegurados. As ideias do tempo
tinham como facto incontroverso que a beleza se sugava no peito das amas, que
as boas ou más qualidades morais se bebiam no leite, e - o que ainda hoje é
rigorosamente exacto - que certas doenças eram com frequência transmitidas
às crianças pelas mulheres que as aleitavam. Daí, todo o rigor e todo o
cuidado supersticioso dos pais. Eram tantas e tão apertadas as condições a
que devia obedecer uma ama, no ano da graça de 1750, para ser aceite numa boa
casa de Lisboa, - que poucas seriam aquelas que conseguiriam corresponder
inteiramente às exigências, às vezes um pouco singulares, dos mestres
setecentistas na «nobre arte de criar e curar meninos». No tempo de D. João
V, para que uma mulher fosse recebida por ama, era preciso que tivesse boa
cor; peito largo, espadaúdo; que não fosse muito gorda nem muito magra; que
não tivesse sardas: que não fosse ruiva; que mostrasse os dentes alvos,
inteiros e sãos; que não fosse gerada de pais leprosos, nem tísicos, nem
asmáticos, nem tocados de gota coral (epilepsia), nem «doutra doença
contagiosa»; que não fosse primípara, «porque no primeiro tálamo não é
o leite bem puro e elaborado»; «que não tivesse menos de dois nem mais de
dez meses de parto»; que desse filhos sadios e vivedouros; que fosse pacífica,
temperada, virtuosa e «delgada de leite». Só num ponto não estavam de
acordo os médicos mais ilustres do tempo: se a ama devia ser trigueira, se
branca de pele. O autor do Socorro Délfico,
assistente aos últimos partos da rainha D. Mariana de Áustria, queria-a «de
cor branca e rosada, e não fusca e morena»; o autor da Poliantéa,
que, naturalmente, não gostava de mulheres loiras, preferia, pelo contrário,
a ama «inclinada mais para morena que para alva, por que as morenas, além de
serem mais sanguinhas, convertem melhor o alimento em sangue e em leite, à
maneira da terra, que quanto é mais negra, tanto é mais fértil». É
preciso confessar que, aparte certas esquisitices da puericultura
setecentista, o nosso avô bebé não devia ficar muito mal servido de ama.
E de que idade o
desmamavam? - Perguntará, num sorriso, a curiosidade das mães de hoje,
mortas por saber o que substituia a Néstlé
no tempo dos bastardinhos de madre Paula. É ainda um dos médicos do Paço
que lhes responde, na sua linguagem tão elegante, tão sóbria e tão
precisa: «Regularmente, de ano e meio até dois anos se desmamarão, mas os
que forem robustos, quadrados e bem nutridos, podem desmamar-se mais cedo se
tiverem presas...». Entretanto, parece que era costume, pelo menos na criação
dos Infantes, deixá-los mais tempo nas mantilhas e no leite das amas, porque
umas memórias inéditas de 1714 atribuem a morte do príncipe D. Pedro,
secundogénito de D. João V, falecido na idade de dois anos e dez dias, a «descuido
dos médicos, pelo abalo de lhe terem tirado a mama tão cedo». Curvo Semedo,
velho de capa, volta e cabeleira crespa de França, acrescentava estas
palavras, que ainda hoje são de bom conselho para todas as mães: «Reprovamos
o dar-lhes de comer, enquanto mamarem, antes de um ano de idade».
E o «menino»
pobre?
Desse, é triste
falar. Nascia entre pragas pelas betesgas, nas celas humildes dos conventos,
às vezes nos poiais das portas. Não era um sorriso que os pais viam nele;
era mais uma boca a pedir-lhes pão. Não era a glória dum amor, que se grita
e se beija; era, tanta vez, a vergonha dum crime, que se cala e se esconde. E
a roda do Hospital Real, rodando dia e noite, ia recebendo crianças sobre
crianças, - a boquita sequiosa, os cabelos numa névoa de oiro, sorrindo
para, a sua própria desgraça, embrulhadas hoje no damasco vermelho duma
colcha rica, amanhã no burel esfarrapado dum hábito de freira. Não era raro
vê-las entrar duas a duas, gémeas dum só ventre. A gemiparidade,
excepcional durante o século XVIII nas estirpes nobres portuguesas, foi
infelizmente frequente na miséria do povo. As memórias inéditas e os
jornais manuscritos de 1742 a 1745 referem-se às ninhadas de filhos que
costumavam regaçar, dum só parto, as regateiras e as maranhoas da cidade.
Todos os dias vagavam morgados para a Coroa, - e aos pobres nasciam-lhes os
filhos aos ternos. O caso mais pitoresco conta-o o Folheto
de Lisboa. Um barbeiro, poca roupa, russo de pêlo, com loja na corte ao
Arco do Caranguejo, assistia uma noite, cheio de resignação ao parto da
mulher. Quando viu o primeiro filho nas mãos da comadre, - sorriu. Quando viu
o segundo, tartamudeou, varado de pasmo. Quando viu o terceiro, esbugalhou os
olhos, cuidou que não acabava a ninhada, gritou «aqui d'el-rei», atirou-se
à parteira, agarrou-a pelos cabelos, arrastou-a até à porta da rua e
desatou a berrar, como doido:
- O quarto é que você já não
tira cá para fora, sua ladra!
Júlio
Dantas
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