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Marido
cuco |
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Sabem
como no tempo de D. João V chamavam aos maridos infelizes? É o bispo do Grão-Pará
que o diz: chamavam-lhes «cucos».
Porquê?
Frei José Queirós não entra em pormenores. Mas sabe-se. O cuco é
urna ave que tem o mau costume de pôr os ovos no ninho dos outros; - por antítese, o século XVIII chamou «cuco» ao marido que deixava entrar os
outros no ninho dele. Havia, segundo os papéis dos conventos e as mercuriais
do tempo, muitas espécies de «cucos». Os maridos infelizes foram
pitorescamente classificados pelos moralistas portugueses de 1700 - ao
que parece, pela fantasia turbulenta dalgum frade bernardo de Bouro ou de
Tarouca - existindo ainda, nalgumas terras da Beira, a tradição remota
dessa classificação. «Cuco», em geral, era o marido duma mulher infiel, «ante-cuco»,
o homem casado com mulher que fora doutro antes do casamento, mas que se
portava bem depois de casada; «re-cuco», o marido de mulher que fora
doutro ou doutros antes do casamento e que continuava a portar-se mal
depois de casada; «chiscismelro», o marido que sabia das infidelidades da
companheira e não se importava com elas; «ribeirinho», o marido
consentidor, que ainda por cima recebia e obsequiava os amantes da mulher;
finalmente, «assombrado», o marido que estivera para ser cuco por um triz,
mas que o não chegara ser por milagre. Desde as salas do Paço até às
vielas da Madragoa, desde as casas solarengas, hirsutas de cunhais de armas,
até às hortas do Ducado gralhantes e bezoantes de povo, a Lisboa fidalga do
século XVIII, desse admirável século que, na frase dos Goncourt, «a
affiché le scandale, mais a connu l'amour», transbordou de cucos e de
recucos, de chiscismelros e de ribeirinhos, de ante-cucos e de assombrados.
Foram tantas, entre nós, as intrigas amorosas, tantos os maridos infelizes, e
tão frequentes os escárnios públicos a que eles estavam sujeitos, que as
circunstâncias aconselharam a publicação do alvará de 26 de Setembro de
1769 e obrigaram o marquês de Pombal a mandar proibir, sob pena de Aljube,
por outro alvará célebre, que se persistisse na brincadeira de mau gosto de
andar a pendurar chavelhos, de noite, pelas portas de toda a gente.
Como
explicar a revoada de infelicidades dos maridos setecentistas? Pela frágil
virtude da mulher portuguesa, que, na opinião do ci-devant
duque do Châtelet, «excedia no galanteio todas as mulheres da Europa»?
Decerto. Mas não lhe façamos a injustiça de a culpar a ela só. A grande
razão dos desastres conjugais na sociedade lisboeta do século XVIII está
muito na fragilidade das mulheres; mas está, mais ainda, na ciúme dos
maridos.
No ciúme? Mas o ciúme não é um
efeito? Não. Foi uma causa. Os portugueses passaram sempre por ser os homens
mais ciumentos do mundo. «Ciumentos e bentos», - diz Montesquieu, em 1723.
«Muito dados a ciúmes», - insiste Dalrymple, que aqui esteve em 1774. «Vis,
soberbos, escarnecedores, presunçosos, ignorantes e excessivamente ciumentos
das rnulheres», - acrescenta o duque do Châtelet, espécie de jornalista
impertinente que visitou em 1777 o marquês de Pombal. E o alemão Link
conclui, em 1797, num repelão de mau humor: «ciumentos e tenebrosos». Há
nestas impressões dos estrangeiros que nos visitaram, nem sequer sempre
rigorosamente delicadas, uma evidente sugestão da Espanha; mas ainda fica uma
grande parte de verdade para Portugal. O português do tempo de D. João V e
de D. José foi ciumento por índole, por fatalidade, por herança, por carácter,
por essa desconfiança taciturna que lhe adveio da sua hereditariedade torva
de beatos e de inquisidores, por essa orgulhosa hipertrofia do sentimento da
posse que constituiu nele a noção fundamental da honra. O seu ciúme
obstinado e violento explica todos os seus desastres matrimoniais. O seu
errado conceito da nobreza do lar e do respeito patriarcal da família,
levando o português a fechar a mulher a sete chaves, a guardá-la estiolada
em recâmaras e oratórios, a mandá-la espiar por lacaios e mochilas, a acusá-la
da sua própria beleza como dum crime, a afligi-la de desconfianças que eram
vexames, a torturá-la de suspeitas que eram afrontas, - foi criando pouco a
pouco, mesmo nas mais dóceis, mesmo nas mais recatadas, um natural instinto
de revolta, um irreprimível sentimento de dignidade ofendida, que foi a razão
suprema de todo os adultérios e a dolorosa justificação de todos os crimes.
Refugiado na noção estreita de moral conjugal que lhe apresentava a mulher
como uma baixela de prata, fechada e aferrolhada todo o ano para só sair da
arca por festas, - o marido português do século XVIII, na preocupação
absorvente de não ser enganado, fez tudo quanto era preciso para não poder
deixar de o ser. Foi à sua educação de cavalariça e de mosteiro, de
picadeiro e de oratório: foi à sua falsa noção do respeito pela mulher;
foi, acima de tudo, ao supersticioso horror que à sua fidalguíssima carcaça
causava a ideia de ser cuco, -que ele deveu, incontestavelmente, a glória de
o ter sido.
Mas -
coisa curiosa! - o português, que tinha ciúmes de toda a gente, ciúmes de
tudo o que o rodeava, ciúmes dum candeeiro, ciúmes dum cão de fralda, ciúmes
dum papel de solfa, ciúmes dum pé de vento, só não era cioso da maior
peste que lhe entrava em casa: o frade. Para a luz do dia, - rótulas
fechadas. Para o frade, - portas abertas. É Montesquieu que o diz: «O
português e o espanhol não são capazes de deixar a mulher sozinha, durante
meia hora, com um velho de oitenta anos; mas consentem da melhor vontade que
ela se feche no quarto, o dia inteiro, com o franciscano robusto que a
confessa». E o autor desconhecido da Description
de la ville de Lisbonne, publicada em Paris em 1738, acrescenta: «As
mulheres portuguesas não têm licença para falar senão com frades; fora
disso, entretém-se em casa, por dentro das gelosias, a olhar quem passa na
rua». Era o frade que as ensinava a ler; era o frade que as consolava; era o
frade que lhes levava as indulgências e as folhinhas de Lausperenes: era o
frade que cantava com elas motetes à viola, que lhes dobava nos braços as
meadas de seda, que lhes levava na manga do hábito as cartas de amor; era o
frade, sempre o frade, que a cólera dos maridos ou a vara de prata dos
alcaides encontrava invariavelmente, sofraldando o chiote, chocalhando as camândulas,
resmungando o breviário, no fundo de todos os dramas domésticos e de todas
as intrigas de alcova. Foi um frade capucho que facilitou, em 1724, a fuga
para Tuy do marquês de Gouveia D. João com a mulher de D. Lourenço de
Lencastre; foi por causa dum frade que, em 5 de Dezembro de 1733, o fidalgo Luís
Álvares de Andrade mandou matar por um mulato a mulher D. Micaela Joana; foi
com um frade trino, frei André Guilherme, que o cirurgião Isaac Elliot
surpreendeu a mulher sobre uma espreguiçadeira de damasco, matando-os a ambos
com as facas do ofício e com tiros de pistola em 26 de Novembro de 1731;
sempre que numa alcova do século XVIII se levantava o cortinado dum leito,
era a face sanguínea, a face bestial do frade que surgia, entre potes de
prata, encapuçada na testeira negra do capelo, as avarcas às costas, o olho
felpudo piscando, como um diabo de iluminura pendurado nas letras de oiro dum
antifonário.
Por que é que os frades de Bouro
Fazem tanto casamento
Para haver moças casadas
Que os vão catar ao convento...
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O
cuco nobre, o circo fidalgo, o cuco que se esquartelava , a esmaltes e metais
no teto doirado da Sala dos Veados, - vingava-se, assassinando. Ou, melhor
ainda, mandava matar a mulher por um negro ou por um mulato. Calderon de La
Barca, no Médico de su Honra, tinha
ditado a lei da nobreza: «la sangraré!».
Foi o «tue Ia!» do século XVIII.
Matava-se por simples denúncia, por mera suspeita. «Os maridos portugueses,
conhecendo a extrema fraqueza das mulheres que Deus lhes deu - diz ainda o
duque do Chatelet - nunca as largam, fecham-nas em casa, correm-lhes as rótulas,
vigiam-nas dia e noite, e se encontram vivalma que desperte suspeitas,
cravam-lhe no coração a faca que trazem consigo». Mas a lei não dava ao
marido o direito de matar; era ela que punia. Cucos e recucos, chiscismelros e
ribeirinhos, tinham o seu caso previsto no Livro 5.° das Ordenações
e no alvará de 26 de Setembro de 1769. Se o marido acusava, - adúltero e adúltera
sofriam morte natural, com perda dos bens para o marido e filho; se o marido não
acusava - degredo dos dois para Angola por dez anos; se o marido perdoava à
mulher, - degredo perpétuo do adúltero pára o Maranhão; se o marido
consentia, - degredo perpétuo dos três, o adúltero para Angola, marido e
mulher para o Brasil...
E
tudo isto, porquê?
É
Maria de Riva que responde, na Veneza do século XVIII, ao embaixador de França,
conde de Froullay:
- «Por que os maridos não
sabem amar...»
Júlio Dantas
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